Quatro quadras percorridas na São Sebastião, Centro, e Luiz Henrique é parado por três pessoas.
- Nossa! É você mesmo, Luiz! Você está bem!
A pedagoga Carolina Margatho se surpreende.
- Nós torcemos muito por você!
Dona Zita enche os olhos de água.
Luiz Henrique da Silva ganhou 31 quilos e trocou as roupas sujas e os pés descalços por calça jeans, camiseta com a estampa de Santa Rita e sandálias. O cobertor que carregava debaixo do braço, sua marca registrada, ficou no passado, junto aos vasos de flores que ele improvisava para trocar por crack.
“Ele assistia à missa. Entrava na igreja todo sujo, segurando aquele cobertor no braço. A gente queria ajudar porque sabia que ele não era um qualquer”. Luiz quer mostrar que Zita tinha razão. O “menino do cobertor”, como ficou conhecido pelo Centro, busca, aos 40 anos, reconstruir a vida.
A história é de perdas. A mãe de Luiz morreu quando ele tinha um ano. Aos 17, enterrou o irmão, dois anos mais velho, companheiro de vida. Caiu no crack e, aos 19, quando o pai morreu, se entregou de vez.
“Eu fiquei sozinho, perdi o emprego e não tinha mais como pagar aluguel. Fui morar na rua”.
A primeira noite foi em claro. “Eu fiquei acordado. Tive medo de tudo e de todos”. A droga era anestesia.
“Você fica mais ligado, esquece, as pessoas se aproximam mais”.
Logo, Luiz passou a perambular. Pedia dinheiro para manter o vício ou vendia flores. “Se a gente não desse um vaso de flor para ele vender, ele chorava. Eu dava flor, biscoito, comida”, conta o dono da floricultura onde Luiz é sempre-bem vindo. “É uma alegria ver que ele está bem.”
Dormia sempre no mesmo lugar, em frente a uma padaria do Centro, com o cobertor que carregava para baixo e para cima. “Eu me sentia um lixo. As pessoas preferem te dar um trocado para se livrar de você”.
Os amigos de rua estão mortos, presos ou na mesma situação de antes. Luiz, quase todo o tempo de cabeça baixa, estufa o peito para dizer que nunca roubou ou tratou alguém com falta de educação. “Isso eu nunca fiz”.
O carinho com que é tratado por onde passa comprova. Carinho que foi mão estendida, primeiro passo da vida nova. Oito anos atrás, Luiz ganhou madrinha e padrinho. Um casal decidiu mudar a história.
“Eu conheci o Luiz andando pelo Centro. No primeiro momento, não tinha como acolher. Mas, quando pude, o tirei da rua”, conta Maria Aparecida Salomão Prado, a quem Luiz chama de mãe. “Eles me fizeram sentir um ser de novo. Passei a sentir amor. Eu não sentia mais amor nem por mim mesmo”.
Foram anos de tentativa. A família pagou clínicas particulares, deu carinho, levou ao dentista, fez o que pôde. Hoje, colhe alegria. “Foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida. Tem momentos em que o amor por ele é maior do que pelos meus filhos biológicos. Ele é muito especial”, Maria é só emoção.
‘Quero alugar uma casa e tocar a minha vida’, diz
O primeiro banho, depois de uma vida na rua, teve cheiro de dignidade. “Pareceu que tirou o peso do meu corpo. Porque era muito grande”.
Em oito anos de amor, Luiz recaiu e voltou. Dormiu na cama e na rua. Lutou, acompanhado dessa vez. Os “padrinhos”, como ele se refere ao casal, tiraram o menino da rua, pagaram clínicas de reabilitação, e ainda o fazem.
Maria relembra os dias difíceis. “Foi uma luta. Ele passou sete meses em uma clínica em Campinas, voltou bom, mas recaiu”. Além da dependência, enfrentaram o preconceito. “As pessoas me olhavam feio quando me viam abraçando ele na rua, todo sujo”.
Luiz está há quatro anos em uma mesma clínica. Se sente pronto para recomeçar. “O que eu preciso agora é de um emprego para alugar uma casa e tocar minha vida”.
Maria está buscando os direitos do filho de coração. Quer que ele tenha seu próprio cantinho. “Mas queremos fazer tudo com muita segurança para ele”.
Luiz já trabalhou como vendedor e auxiliar de cozinha e garante: “Eu era um ótimo cozinheiro”. Não tem nenhuma preferência, porém. Aceita qualquer trabalho. Só quer recomeçar.
Enquanto não encontra vaga, vende biscoitos pelas ruas do mesmo Centro e ajuda na mesma floricultura onde buscava flores para trocar por crack. Mesmo Centro, outro Luiz. “Nós torcemos muito por ele. É uma alegria ver que está bem”, nas palavras da pedagoga Carolina Margatho, que conheceu o Luiz do passado. “Eu quero conquistar o que eu perdi”, na esperança do novo Luiz.
Análise>>>‘É possível recuperar um dependente’
É possível recuperar um dependente químico e é preciso mostrar esse tipo de história para as pessoas. No Brasil, tem-se a ideia de que não é possível recuperar porque nosso tratamento é muito pobre. Outros países têm implantado projetos que dão ótimos resultados. Mas no Brasil o poder público atua com muita ideologia e pouca certeza. Fizemos uma pesquisa recente, chamada Incentivos Motivacionais, com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo). Durante as 12 semanas do programa, um quinto dos usuários, sendo 23% deles moradores de rua, deixaram de usar o crack. O programa trabalha com incentivos motivacionais para quem fica mais tempo limpo. É necessário um atendimento global com inserção no mercado de trabalho após a recuperação. É preciso vontade do poder público.
André de Queiroz Constantino Miguel, psicólogo, doutorando em psiquiatria e pesquisador do INPAD