Ao que parece, estamos fadados no Brasil a viver nossas vidinhas enquanto não somos vítimas do próximo atropelamento. Preferimos não pensar seriamente no que nos cerca porque sentimos que então mexeríamos em uma casa de marimbondos. Mas nossa "magia" não evita a ferroada. Ao recordar as mais recentes - a falência de bancos que julgávamos seguros, o massacre dos sem-terra, a morte em massa de idosos, em clínicas "especializadas" - me deparo com a pergunta: qual será a próxima? Cada grupo terá sua hipótese. O meu palpite concerne a uma degenerescência que, dando-se pouco a pouco, não traz as cores de uma tragédia que clame por manchetes. Refiro-me à situação da universidade brasileira.
Considere-se a particularidade do problema. A maneira de explicar, em geral, os atropelamentos ou ferroadas recentes tem consistido em acentuar sua peculiaridade brasileira. Se grandes bancos faliram foi porque não se adaptaram em tempo hábil a uma economia não-inflacionária; se há o escândalo dos sem-terra é porque até hoje o país não resolveu a questão da propriedade fundiária, etc, etc. A questão da Universidade tem outro perfil: a crise não é só da nossa. É o que mostra a recente tradução de ensaio do comparatista Bill Readings, lançada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Universidade sem cultura? tradução de Ivo Barbieri. (Lamentavelmente, um desastre de avião em que Readings morreu com apenas 34 anos, impediu que prosseguisse a indagação em que se incluía o texto agora também disponível em português).
Em Universidade sem cultura?, o autor mostra que a universidade moderna seria inconcebível sem sua conjugação com o Estado nacional e a cultura: o forte investimento dos Estados modernos nas universidades se justificava, centralmente, em termos de promoção da cultura nacional. A Universidade era a vitrine pela qual cada Estado mostrava a peculiaridade e o grau de desenvolvimento de sua sociedade. Ora, diz o autor, essa conjunção já não existe. O Estado nacional já não é o motor da História e cultura se torna um termo adequado apenas a solenidades oficiais. Aos poucos, a universidade se converte em lugar dominado pelas leis do mercado. O autor parte portanto da falência de um modelo - a Universidade como representante qualificada da "vida do espírito" de uma sociedade nacional, que determinava a "missão" do intelectual como guia potencial de seu povo - e do desastre contido no modelo emergente: a Universidade como gerenciamento de um saber que apenas responderia às demandas do mercado. Na discussão que Readings empreende destaca-se o exame dos critérios de qualidade e excelência universitárias. Puramente quantitativos, são eles válidos apenas do ponto de vista de cálculo econômico. O autor não pretende desqualificar a necessidade desses critérios mas sim acentuar sua inadequação enquanto medida da atividade intelectual. O encaminhamento doutra perspectiva estaria em trabalhar-se a Universidade como uma "comunidade do dissenso", isto é, em que o debate crítico e não a "transparência comunicacional" fosse o traço marcante.
Basta a breve referência para que se entenda: a crise que se avoluma sobre a universidade brasileira não é o simples subproduto de algum atraso que nos peculiarizaria. Mas isso não é razão para que sintamos alívio. É premente rompermos com o velho hábito de esperar que os outros equacionem os problemas, para que os adotemos. Essa espera é, sobretudo no caso, infundada, pela diferença da situação que a universidade apresenta no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, a diminuição dos investimentos estatais é bem menos traumática porque há o costume de doações e investimentos privados visando à qualidade intelectual. Não sendo aqui relevante indagarmo-nos até que ponto as universidades privadas norte-americanas de fato independem da participação do Estado, basta que se acentue: nenhuma família norte-americana se dispõe a pagar dezenas de milhares de dólares por ano por cursos do que aqui se chama pagou-passou. Nada sequer de aproximado existe entre nós. Com exceção de umas poucas universidades particulares, nossa regra consiste em que universidade privada é sinônimo de bibliotecas de faz-de-conta e professor-horista, sem previsão de pesquisa e produção intelectual, que, para sobreviver, precisa dar o máximo possível de aulas, assim se impossibilitando uma carreira intelectual. Quando tais cursos superiores ressaltam sua aparelhagem, é apenas aquela técnica, isto é, voltada para a manipulação reprodutiva e rapidamente em desuso. Assim o esvaziamento das universidades federais ou estaduais não encontra alternativa em geral válida. A política de terra arrasada que, na prática, governos sucessivos têm aplicado às universidades estatais é tanto mais grave porque, em geral, o sistema privado aqui não é alternativa. Não se diz com isso que o único culpado do atropelamento em marcha seja uma política perversa. A bem da verdade, tanto o governo como os corpos docentes têm culpa no cartório. Será ocasional que não haja tradição de qualidade em nenhum campo intelectual nosso? Aqui e ali, nesta ou naquela área, repontam figuras excepcionais. Ao desaparecerem, deixam no máximo cultores do mito em que se tornou o "mestre". E certo que a figura excepcional é rara em qualquer lugar. Mas o próprio de um trabalho sério, intelectual ou não, consiste na formação de quadros competentes, entre os quais poderá eventualmente surgir um novo excepcional. Essa continuidade entre nós tem sido impossível. A política de terra arrasada corta o mal pela raiz. Mas isso de uma maneira que joga fora o mal com a terra. Ainda que a pressão contra o esvaziamento seja válido, precisamos saber que, além da sensibilidade governamental, muito mais há de ser mudado.
Notícia
Jornal do Brasil