Até pouco tempo atrás, a Inteligência Artificial (IA) soava como algo futurista e distante, mas esta realidade mudou drasticamente há poucos meses. O desenvolvimento de ferramentas como o ChatGPT — e tantas outras que vêm surgindo, de maneira rápida e acessível — fez a IA entrar no debate público e, mais do que isso, em nosso cotidiano. A IA é um poderoso conjunto de tecnologias para uso diverso, oferecendo oportunidades para impulsionar o crescimento econômico e social do Brasil. No ecossistema da pesquisa e inovação, é um elemento essencial para fomentar descobertas em todas as áreas da ciência, atingindo todos os setores da economia e da sociedade. Aproveitar a gama de oportunidades da IA exige entender bem e gerenciar os benefícios e riscos a ela associados.
Por isso, é necessário contar com investi- mentos efetivos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI) e na formação de recursos humanos. Esses investimentos devem pavimentar a busca por soluções para os desafios brasileiros, promover inovação responsável, contribuir para o bem público, proteger os direitos e a segurança das pessoas e fazer avançar os valores democráticos. Neste relatório, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) apresenta uma breve análise sobre IA a nível global e tece recomendações para o avanço da IA no Brasil. O documento é resultado dos esforços de um grupo de trabalho formado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento. O grupo pro - curou traçar um caminho e indicar estratégias para o crescimento da IA no país. O desenvolvimento e uso de sistemas de IA confiáveis, incluindo dados e infraestrutura, visa, também, preparar a força de trabalho atual e futura para a boa aplicação da IA nos vários setores da sociedade, alavancando o desenvolvimento econômico.
As próximas páginas serão divididas em quatro seções. A primeira traz uma macroanálise da força de trabalho requerida para avançar no desenvolvimen- to da IA no Brasil. A segunda descreve o potencial de uso e a aplicação de IA em áreas críticas da economia, da sociedade e do governo, destacando as oportunidades para aumento da competitividade e inovação em áreas como saúde, educação, meio ambiente e energia. Na sequência, é proposta uma reflexão sobre os riscos da IA para a sociedade, indivíduos e organizações. Por fim, a quarta seção apresenta recomendações para que o Brasil avance no uso responsável da IA.
A lacuna tecnológica entre a IA no Brasil e no cenário internacional — diagnóstico dos desafios e oportunidades
Os avanços tecnológicos resultantes da revolução industrial e da agricultura do século 19 levaram ao fim da agricultura intensiva em mão de obra e, consequentemente, causaram grandes mudanças nas profissões e no mercado de trabalho. À época, inovações disruptivas (como o motor de combustão, a eletricidade e a indústria química) rapidamente criaram um leque de oportunidades de emprego, absorvendo a força de trabalho deslocada. Essas inovações estimularam investimentos, geraram riqueza, capacitaram uma nova classe de trabalhadores e trouxeram benefícios sociais.
Nos últimos anos, essa realidade mudou: o setor industrial perdeu investimentos e competitividade, colocando a inovação da economia brasileira em uma situação particularmente preocupante (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2022). A revolução atual, no entanto, tem um alcance muito mais abrangente. Impulsionado, em grande parte, pela computação, pela comunicação de dados e, agora, pela IA, esse movimento tem levado à concentração de poder por um grupo relativamente pequeno de países, organizações e pessoas. Isso se deve à natureza altamente especializada dos empregos bem-remunerados, concentrados em profissionais de alta formação acadêmica que dominam essas novas tecnologias. Ao mesmo tempo, as pessoas deslocadas por essa nova demanda de profissionais são relegadas a empregos de menor qualificação e remuneração e poderão, eventualmente, ser substituídas por sistemas baseados em IA e robôs. A influência da IA se estende por diversos setores, incluindo agricultura, biotecnologia, educação, engenharia, humanidades, meio ambiente, saúde e entretenimento.
Nos países desenvolvidos, as universidades têm criado centros multidisciplinares de IA para impulsionar avanços no desenvolvimento de medicamentos, análise de dados genômicos e projetos de tecnologias inovadoras para melhorar a qualidade de vida nas cidades. As oportunidades associadas a esses avanços contemplam predominante- mente aqueles que possuem níveis educacionais mais elevados. Nesse senti- do, as perspectivas não são promissoras nem mesmo para aqueles com níveis intermediários na hierarquia socioeducacional.
Para citar alguns exemplos, em- pregos que eram bem remunerados, particularmente nos países em desenvolvi- mento, como na área da programação de computadores, estão próximos de se suplantados pelos avanços da IA. É tangível o risco de que, em um futuro próximo, apenas programadores muito qualificados continuem empregados. Esse risco também ameaça áreas como educação, direito, saúde e administração. O Brasil não pode correr o risco de ser apenas um usuário de soluções em IA concebidas no exterior. A dependência de outros países e de grandes empresas nesta área pode prejudicar a segurança e a soberania nacional, além da competitividade das empresas nacionais no país e no exterior. Os países que pretendem construir novas tecnologias com base na IA devem ter capacidade de entender os princípios do desenvolvimento dessas soluções.
De outra forma, a falta de conhecimento perpetuará uma dependência cada vez maior das grandes corporações e dos países dominantes da tecnologia. Assim como ocorre em outros países em desenvolvimento, o contexto brasileiro é crítico: sabe-se que apenas uma pequena parcela da nossa população tem acesso à educação de qualidade. Embora o país tenha cientistas mundialmente renomados em diversas áreas — inclusive em IA —, falta a massa crítica necessária para impulsionar avanços tecnológicos significativos, ou mesmo para fazer uso adequado da tecnologia (que está em rápida e constante mudança) em escala que favoreça o crescimento tecnológico sustentável. A situação se torna ainda mais preocupante com os recentes avanços e prolife- ração dos chamados Grandes Modelos de Linguagem (Large Language Models [LLM]) (Ahmad et al., 2023).
O Brasil ainda não conta com um domínio amplo dessa tecnologia essencial para analisar os resultados dos modelos e suas implicações, bem como para exercer a crítica eficaz das aplicações desenvolvidas com base nessa tecnologia. É evidente que, baseando-se na inovação, no número de artigos publicados e citados, no número de patentes depositadas e no volume de investimentos32, as nações líderes em IA são os Estados Unidos, China, França, Alemanha, Reino Unido, Rússia, Índia, Suíça, Japão, Coreia do Sul, Holanda, Suécia, Finlândia, Irlanda, Singapura, Canadá, Israel e Itália. O Brasil aparece entre os vinte primeiros países em alguns rankings, principalmente devido ao bom número de publicações (aproximadamente 10% do número de artigos publicados pelos EUA). No entanto, ao analisar os centros urbanos com maior desenvolvi- mento em IA (os chamados IA hotspots), apenas São Paulo é destaque no Brasil e, embora figure no ranking das top 50 cidades que contam com talentos em IA, está na 44ª posição (quatro posições abaixo de Buenos Aires). São Francisco, por exemplo, ocupa o primeiro lugar em várias ordenações. Em suma, os EUA abrigam aproximadamente 60% dos principais pesquisadores de IA.
Na sequên- cia, vêm a China (11%), a Europa (10%) e o Canadá (6%). Essa distribuição não é surpreendente, dada a concentração de universidades de maior reputação internacional, grandes empresas de tecnologia de IA e o número de startups nos IA hotspots e suas adjacências. Deve-se notar, ainda, o crescimento contínuo de graduados em ciência da computação e engenharia da computação nos EUA, passando de 10 mil, em 2010, para mais de 33 mil, em 2021, sendo que o número de doutores formados anualmente tem se mantido estável (em torno de 1.800 nesses 11 anos) (Standford University Human-Centered Artificial Intelligence, 2023). Por outro lado, a fração de doutores que se especializaram em IA cresceu aproximada- mente de 10% para 19% no mesmo período (Maslej et al., 2023).
No Brasil, segundo o documento de área da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de 2019, o número de doutores formados anualmente em computação ficou abaixo de 400 em 2016, e não se espera que tenha aumentado durante a pandemia COVID-19. Para o desenvolvimento de IA no Brasil, é imprescindível incentivar a for- mação de alunos com qualificação no mesmo nível das principais instituições estrangeiras. O corpo de pesquisadores da área deve ser capaz de contribuir para o avanço científico e tecnológico, propor soluções inovadoras na área e analisar, de forma crítica, as soluções propostas por corporações.
Além do baixo crescimento do número de profissionais com a formação necessária, cresce a quantidade desses profissionais que optam por trabalhar no exterior. Um de- safio crucial para o Brasil é criar condições de infraestrutura, qualificação e fixação de recursos humanos para acompanhar e assumir algum protagonismo na evolução das tecnologias de IA. No âmbito das patentes, o cenário é tampouco animador. De acordo com um estudo recente (Machado Winter, 2023), a grande maioria das patentes depositadas no Brasil relacionadas à IA decorre de tecnologias desenvolvidas nos EUA, apesar do razoável número de publicações em IA por pesquisadores brasileiros. Estudantes das principais universidades brasileiras têm sido atraídos pelas áreas de IA, mas o número de profissionais qualificados em relação à população nacional permanece bastante baixo (Google for Startups, s.d.). Além disso, como já mencionado, o apelo de mercados de trabalho com cargos e remunerações mais atraentes em outros países tem levado a uma notável fuga de cérebros de estudantes e professores, o que impacta negativamente a capa- cidade do Brasil criar um ambiente propício à inovação e ao desenvolvimento de startups em IA e áreas relacionadas. É importante observar, ainda, que profissionais contratados por grandes empresas estrangeiras e multinacionais de alta tecnologia recebem salários muito superiores às quantias pagas via bolsas de pesquisa nacionais. Isso evidencia o desafio que as startups e empresas nacionais de pequeno e médio porte enfrentam para competir por talentos. Adi- cionalmente, a atual demanda do mercado exige que um aluno dedique mais tempo para estudos avançados. A combinação de bolsas e salários baixos, com condições insatisfatórias de trabalho no âmbito da academia, tem desencoraja- do estudantes talentosos a seguir carreira acadêmica, criando um ciclo vicioso de declínio na educação das futuras gerações de cientistas.
A IA tem sido objeto de investigação acadêmica há décadas, principalmente em três frentes. Primeiro, existem linhas de pesquisa que buscam entender os mecanismos do comportamento inteligente e apoiar estudos em áreas como linguística, lógica, filosofia, psicologia, sociologia e neurofisiologia. A segunda frente vai no sentido inverso, utilizando conhecimento dessas áreas para propor algoritmos capazes de replicar o “comportamento inteligente” em máquinas. Um exemplo é o projeto de novos algoritmos de aprendizado de máquina. Aqui, é possível fazer um paralelo com o estudo da energia nuclear, cuja exploração científica ao longo do tempo levou a avanços inesperados, como ocorreu na medicina nuclear. Já a terceira frente é mais relacionada a uma busca por tecnologia e inovação de curto e médio alcance, investigando onde e como a IA pode ser utilizada nas mais variadas aplicações para resolver problemas reais ou ajudar no avanço de outras áreas do conhecimento.
Nesse sentido, busca-se a redução de riscos, a diminuição do trabalho braçal e repetitivo, a melhoria de condições ambientais e sociais e o ganho de eficiência. A concretização recente de vários avanços científicos e tecnológicos e de inovação, mesmo que de forma ainda parcial e incompleta, tornou mais tangível o impacto prático que a IA pode ter na sociedade e no planeta. Ao mesmo tempo, esse sucesso tornou mais aguda a percepção de riscos que esta tecnologia traz consigo. Em suma, este diagnóstico chama a atenção para o contexto brasileiro no cenário internacional. Sem investimentos adequados e políticas públicas duradouras e apropriadas, o quadro global de IA pode empurrar o Brasil para um declínio tecnológico sem precedentes. A lacuna entre os países que estão na vanguarda de PDI em IA e os demais países cresce a taxas exponenciais. É imperativo que o Brasil estabeleça políticas públicas e investimentos para rever- ter essa tendência sem demora. Se persistir a inércia, o impacto negativo será sentido a curto prazo na educação, nos demais índices sociais e na economia, com a consequente falta de competitividade empresarial em todas as áreas.
Potencial de uso e aplicações
O impacto do aparecimento da IA no século 21 é semelhante ao do surgi- mento da Internet no século 20. O avanço da IA, no entanto, tem ocorrido em ritmo muito mais acelerado. Isso tem estimulado governos como os da China, dos Estados Unidos, dos países da União Europeia e do Reino Unido a implementar programas estratégicos de investimento em IA com grandes e imediatos aportes financeiros. Nesse contexto, países e corporações que saírem na frente no desenvolvimento e no uso eficaz dessa tecnologia vão aumentar sua competitividade no cenário mundial (Solaiman, 2023). Como já mencionado, a situação do Brasil nesse cenário é particularmente preocupante, tendo em vista que seu parque industrial perdeu investimentos e competitividade nos últimos anos. O governo federal tem prometido um esforço de reindustrialização, mas, para isso, serão necessárias políticas que coloquem a indústria brasileira em posição competitiva — o que depende do domínio de tecnologias digitais e, em particular, da IA.
Muitos setores da economia devem se beneficiar do uso intensivo de IA. Nos Estados Unidos, por exemplo, a IA vem sendo implantada por empresas em diversas aplicações. Segundo o Artificial Intelligence Index Report 2023 (Maslej, 2023), as capacidades de IA que tiveram maior adoção nas empresas incluem: automação de processos robóticos (39%), visão computacional (34%), compreensão de texto em linguagem natural (33%) e agentes virtuais (33%). Ressalte-se, também, que, em 2022, o caso de uso de IA mais prevalente foi a otimização de operações de serviço (24%), seguido do desenvolvimento de novos produtos baseados em IA (20%), segmentação de clientes (19%) análise de atendimento ao cliente (19%) e melhorias baseadas em IA em pro- dutos existentes (19%). No Brasil, existem áreas estratégicas que poderão se beneficiar grandemente do uso de IA. A seguir, são abordados alguns setores que poderão propiciar contribuições significativas para o crescimento da economia, bem como para a melhoria da qualidade de vida da população brasileira, incluindo a abrangência e a qualidade dos serviços públicos.
SAÚDE
A IA tem potencial para impactar significativamente o setor de saúde e a esfera mais ampla de políticas públicas relacionadas ao tema.
Sua habilidade em analisar grandes volumes de dados, antecipar tendências e realizar previsões pode auxiliar na identificação de doenças, no cuidado com o paciente e na distribuição eficiente de recursos, o que pode salvar vidas e minimizar custos. Há diversos exemplos práticos do uso da IA no setor público, indo desde a identificação de pedidos fraudulentos de benefícios até o rastreamento da propagação de doenças.
A IA também pode ser aplicada no diagnóstico e identificação de doenças, na personalização de tratamentos, na descoberta e desenvolvimento de medicamentos e no apoio a tarefas administrativas. Aliados ao desenvolvimento de sensores de baixo custo, avanços em aprendizado de máquina têm o potencial de melhorar significativamente a assistência à saúde, especialmente pela complementação a sistemas de suporte à decisão clínica já existentes. Esses avanços tecnológicos podem capacitar médicos, cuidadores domiciliares e outros profissionais da saúde, otimizando a prestação de cuidados. Isso é especialmente importante considerando o crescimento da população idosa no Brasil, com uma demanda cada vez mais alta por instalações de saúde tanto em casa quanto em ambientes clínicos. A telessaúde é um exemplo no qual a IA pode fazer diferença ao ampliar a oferta de serviços médicos a regiões rurais e/ou de difícil acesso. Nesse sentido, essa tecnologia poderia ter impacto no tratamento da doença de Chagas — uma patologia negligenciada, endêmica na América continental, mais frequente entre pessoas pobres que vivem ou viveram no interior. Reconhecer os casos precocemente permite o tratamento antiparasitário quando não há cardiopatia, ou, quando há cardiopatia, tratá-la em tempo hábil. Um algoritmo de IA baseado em uma rede neural já foi desenvolvido para identificar os chagásicos pelo ECG (Jidling et al., 2023).
A IA pode, ainda, ajudar a aprimorar a qualidade do atendimento, aumentar a acessibilidade, economizar recursos, combater a escassez de profissionais da saúde e melhorar a vigilância de doenças e a saúde pública como um todo. Essa tecnologia pode ser utilizada no desenvolvimento de sistemas que auxiliem os tomadores de decisão a navegar por escolhas complexas, fornecendo insights e recomendações baseados na análise de dados. Isso pode ser particularmente útil para formuladores de políticas públicas e gestores de saúde. No âmbito da saúde, o emprego da IA em países desenvolvidos já é significativo e crescente, permitindo ao profissional agir com mais precisão, foco e assertividade. A expectativa é que as soluções de IA sejam capazes de auxiliar os indivíduos e pacientes no autocuidado, os médicos e profissionais da saúde no diagnóstico e tratamento das doenças e os gestores da saúde na programação de ações de prevenção e organização da assistência à saúde, otimizando a utilização de recursos e melhorando a saúde das pessoas e das populações.
ENERGIA
Basicamente, no setor de energia há três grandes áreas de aplicação de IA: (a) descrição, uso de IA para modelar fenômenos físicos (como chuva e temperatura), equipamentos (como um conjunto turbina-gerador) e grandezas de interesse (como a demanda de energia); (b) previsão, uso de IA integrando os modelos descritivos com processos probabilísticos para produzir cenários futuros, como a probabilidade de chuva, a variação da demanda ou “luzes ama- relas” no comportamento do conjunto turbina-gerador; e (c) decisão, uso de técnicas de otimização sob incerteza (como aprendizado profundo por reforço [deep reinforcement learning]) para apoio à tomada de decisão, por exemplo, na operação de reservatórios ou em manutenções preditivas. Ainda considerando essas áreas de aplicação, a IA possibilita uma melhor representação de fenômenos difíceis de capturar por modelos probabilísticos tradicionais, como a variabilidade temporal e espacial da produção renovável e da demanda em intervalos mais curtos — temas que ganharam relevância com a forte inserção de fontes eólicas e geração distribuída (GD), entre outras. Há benefícios, ainda, no uso inteligente dos recursos existentes.
A manutenção preditiva é um exemplo: pode ser mais eficaz e barata do que a manutenção periódica tradicional. Dois desafios que devem ser considerados no setor de energia são a curadoria adequada dos dados utilizados no treinamento de algo- ritmos e a possibilidade de alguma falha inesperada e severa da IA, o que pode ocorrer pela dificuldade de entender os caminhos seguidos pelos algoritmos de aprendizado de máquina (machine learning). O Brasil tem condições privilegiadas para fazer a transição energética, pro- cesso indispensável para enfrentar as mudanças climáticas. Nesse contexto, a IA pode auxiliar na otimização e integração de diversas fontes de energia, como hidrelétrica, eólica e solar, reduzindo gradativamente a dependência de gera- dores fósseis. A transição de um grid centralizado para grids descentralizados exige a criação e o desenvolvimento de novas tecnologias capazes de otimizar as soluções que contenham uma combinação de informações de diversas fontes de energia. Essas novas tecnologias vão exigir a utilização de modernas técnicas de aprendizado de máquina. Por fim, a IA será fundamental para o processo de descentralização da produção de energia em baixa tensão, que dará aos consumidores a possibilidade de produzir energia por meio de GD e serviços de modulação e flexibilidade com o apoio de baterias. A digitalização (medidores inteligentes, comunicação etc.) é fundamental para esse processo.
No caso da descarbonização, os principais benefícios da IA deverão vir de novos modelos de circulação atmosférica, da capacidade de analisar imensas quantidades de informações por satélite para previsão de chuva e temperatura e da já mencionada capacidade de representar melhor a produção das fontes renováveis.
FINANCEIRO
O setor financeiro coleta e armazena um grande volume de dados. Instituições bancárias, financeiras e de seguros podem se beneficiar amplamente com recursos de IA. Uma das áreas que pode ter grande avanço é a da segurança: atualmente, as instituições financeiras travam uma batalha constante com hackers e fraudadores. Por meio da IA, padrões poderão ser usados para identificar fraudes antes que elas afetem clientes e instituições. Outros benefícios incluem o relacionamento com clientes, a automação de processos e a previsão de possíveis situações difíceis para os clientes, inclusive inadimplências. Além disso, bancos de dados das instituições financeiras — que refletem o padrão de gastos e de investimentos da população brasileira — podem, com o uso de IA, contribuir para a análise de políticas públicas com impactos positivos na redução da desigualdade social.
BIODIVERSIDADE, BIOTECNOLOGIA E MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Como se sabe, o Brasil tem riqueza e diversidade de fauna e flora, o que gera imenso potencial no campo da biodiversidade e biotecnologia. Existem, no país, bancos de dados importantes relacionados à biodiversidade, como um banco dedicado à flora brasileira com o objetivo de promover aplicações no setor farmacêutico33. Recuperar e centralizar essas informações para utilização por modelos de IA é um passo crucial para aproveitar o enorme potencial que essa área representa para o Brasil. Com a aceleração do desmatamento em nosso território, o monitoramento das mudanças nos ecossistemas ganha extrema importância. O acompanha- mento de animais da nossa flora, por exemplo, é feito por técnicas chamadas armadilhas fotográficas. No entanto, estudos recentes sugerem que sensores de ar podem revolucionar o rastreamento de animais, analisando o DNA ambiental (eDNA) capturado por estações de monitoramento da qualidade do ar no ambiente (Jidling et al., 2023). Os dados de eDNA resultantes podem ser empregados para realizar previsões sobre as espécies, e os avanços em IA podem melhorar os modelos de distribuição de espécies. Um exemplo de uso dessa tecnologia é aplicado no projeto AquaGen34, financiado pela União Europeia. A iniciativa combina genômica ambiental e aprendizado de máquina para prever o status de qualidade dos ecossistemas aquáticos com base na detecção de DNA de espécies bioindicadoras (Gilbert, 2023).
A chamada IA discriminativa pode ser empregada para decifrar a linguagem dos genomas e, assim, prever novas variantes virais, como demonstrado por pesquisas recentes conduzidas por pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech-EUA) (Ahmad et al., 2023). Essa mesma tecnologia pode ser aproveitada para a previsão do tempo e de mudanças climáticas, o que se torna viável pela significativa aceleração de simulações que o método proporciona. Assim, é possível melhorar as avaliações de risco climático, com o potencial de salvar vidas e impactar positivamente a agricultura, setor suscetível às mu- danças climáticas e eventos climáticos extremos 35 No contexto de estudos de meio ambiente, é importante ressaltar o volume de dados e a complexidade de modelos descritivos e preditivos existentes. A IA pode ajudar a entender e prever os impactos da mudança climática (incluindo desastres de toda ordem), subsidiar ações de segurança alimentar e hídrica e até mesmo caracterizar e proteger a biodiversidade, entre vários outros cenários de aplicação.
EDUCAÇÃO
A Educação é uma das áreas nas quais os LLM podem ter um impacto significativo no Brasil. Conforme destacado em um relatório recente da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a IA tem o potencial de enfrentar alguns dos maiores desafios na educação (UNESCO, 2021). O documento aponta que sistemas de aprendizagem personalizados vêm sendo aperfeiçoados pelo setor privado para implantação em escolas e universidades em todo o mundo. No entanto, no contexto do Brasil, é impera- tivo que o setor público desempenhe um papel proativo no enfrentamento dos desafios educacionais. Dados são a base das aplicações de IA e, portanto, é essencial que sejam precisos, imparciais e bem curados. Os modelos que dão suporte às aplicações de IA na educação devem ser transparentes e abertos à sociedade. Desenvolver expertise nessas áreas é fundamental. Além disso, os dados e modelos devem ser adaptados para atender às necessidades específicas dos estudantes brasileiros. Por isso, devem levar em consideração nuances culturais, idiomas locais e o contexto socioeconômico no qual o sistema educacional opera. É essencial, ainda, que educadores e alunos sejam preparados com os conhecimentos necessários para utilizar efetivamente as novas tecnologias de IA.
AGRICULTURA
A agricultura e a produção de alimentos precisam intensificar o uso de tecnologias de IA, Big Data e computação de alta performance para criar oportunidades no domínio multidisciplinar das tecnologias agrícolas. Exemplos de setores que podem se beneficiar da ciência de dados intensiva na agricultura incluem os manejos de culturas, de criação de animais (incluindo o bem-estar animal e a produção animal), da água e do solo.
PESQUISA CIENTÍFICA
As tecnologias de IA podem reduzir substancialmente o tempo e os recursos para a realização de experimentos e, ao mesmo tempo, produzir resultados com maior precisão e confiabilidade. A tecnologia dará às equipes de pesquisa uma grande capacidade para identificar novos métodos de otimização de processos existentes e para desenvolver soluções mais eficazes, com mais inovação. Além disso, a IA facilitará a construção de modelos que podem ser usados para prever resultados e, assim, levar pesquisadores a tomar decisões com mais precisão e assertividade. Nesse sentido, a IA também deve impactar empresas positivamente, com possibilidades de melhorias em pesquisa e desenvolvimento (PD), permitindo apostas em projetos mais ambiciosos e com redução de riscos. A área de materiais se configura como um exemplo atual e interessante de aplicação de IA em pesquisa básica, com expectativa de enormes benefícios (Schleder, 2019). A iniciativa Materials Genome Initiative (MGI)35, lançada nos Estados Unidos em 2011, busca usar IA para diminuir significativamente o tempo do processo de descoberta de novas propriedades e de novos mate- riais. Dados de materiais complexos são utilizados para a confecção de novos compostos termoelétricos, novas ligas de manufatura aditivas, novos materiais magnéticos, além de facilitarem a busca dos chamados materiais quânticos, que devem impactar fortemente a área da eletrônica com suas aplicações em computadores quânticos. Os resultados dessas pesquisas devem alimentar a economia mundial pelas próximas décadas: a partir deles, surgirão produtos que trarão não apenas bem-estar para as populações, mas riqueza para as nações que embarcarem nessa nova forma de fazer ciência.
COMPETITIVIDADE DAS EMPRESAS
A competitividade é a capacidade de qualquer organização em cumprir sua missão com mais êxito que seus competidores. Levando-se em consideração que o impacto da IA é cada vez mais claro para as empresas e para a sociedade, com transformações importantes em grandes áreas como educação, energia, saúde e sustentabilidade, é importante entender as dimensões mais estruturais do uso de IA no setor empresarial. No contexto do avanço da IA no mundo, a competitividade das empresas nacionais traz múltiplos desafios. A definição e implementação de uma estratégia para alcançar metas e objetivos de longo prazo é um deles. Sem estratégias adequadas, não há geração de valor. Em geral, empresas (bem como organizações públicas, incluindo instituições de ensino e pesquisa) sofrem com a falta de entendimento técnico sobre IA, que representa um obstáculo para a incorporação das ferramentas de IA em seus processos. A sustentabilidade da tecnologia é outro desafio, que ocorre quando não há entendimento adequado sobre o seu uso, como por exemplo com a IA. A busca de competitividade para a economia do país também exige o desenvolvimento de tecnologias nacionais, que criem valor e produtos brasileiros competitivos no mercado internacional. Assim, não basta a mera aquisição de produtos e tecnologias do exterior. Um ponto relevante sobre a IA na competitividade empresarial é o desenvolvimento de soluções centradas no consumidor. Em um caso real, uma empresa criou um autorizador para exames clínicos em pacientes usando IA que permite ao médico, durante uma consulta, interagir com a seguradora de saúde. O profissional solicita uma série de exames e, em segundos, tem a resposta de autorização. Assim, o trabalho e o tempo de espera do cliente são diminuídos, reduzindo o custo da seguradora de saúde. É uma tecnologia sustentável, que cria valor para a empresa e para os clientes.
EFICIÊNCIA E GOVERNANÇA DO SETOR PÚBLICO
A utilização de IA pode trazer contribuição significativa para a relação entre governo e cidadãos. Por um lado, o grande e disperso volume de dados sobre políticas públicas poderia ser integrado para maximizar sua eficiência e eficácia. Potencialmente, a tecnologia trará ganhos na integração de políticas setoriais de diferentes níveis, maximizando a colaboração entre iniciativas municipais, estaduais e nacionais. Por outro lado, a própria integração e sistematização da massa de informações da administração pública propicia o controle ao cidadão e a garantia de uma gestão mais democrática. Riscos éticos e sociais Apesar de potenciais benefícios e oportunidades, há evidências concretas de que as tecnologias de IA podem trazer danos para indivíduos, grupos, sociedades e para o planeta. Entre as preocupações, estão violações de privacidade, criação de ambientes anticompetitivos, manipulação de comportamentos e ocorrência de desastres ambientais. Algoritmos de aprendizado de máquina já permitem identificar e explorar vulnerabilidades e preconceitos — estes com casos já identificados de perpetuação, a exemplo de questões raciais e outras formas de discriminação.
A IA pode afetar diretamente vários perfis de trabalhadores, seja pelo monitoramento de sua atuação, seja pela automação excessiva — fatores que podem levar à piora das condições de trabalho ou mesmo à extinção de funções. Esses riscos já existiam quando da adoção de outras tecnologias, mas, com a IA, o impacto pode ser maior, não se resumindo apenas a trabalhos facilmente automatizáveis, que requerem pouca qualificação, mas interferindo em postos que requerem capacidade analítica, tratamento de informação e algum grau de criatividade. Um relatório da consultoria McKinsey, publicado em 2015 (portanto, antes do impacto atual da IA), já apontava as consequências dessa tecnologia sobre empregos de média e alta remuneração, que também são e serão afetados pelo uso de IA no mercado de trabalho (Chui et al., 2015). Como uma resposta a essas e outras preocupações, surgiu um conjunto de iniciativas denominado IA Responsável (Pak, 2022). No projeto, as aplicações, modelos e sistemas baseados em IA vão além das características técnicas típicas, visando objetivos sociais e evitando danos a indivíduos e grupos (Pak, 2022). É crucial que, no Brasil, as preocupações com riscos éticos e sociais orientem o estabelecimento de princípios, regras e legislações para minimizar riscos da tecnologia. É fundamental, ainda, que a sociedade brasileira participe das discussões sobre os limites do uso da IA. Diferentes atores da sociedade têm manifestado receios ligados à ferramenta. Aos cientistas, interessa proteger o desenvolvimento nacional equiparado ao avanço internacional, não permitindo atraso ou limitação do progresso científico e tecnológico, e prover igualdade no desenvolvimento científico e tecnológico e na geração de inovações e riquezas.
REGULAÇÃO PARA MINIMIZAR RISCOS
O principal desafio da construção de uma regulação para a IA é que as regras e leis sejam justas, inclusivas e que protejam a sociedade. Ao mesmo tempo, não devem atrasar ou paralisar o desenvolvimento da tecnologia. Trata-se de um desafio sensível, dinâmico e que deve ser bem discutido por vários setores da sociedade. Há, ainda, um aspecto importante a ser observado: novas regras e leis não devem se sobrepor desnecessariamente a regras e leis já existentes. É preci- so, por exemplo, ter clareza sobre quais os elementos da proteção de dados e da proteção do consumidor não são cobertos pelas leis respectivas e que, portanto, merecem novos regramentos. Um outro desafio é que a legislação a ser estabelecida gere segurança, por parte da população, quanto ao que é e não é proibido. Por sua acelerada evolução, as tecnologias de IA não se moldam facilmente a definições estáticas. O debate sobre a regulamentação da IA se estende pelo mundo. Por aqui, tramita no Senado o projeto de lei n° 2338, de 2023. A discussão foi inicia- da no âmbito da Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital), aprovada em março de 2018 por meio do decreto nº 9.319/2018 e pela portaria MCTIC nº 1.556/2018. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), por meio de outra portaria (MCTIC nº 1.122/2020), definiu a área de IA como uma prioridade em projetos de pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias e inovações para o período 2020 a 2023 (Projeto de Lei n.2338/2023). Nesse contexto, foi elaborada a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA).
Várias são as preocupações veiculadas por distintos atores sociais, em particular com relação a questões éticas, de responsabilidade civil, privacidade e segurança. Apesar dessas iniciativas legislativas, o Brasil ainda não conta com uma regulamentação sobre a IA. Ressalte-se que as discussões sobre regulações internacionais enfrentam os mesmos desafios que o país enfrenta: conciliar conhecimento especializado em IA com conhecimento jurídico em uma área em constante e acelerada evolução. Em junho de 2023, a União Europeia divulgou que o uso da IA será regulado por seu AI Act (Parlamento Europeu, 2023), com processo de aprovação já iniciado. A prioridade do Parlamento Europeu é que os sistemas de IA usados na comunidade europeia sejam seguros, transparentes, rastreáveis, não discriminatórios e sustentáveis. Por isso, os sistemas de IA críticos podem requerer supervisão humana.
O AI Act (Parlamento Europeu, 2023) é fundamentalmente baseado em risco, propondo regras diferentes para riscos de dimensões diferentes. Em particular, existem os riscos considerados inaceitáveis, incluindo manipulação comportamental cognitiva de pessoas ou grupos vulneráveis, vieses de diver- sas naturezas (gênero, sexo, idade etc.), técnicas para prover social score e sistemas de identificação biométrica em tempo real. Esses usos são proibi- dos pelo AI Act. Atividades de alto risco, como uso em seleção de pessoal ou em operações por artefatos médicos, são permitidas, mas sujeitas a análises prévias à aplicação. Atividades com risco menor, mas com questões ligadas à transparência — como o uso de robôs de software para geração de opiniões — são permitidas, mas sujeitas a requisitos como a notificação a usuários sobre a natureza das interações. Por fim, atividades de risco mínimo ou sem risco são permitidas sem restrições. Um aspecto relevante do AI Act é a previsão de sandboxes regulatórios, ou seja, espaços reservados que facilitam o desenvolvimento e teste de inovações em IA. Os Estados Unidos tampouco têm regulamentação ou legislação específica. A estratégia dos EUA para a área de IA é definida por meio de legislação e ordens (atos, decretos) do poder executivo. Um conjunto de documentos tem sido produzido e revisado periodicamente. Por ter avanço contínuo, a mobilização de empreendedores, pesquisadores do setor e de lideranças econômicas, sociais e políticas deve ser igualmente contínua. Dispositivos aprovados em 2021 estipulam regras gerais no contexto da disputa tecnológica entre os EUA e outros países, em particular prevendo a criação de uma rede nacional de institutos de pesquisa em IA.
Recentemente, o governo dos EUA apresentou o Blueprint for an AI Bill of Rights (Casa Branca [Estados Unidos], s.d.), que define um conjunto de princípios e práticas associadas que auxiliam o uso e o emprego de sistemas de IA e protegem os direitos da população nessa era da IA. Os cinco princípios básicos apresentados no documento são: (a) usuários não devem ser sujeitos a sistemas de IA inseguros ou não efetivos; (b) não devem sofrer discriminação algorítmica; (c) não devem ser sujeitos a coletas de dados abusivas e devem ser informados sobre dados coletados; (d) devem saber quando sistemas de IA são usados e como contribuem para resultados; e (e) devem ter o poder de evitar sistemas de IA e acessar humanos quando necessário. Recomendações Para acelerar seu crescimento com o uso bem-sucedido de IA, o Brasil precisará dispor de uma massa crítica qualificada de profissionais que dominem áreas e subáreas relacionadas à IA, como aprendizado de máquina e ciência de dados. Formar esse corpo de profissionais requer tempo. Países e empresas com liderança tecnológica iniciaram essa formação há pelo menos dez anos. O Brasil precisa enfrentar esse desafio com agilidade e em grande escala. É, também, urgente atuar para desmistificar e informar a sociedade sobre o que é, de fato, a IA. Nesse sentido, a população infantil merece atenção especial. Em alguns países, conceitos simples de IA, indicações claras de como ela funciona e onde tem sido utilizada são temas já abordados no ensino básico. O Brasil pouco ou nada ensina sobre conceitos simples de pensamento computacional em suas escolas.
FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS
Algumas estratégias podem ajudar a reter talentos do ecossistema edu- cacional do país e fomentar uma força de trabalho bem-equipada e cultivada localmente. A formação de recursos humanos deve promover a pesquisa e o desenvolvimento com investimento público e privado; promover a união de pes- quisadores de universidades com pesquisadores de empresas para estimular desenvolvimento e evitar retrabalho e duplicidade; e revisitar a área da educa- ção nos níveis fundamental e médio. A capacidade de ensinar e formar jovens brasileiros que possam entender problemas relevantes e inovadores da IA, que tenham espírito crítico, que consigam desenvolver soluções no estado da arte e que tenham foco em soluções nacionais é um imenso desafio. Como impacto positivo, poderemos ter o desenvolvimento de uma tecnologia nacional, vol- tada para questões nacionais e, ao mesmo tempo, alinhada às necessidades e desafios internacionais. Esse impacto deve se estender a várias áreas dos campos social e econômico.
ATRAÇÃO DE PESQUISADORES E CIENTISTAS DE IA
Atrair especialistas em IA para o Brasil poderia acelerar a evolução do país de forma a torná-lo um player significativo na área. A captação de especialistas exige o estabelecimento de centros internacionais de pesquisa no Brasil, similares aos existentes na Europa e nos EUA. A cooperação entre universidades e instituições de pesquisa poderá fornecer oportunidades de projetos atraentes, facilitando a vinda de especialistas em IA. O Brasil tem uma gama única de desafios que podem atrair jovens profissionais inovadores que buscam aplicar seus conhecimentos. O estabelecimento de parcerias com instituições globais poderia servir ainda mais como uma estratégia benéfica. A melhoria dos hubs de inovação existentes, parques tecnológicos e ecossistemas de startups também poderia aumentar o apelo do Brasil para os profissionais estrangeiros de IA. É recomendada a implementação de um programa de bolsas para estudantes em IA e áreas correlatas, incentivando-os a atuar como tutores e impulsionadores de inovação em cursos de graduação e pós-graduação. O valor das bolsas deve ser equiparado ao mercado de modo a incentivar estudantes a assumir funções de tutoria em cursos de graduação e pós-graduação. É uma forma de estimular o ensino de IA e o desenvolvimento de projetos inovado- res. Alunos que desempenham o papel de tutores frequentemente atingem um patamar de compreensão mais refinada do conteúdo em estudo. Esse efeito é valioso em um campo em constante evolução como a IA, no qual a aprendiza- gem contínua é crucial.
VALORIZAÇÃO DA PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM IA
O Brasil deve proteger e aumentar a força de trabalho nas universidades, hoje relativamente pequena, ainda que qualificada. Essa iniciativa geraria mais indivíduos qualificados para entender, criticar e promover o avanço da tecnolo- gia. Esses profissionais podem servir como educadores qualificados e liderar a aplicação da IA em várias áreas científicas, focando na resolução de problemas brasileiros. Deve-se facilitar substancialmente o estabelecimento de marcos regulatórios e legislações que incentivem pesquisadores e professores e univer- sidades a comercializar os resultados de suas pesquisas por meio de empresas fundadas nas próprias universidades (as chamadas startups de base tecnológi- ca). Apesar dos esforços como o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação36, ainda há riscos regulatórios significativos para pesquisadores que decidem gerar riqueza com suas pesquisas, principalmente em universidades públicas
CENTROS MULTIDISCIPLINARES DE PD EM IA
Estabelecer centros de excelência multidisciplinares, particularmente em universidades que já possuem grupos robustos de IA e expertise em outras áreas distintas do conhecimento, poderá impulsionar significativamente o uso e a promoção da IA em vários setores. Esse esforço, aliado à expansão desses grupos pela formação de especialistas brasileiros, fomentaria o avanço e o uso da IA. Nesse sentido, uma opção é a criação de centros virtuais que reúnam especialistas de uma região específica, estimulando a colaboração e a siner- gia independentemente das fronteiras institucionais. Esse processo poderia ampliar o acesso às tecnologias a uma gama mais ampla de talentos e especia- lidades. Em 2021, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) criaram um programa para a constituição de Centros de Pesquisas Aplicadas (CPA) em IA37, com foco nas áreas de saúde, agricultura, indústria e cidades inteligentes. Esse programa poderia ser amplia- do para outros temas de aplicações e outras universidades.
COLABORAÇÃO ENTRE EMPRESAS, UNIVERSIDADES E GOVERNO
É necessário buscar colaborações e parcerias entre universidades, empresas e governo no contexto de formação de pessoal e desenvolvimento de tecnologias de IA para gerar produtos inovadores em diversos setores da economia. A participação multissetorial no desenvolvimento de IA pode trazer benefícios significativos para a economia, principalmente na formulação de estratégias de automação na indústria e nos serviços adequados à realidade brasileira.
IA NA EDUCAÇÃO
O progresso tecnológico é o principal motor da prosperidade humana. O progresso, no entanto, não acontece de forma automática: requer um real compro- misso da sociedade para que as ações necessárias possam ser tomadas. A parte fundamental de qualquer avanço tecnológico é, sem dúvida, a educação. Nesse sentido, no Brasil, além das medidas habituais que devem ser adotadas (como promover a pesquisa e o desenvolvimento nas universidades nas áreas afins), deve-se aproveitar a IA para acelerar a educação em todos os níveis — das escolas às universidades. A IA poderia ser empregada na educação como uma ferramenta poderosa, fornecendo o que é comumente referido como um tutor individual para estudantes. Como demonstrado no texto AI and education: Guidance for policymakers (UNESCO, 2021), e nos projetos Khanmigo (TED, 2023; Coursera, 2023) e Wolfram38, a IA tem potencial para revolucionar as metodologias de ensi- no em todas as áreas, se adequadamente planejada e executada. Em particular, na área da computação, estudos recentes39 mostram que a ferramenta Copilot, baseada em LLM, aumenta a produtividade no desenvolvimento de software e beneficia desenvolvedores e alunos durante o aprendizado (Zingaro Porter, 2024) Um debate recente (Rethinking Economics NL, 2021) entre o economista Daron Acemoglu (MIT) e o jornalista Martin Wolf delineou que o uso adequa- do da IA nas escolas não deve substituir os educadores, muito pelo contrário! A utilização cuidadosa da IA deve possibilitar aos professores dedicar mais horas em tarefas mais nobres, como no estímulo à criatividade em sala de aula. Consequentemente, a IA pode estimular a criação de empregos no ensino, gerando novas oportunidades em um setor crítico para a sociedade. Essa revo- lução, no entanto, não ocorrerá se o uso de IA for inadequado. Um exemplo a ser evitado é o uso da tecnologia para substituir educadores, entregando a tarefa de ensinar a indivíduos menos qualificados, com confiança quase exclusiva em processos automatizados. O aproveitamento do potencial da IA depende do total envolvimento do setor público, principalmente em aplicações nas áreas da saúde e educação. A sociedade deve estar engajada com essas mudanças, ou corre- remos o risco de perder uma estreita janela de oportunidade. Nesta jornada, os setores público e privado devem unir forças para facilitar transformações.
ENFATIZAR A EDUCAÇÃO EM TODOS OS NÍVEIS
Priorizar a educação em todos os níveis e estabelecer parcerias com plataformas globais de educação são iniciativas que, aliadas, podem formar uma estratégia impactante para acelerar a melhoria dos padrões educacionais. Ao fomentar alianças educacionais globais, é possível catalisar o progresso em metodologias pedagógicas. O sistema de IA poderia, por exemplo, analisar o desempenho de um aluno para identificar áreas de força e fraqueza, ajustando materiais de aprendizagem em tempo real para abordar os temas segundo suas necessidades. Esse processo pode tornar a aprendizagem mais eficiente e prazerosa, ajudando a manter os alunos motivados e engajados. Em um olhar mais amplo, essa é uma forma de acelerar a inclusão digital na sociedade. Como exemplo, pode-se estudar parcerias com a Khanmigo ou plataformas semelhantes (UNESCO, 2021) para fornecer aos estudantes brasileiros acesso a recursos educacionais de nível mundial. A colaboração também pode permitir a personalização de cursos para atender às necessidades específicas dos es- tudantes brasileiros usando a expertise local. Por fim, parcerias na área podem incorporar estudos de casos da realidade do Brasil, focando em temas de particular relevância para a economia brasileira e especificidades regionais.
INVESTIMENTOS SIGNIFICATIVOS E DE LONGO PRAZO EM PD DE IA
Destaca-se a necessidade de aumento imediato do financiamento por parte do governo e a criação de mecanismos para que o setor privado também incre- mente os investimentos nessa tecnologia. Uma possibilidade seria explorar a criação de programas ou de uma agência nos moldes da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), focada no desenvolvimento e adoção de IA. O orçamento dessa agência deve ser compatível com os investimentos de outros países com protagonismo tecnológico — algo em torno de R$ 1 bilhão por ano pelos próximos cinco anos. Novamente, cabe ressaltar que ainda não existem regulações que permitam a criação e operação ágil de empresas fundadas por professores e pesquisado- res, particularmente em universidades públicas. Tal cenário não é competitivo internacionalmente: professores de universidades públicas, notadamente da América do Norte, têm amplas facilidades regulatórias para empreender a partir de suas atividades de pesquisa. A geração de riqueza e postos de trabalho de alto nível no país não ocorrerá sem um significativo crescimento das empresas de base tecnológica. O caso dos EUA, tanto no Vale do Silício quanto nas regiões de Boston, Austin e no entorno de diversas universidades, exemplifica que o motor da nova economia é o desenvolvimento de empresas dirigidas por inova- ção (innovation-driven entrepreneurship). É necessário um ambiente regulatório seguro para professores e pesquisadores que desejarem contribuir para a gera- ção de riqueza e de uma economia de base de conhecimento. Isso só ocorrerá se houver segurança jurídica para professores e pesquisadores empreendedo- res, como há nos EUA, no Reino Unido, em Israel e em países do leste asiático.
PD EM IA PRIORIZANDO A SOLUÇÃO DE PROBLEMAS BRASILEIROS
O entendimento de onde as empresas brasileiras têm utilizado IA em seus negócios pode fornecer ideias valiosas para o bom aproveitamento dessa tecnologia. Setores como finanças, saúde, educação, varejo e agricultura são candidatos óbvios. Para aproveitar todo o potencial da IA, é essencial integrá- -la ao currículo educacional. As universidades devem promover o aprendizado baseado em projetos, focando em estudos de caso da vida real pertinentes aos desafios sociais e empresariais brasileiros. Essa abordagem não apenas equiparia os alunos com habilidades práticas em IA, mas permitiria que eles en- tendessem como os conceitos da IA podem ser usados para resolver problemas do mundo real. Ao se engajar em tais projetos, estudantes contribuem para resolver problemas brasileiros urgentes enquanto ganham experiência prática com a tecnologia. Com essa abordagem imersiva e de resolução de problemas para o aprendizado, novas gerações podem ser inspiradas a seguir carreiras em IA (e carreiras científicas de forma geral) e suas aplicações, impulsionando ainda mais a inovação e o crescimento nesse campo crítico.
REGULAÇÃO DE IA
Qualquer regulação deve ser comunicada à população, e em particular à comunidade científica e à comunidade empresarial, de forma clara. Para evitar atrasos na inovação e no avanço da pesquisa, é importante que cada restrição seja cuidadosamente justificada e que se explique à sociedade por que as leis anteriores não são suficientes. Erros de comunicação podem prejudicar o desenvolvimento do país, levando ao abandono de caminhos cuja proibição nem tenha sido aventada. Além disso, parcelas da população podem se fixar exclusivamente em aspectos negativos da tecnologia de IA — aspectos às vezes mais afeitos a obras de ficção científica do que à realidade prática. Em vista disso, a comunidade científica deve participar do processo de discussão e ser incentivada a realizar um intenso esforço de divulgação sobre o que se pretende com regras e controles. O debate deve ser amplo e não circunscrito a uma comissão específica, e deve contar com a participação de cientistas de competência comprovada. A comunidade científica brasileira ligada a temas da IA vem, ao longo dos últimos anos, desenvolvendo pesquisas, inovando e gerando empregos. Enfatizamos, assim, nossa recomendação: que todas as discussões sobre IA incluam cientistas ligados ao tema, tanto nas análises dos vários aspectos da IA quanto na avalia- ção das consequências de regulações pretendidas, incluindo o planejamento de atividades de divulgação e esclarecimento para a sociedade. Espera-se, ainda, que nenhuma regulamentação possa limitar ou restringir a capacidade de desenvolvimento da ciência e tecnologia brasileiras, e que seja possível inovar em ambientes controlados (sandboxes) de forma simples e com segurança jurídica. Os cientistas brasileiros da área têm a expectativa de que a sociedade, o governo e a iniciativa privada tenham um olhar de entendi- mento, liberdade e positividade em relação ao futuro da IA, com a certeza de que essa tecnologia pode prover muito mais ganhos do que perdas.
POLÍTICA DE DADOS
Uma outra iniciativa fundamental para o Brasil é a proteção dos seus dados. A qualidade dos resultados obtidos por meio de técnicas de IA, como a previsão de demandas em diferentes setores e a aceleração e precisão de diagnósticos, dependem da qualidade e consistência dos dados usados para treinamento dos algoritmos. Existe, portanto, grande interesse de empresas e governos estrangeiros no acesso aos bancos de dados que o Brasil dispõe em áreas es- tratégicas. Exemplos desses bancos incluem as informações do Sistema Único de Saúde (SUS), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério da Educação (INEP-MEC), além de dados sobre a nossa biodiversidade coletada por empresas e insti- tuições de pesquisa ao longo de anos. Por isso, é fundamental que haja uma política para regulamentar o acesso às bases de dados brasileiros e, em especial, às exigências para acesso a esses dados por empresas e governos estrangeiros. Recomenda-se que seja criada uma rede nacional de centro de dados coordenada por alguma instituição do governo federal. Conclusão O futuro da sociedade brasileira será moldado pelas escolhas que o governo e a própria sociedade fizerem em relação à IA. O senso de urgência em relação aos investimentos em IA e a formulação de políticas públicas emergem como prioridades cruciais em todo o mundo, abrangendo países desenvolvidos e em desenvolvimento. Organizações renomadas, como a Organização das Nações Unidas (ONU), UNESCO, Fórum Econômico Mundial (FEM), G20, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e várias outras enti- dades multilaterais estão unidas ao considerar as tecnologias de IA como um imperativo global (10 Downing Street, 2023; OCDE, 2021). Nesse contexto, o presente relatório traz uma série de recomendações destinadas a impulsionar o Brasil no campo do uso e do avanço científico e tecnológico da IA. Além disso, delineamos princípios fundamentais para ga- rantir que essa tecnologia não apenas transforme a paisagem econômica, mas contribua de forma significativa para o desenvolvimento sustentável de nossa nação, gerando prosperidade para todos (Ahmad et al., 2023; UNESCO, 2021; Sunak, 2023)
Referências
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