Confira o ensaio que tem como objetivo divulgar propostas e ideias práticas do marxismo
No início do século XX, o ânimo transformador da Revolução Russa (1917) se irradia pelo mundo e movimenta as sociedades por toda a América. Durante a década de 1920 são criados partidos comunistas nas diversas nações do continente. No bojo deste processo de organização, a Terceira Internacional (a Internacional Comunista), fundada em 1919, coloca as nações americanas em pauta, passando a promover reflexões sobre suas questões nacionais.
Com o objetivo de divulgar ao público não acadêmico ideias e propostas práticas do marxismo – que mantêm grande atualidade –, neste ensaio destacamos alguns dos principais aportes sobre a questão nacional de pensadores latino-americanos que se ergueriam na história como dos mais relevantes do século passado; marxistas que em diálogo com a tradição crítico-dialética de seu tempo ajudaram a conformar e consolidar o materialismo histórico em nossa América.
Como se verá, tratam-se de temas ainda muito debatidos no contemporâneo, conceitos centrais para qualquer projeto de nação que tenha o intuito de se fazer realidade – efetivando as urgentes transformações sociais, políticas e culturais que nossos povos demandam.
Dentre os intelectuais-militantes mais expressivos deste período, abordamos aqui reflexões do cubano Julio Antonio Mella (1903-1929), do peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) e do brasileiro Caio Prado Júnior (1907-1990).
Desde logo, vale observar que produção intelectual desse período não é façanha da genialidade de indivíduos isolados, mas expressa as disputas coletivas e conquistas sociais travadas nos países americanos, e impulsionadas pelo contexto internacional, tais como: o aprofundamento das contradições geradas pelo avanço do poder dos Estados Unidos, que subjuga os países latino-americanos; a Reforma Universitária de Córdoba (1918), a organização dos trabalhadores em sindicatos e a criação de partidos políticos socialistas e comunistas; a organização autônoma dos povos originários e as alianças realizadas com os trabalhadores urbanos (mineiros, ferroviários, etc); e o vigoroso eco da Revolução Russa, cujo impacto logo se faria universal, especialmente através da criação da Internacional Comunista (IC) – processo que na perspectiva latino-americana culminaria com a Conferência Comunista de Buenos Aires (1929).
Estes eventos foram determinantes para a construção das redes de apoio, solidariedade política e intelectual, comunicação de massas, e militância entre movimentos populares e partidos socialistas de diversos matizes.
Ao nos centramos na análise desse pequeno grupo de originais pensadores militantes – que emergiram do movimento operário, político e intelectual crítico – não pretendemos sugerir que haja entre eles homogeneidade teórica. Nosso intuito é, sim, relacionar suas ideias, suas interpretações radicais e amplas a respeito de nossas realidades sociais, sublinhar certos conceitos que convergem em pontos fundamentais e que se tornaram determinantes nos processos insurgentes que buscaram e buscam a construção de sociedades menos desiguais e mais soberanas e no continente americano.
Questão nacional e consolidação do pensamento marxista
Com os impactos da Revolução Russa de outubro de 1917, dá-se a criação da IC, que teria um papel mediador central nos debates travados desde então na seara do marxismo. Por conseguinte, aprofundaram-se as discussões voltadas à realidade dos povos da América, nas quais alguns grandes pensadores críticos tiveram papel fundamental. São os primeiros esforços por se conceber essas sociedades de um modo autêntico, próprio, analisando-as através do método marxista – de acordo com concepção dialética da história.
No período inicial de pós-guerra – quando começam a ser construídos os partidos comunistas americanos – a Terceira Internacional foi liderada por Lênin, tendo protagonismo na consolidação da reflexão sobre as questões nacionais dos povos da América.
Dois documentos da IC, pioneiros sobre o tema, impactaram o debate no campo do marxismo, a saber: “Sobre a Revolução na América: um chamado à classe operária das duas Américas” (1921); e “Aos operários e camponeses da América do Sul” (1922/1923). Neles se concebe a unidade entre o proletariado e o campesinato como sendo a estratégia revolucionária nos países americanos; outrossim, defende-se a ideia de que um partido de vanguarda operário-camponês deveria liderar a luta pelo socialismo dos povos latino-americanos, pouco industrializados e dependentes, de modo que tais nações prescindiriam da passagem pela etapa histórica, supostamente prévia, de um capitalismo “nacional” e “democrático”.
Além disso, é importante frisar que nesses documentos não se fala em “feudalismo” – uma ideia polêmica que povoou diversos debates marxistas –, mas faz referência ao problema da luta no campo como sendo um embate crucial contra o “capitalismo agrário”. Ademais, os textos – de surpreendente vanguarda – destacam a cumplicidade que se estabelecera entre as burguesias nativas, internas, e o imperialismo, o que negava a ideia da existência de uma suposta “burguesia nacional” (tese equivocada que durante o stalinismo ganharia centralidade nos partidos comunistas americanos).
Neste tempo, em que se dá a formação de um autêntico pensamento comunista na América, alguns intelectuais de orientação marxista – como Julio Mella, J. C. Mariátegui e Caio Prado Jr. – desenvolvem ideias afins a essa linha de pensamento questionadora, então fomentada pela IC.
Contudo, tal corrente de interpretação de nossas questões nacionais tardou para angariar alguma hegemonia teórica, o que só começa a ocorrer nos anos 1960, com o esforço de uma nova geração de marxistas latino-americanos, a partir dos graves revezes que o campo socialista sofreria nos países de quase todo o continente.
Um ponto básico para se começar a abordar esse debate é a compreensão de que em nenhum momento de nossa história existiram, em nossa América, as então denominadas “burguesias nacionais”, isto é, as elites que se supunha serem providas de intenções “nacionalistas”.
Pelo contrário, nossas burguesias sempre foram aliadas – sócias minoritárias aliás – do imperialismo; ainda que muitas vezes mestiças, tinham e têm a pretensão de que são “brancas”, acreditando ascender de uma etnia tão “europeia” como “pura”; e o que é mais grave, identificam-se com os valores e a cultura europeus-ocidentais, desprezando seu próprio povo e cultura.
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Apresentamos a seguir (na segunda parte do artigo) algumas características das interpretações sobre a questão nacional feitas por Julio Mella, José Carlos Mariátegui e Caio Prado Júnior – conceitos elaborados no calor da Revolução Bolchevique e da consolidação organizacional do comunismo americano. Como se verá, estes três pensadores chegam a uma conclusão bastante semelhante, que nega a tese da existência de uma pretensa “burguesia nacional”.
Ainda que essa concepção errônea (sobre o suposto “nacionalismo” das elites latino-americanas) tenha perdido espaço nas análises sociopolíticas contemporâneas, contudo, no século XXI ela voltaria a ganhar protagonismo. Com a ascensão de governos social-desenvolvimentistas, apesar de se ter promovido reformas essenciais e de urgência humanitária, não se deu a devida atenção à importância política da conscientização de classe e da organização popular – fatores cruciais para a transformação das estruturas do sistema.
O resultado, bem conhecido, foi que esses governos socialmente progressistas acabaram por ser derrubados, em um novo ciclo de golpes de estado, com variados modelos de operação e complexidade.
[Continua...]
Referências parciais
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1987.
MARTINS-FONTES, Yuri. Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui. São Paulo: Alameda/Fapesp, 2018.
MARTINS-FONTES, Y. STRUWKA, S.; ALVES Jr., P.. “Pensamento crítico e questão nacional na América Latina do entre-guerras”. Em: A dimensão cultural nos processos de integração entre países da América Latina. São Paulo: PROLAM-USP, 2021. Disp: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br .
MARX, Karl. O Capital: para a crítica da economia política (Livro I, volume II). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
PRADO JÚNIOR, Caio. Caio Prado Júnior: Historia y Filosofía. Rosário (Argentina): Edit. Último Recurso/Núcleo Práxis-USP, 2020.
Notas
* Este ensaio, aqui editado em duas partes, é uma versão revista e complementada da metade final do artigo “Pensamento crítico e questão nacional na América Latina do Entre-Guerras”, capítulo do livro A dimensão cultural nos processos de integração entre países da América Latina (Prolam-USP, 2021).
Por Yuri Martins-Fontes, Solange Struwka, Paulo Alves Jr
** Yuri Martins-Fontes é doutor em História Econômica (USP), filósofo e escritor, autor de, entre outros livros, Marx na América (2018). Solange Struwka é doutora em Psicologia Social (USP) e professora da UNIR (RO). Paulo Alves Junior é doutor em Sociologia (Unesp) e professor da Unilab (BA).