Cinco séculos após a chegada de Cabral, o povo brasileiro ainda se olha no espelho tentando entender quem é e quais são as suas características comuns e diferenciadoras em relação a outros povos. Essas indagações, iniciadas nos anos 1930. quando surgiram os primeiros estudos sobre a identidade nacional, acompanham ate hoje psicólogos, historiadores, educadores e sociólogos. "O brasileiro valoriza aspectos pessoais e afetivos em suas práticas cotidianas no espaço público, como a escola e o trabalho", diz a psicóloga Mériti de Souza, do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, câmpus de Assis.
Autora do recém-lançado A Experiência da Lei e a Lei da Experiência: ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil (Editora Revan e Fapesp; 232 páginas; R$ 24,00), Mériti acredita que a visão que o brasileiro tem de si mesmo é inseparável de questões culturais, como a colonização portuguesa; sociais, como os conflitos entre o centro e a periferia; e econômicas, como a desigualdade de distribuição de renda. "Na Grécia, por exemplo, o cidadão construía sua identidade na agora, a praça pública. Entre nós. critérios como a amizade e o parentesco, mesmo na política, falam mais alto."
TRIÂNGULO RACIAL
A historiadora Manha dos Reis, do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da UNESP, câmpus de Marília. também acredita que qualquer discussão sobre a sociedade brasileira deve lembrar o triângulo racial que deu origem ao País. "Os lusitanos brancos impuseram aos colonizados a religião católica como única e verdadeira. Consideravam o trabalho como castigo pelo pecado original e, por isso, o atribuíram, inicialmente, aos índios nativos e, em seguida, aos negros africanos", afirma.
Os índios eram vistos como seres inocentes, que sequer "encobriam suas vergonhas", conforme diz Caminha em sua primeira carta ao monarca D. Manuel. Quanto aos negros, para o Padre Vieira, teriam, por meio do trabalho, sua oportunidade de purgar o pecado de não serem cristãos, alcançando assim o Reino dos Céus. "Morrer de melancolia foi a primeira forma de resistência dos escravos frente à violência a que eram submetidos", aponta Martha.
Porém, ao contrário do que ocorre com outros povos latinos, como mexicanos, bolivianos ou peruanos, os brasileiros, segundo o psicólogo José Sterza Justo, do Departamento de Psicologia Evolutiva Social e Escolar da UNESP, câmpus de Assis, não estampam em sua fisionomia traços do passado colonial. "Não temos uma "cara", e a diversidade é um dos elementos de nossa constituição", acredita. Para Justo, existiria, no plano psicológico do brasileiro, a permanência do contraste entre o sonho paradisíaco de conquista dos colonizadores e a nossa desastrosa realidade de miséria, sofrimento e frustração. "Surge assim a sensação nacional de inferioridade em relação à cultura estrangeira e a idéia de que o 'País' é bom, mas seu povo não presta", explica.
MITO CORDIAL
Essa idéia de que o povo brasileiro é inferior ao de outros países pode ser encontrado na expressão "Terceiro Mundo". "Ao assumir essa denominação, colocamos o Primeiro Mundo como algo idealizado. Portanto, deixamos de refletir sobre nossas potencialidades. vendo-nos como eternos derrotados perante os "sucessos" de outros povos", avalia Mériti.
A historiografia dos anos 1930, tentando explicar a unidade nacional, mantida apesar das dimensões continentais do País. construiu o mito do brasileiro como homem cordial, resultado de uma harmoniosa integração entre índios, brancos e negros. "Com um melhor conhecimento das contradições e conflitos sociais de nossa história, não sobra muito desse mito", avalia o historiador Alberto Aggio, do Departamento de História da Faculdade de História. Direito e Serviço Social da UNESP, câmpus de Franca.
Além da questão histórica, o estabelecimento da personalidade do brasileiro esbarra nos aspectos sociais multifacetados do País. Para a educadora Zilá Aparecida de Moura e Silva, do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da UNESP, câmpus de Bauru, o verdadeiro brasileiro não e aquele que vemos pela televisão nas telenovelas ou a elite política envolvida em desmandos, mas o retratado por Graciliano Ramos. Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. "É um forte, um teimoso, um guerreiro. Sobreviver neste País não é para qualquer um", define.
O sociólogo Antonio Carlos Mazzeo. do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da FFC, em Marília, concorda com Zilá. "O brasileiro é um povo que luta diariamente e sublima socialmente suas vitórias e derrotas pessoais nas conquistas esportivas do País", afirma. "No entanto, com índices crescentes de desemprego, miséria e exclusão social, essa luta pode levar à quebra da solidariedade entre as pessoas, aprofundando o individualismo." (Veja quadro à página 8.)
"CONSCIÊNCIA SOLIDÁRIA"
Para o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, câmpus de Presidente Prudente, o brasileiro oscila justamente entre essa luta. que implica uma resistência cotidiana à realidade adversa, e o conformismo, que o leva a assistir a reformas políticas que geralmente vêm de baixo para cima. "A sociedade brasileira luta por mudanças e superação, mas também convive e aceita o poder conservador", diz. "O que não podemos perder é a consciência solidária."
Ser brasileiro, nesse cenário em que os planos individual e social interagem, significa, para Martha dos Reis, da FFC, gostar de feijoada, samba e futebol. "Significa ainda criar e acreditar nos mitos de uma democracia racial e não-violenta. conjugando, sem vergonha aparente, mesas fartas com fome estrutural e leis formais com o célebre "jeitinho"" (veja quadro abaixo). Contudo, esse tipo de raciocínio, que procura conferir ao brasileiro um rol de atributos, traz seus riscos. "Acreditar em identidades nacionais é perigoso, pois cria estereótipos", pondera Mériti. "O melhor", diz ela. "é tentar conhecer o brasileiro, suas demandas e seus modelos de pensamento, muitos oriundos de colonialismo, para poder desmistificá-los."
Para Meriti, o modelo do colonizador europeu, baseado nos princípios de liberdade e igualdade, oriundos da Revolução Francesa, não foi transplantado para o Brasil com sucesso. "Entre nós, imperam contradições. Basta ver que o País, em 1824, proclamou sua primeira Constituição, de cunho liberal, num regime ainda escravocrata", afirma. Os modelos francês e britânico oferecem, por exemplo, uma sociedade com menores diferenças sociais, porém marcada pela impessoalidade. "Esses países apresentam poucos problemas sociais e econômicos, mas seus cidadãos são vistos como distantes e frios", afirma. "Como não temos os níveis de cultura, educação e saúde que eles apresentam, criamos um modelo compensatório, em que a igualdade social é trocada, no imaginário coletivo, pela simpatia", explica a psicóloga da FCL, de Assis.
Dentro desse princípio de ingerência dos relacionamentos privados, baseados em favores e amizades, no universo público, a tradição válida no Brasil reza que uma lei universal, se afeta um amigo, automaticamente perde o seu valor. "Para o brasileiro, a amizade, a honra e o parentesco são fundamentais", prossegue Mériti. "Quem sabe um dia a sociedade brasileira possa aliar o princípio de igualdade e qualidade de vida, presente nos EUA e Europa, aos da simpatia e amabilidade, vistos hoje como tipicamente nacionais."
Para Justo, no entanto, o espírito de exploração desenfreada e busca do gozo absoluto e sem limites que acompanhou os primeiros colonizadores portugueses - características, portanto, bem distantes do homem cordial -ainda subsiste na mentalidade nacional. "O brasileiro abdicou dos ideais revolucionários e convive com a mestiçagem", acredita. "O curioso é que essa imagem do brasileiro como uma miscelânea racial e impura era algo mal visto. Hoje, é considerada um positivo poder de adaptação ao mundo da globalização sem fronteiras", completa o historiador Aggio, da FHDSS, de Franca.
A LUA, A MINHA, A NOSSA CARA
Ayrton Senna ou Macunaima? Quem, afinal, simboliza o brasileiro?
Em 1994, enquanto preparava sua tese de doutoramento, defendida na PUC-SP e agora publicada na forma de livro, a psicóloga Mériti de Souza, ao lado de todo o País, vivenciou a comoção nacional em torno do falecimento do piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna, ocorrido após acidente no G. P. de Imola, na Itália. A analise do episódio foi a base para um capítulo de seu trabalho "Senna representava para o Brasil a vitória da competência, da tecnologia e do esforço individual, sendo um herói bem aferente de Macunaíma, comumente tomado corno símbolo do Brasil", analisa.
Para o educador Cristiano Amaral Di Georgi, do Departamento de Educação da FCT, de Presidente Prudente, a repercussão da morte de Senna mostra como o brasileiro coloca a felicidade fora de si mesmo. "Ele encarnava a necessidade que temos de ser vencedores. Por isso, sua morte foi uma tragédia nacional para um País que ainda precisa de heróis", avalia. "Ele é a imagem lapidada da idéia de que a modernização ocorrida nos últimos 30 anos, no País, poderia ser extensiva a todos", completa o historiador Alberto Aggio, da FHDSS, de Franca.
Há, porém, aqueles que ainda consideram Macunaíma como o autêntico símbolo do brasileiro. "Ele é capaz de sobreviver, com arte e irreverência, às mais adversas condições de vida", diz a educadora Sônia Alem Marrach, da FFC, de Marília. "Sua figura remete a do malandro, a do profissional do jeitinho'", completa Martha dos Reis, da mesma unidade. Aggio lembra, no entanto, que tanto Macunaíma quanto Senna são irreais. "O primeiro é um personagem de ficção, e o segundo, uma pessoa real atravessada pela dimensão da mitificação", julga. "Foi capturado pela mídia como um símbolo de vitória, alguém que realizava a 'redenção' dos brasileiros."
Há, finalmente, os que não vêem nem o piloto nem o personagem de Mário de Andrade como símbolos do indivíduo brasileiro. "Senna é um símbolo apenas da indústria de cultura de massa e Macunaíma e uma aberração, sem nenhuma relação com o indivíduo brasileiro, conhecido apenas nos ambientes intelectualizados. Nosso verdadeiro símbolo é o imigrante, que esta em todos os lugares mas não tem lugar nenhum, como o sem-trabalho, o mal-empregado, o sem-terra e o menino de rua", aponta o geógrafo Bernardo Mançano, também da FCT.
PODER, NÃO PODE. MAS A GENTE DÁ UM "JEITINHO"
Informalidade seria primeiro passo para o nepotismo e a corrupção
O célebre "jeitinho" brasileiro de resolver problemas graças ao uso de relações pessoais é certamente uma das características mais citadas do temperamento brasileiro. "É o produto direto da pobreza e da exclusão das classes populares. Surge como forma criativa de resistência popular às grandes dificuldades que o povo encontra em seu dia-a-dia", aponta o sociólogo Antonio Carlos Mazzeo. da FFC, em Marília.
De acordo com a historiadora Martha dos Reis. também da FFC, o "jeitinho" consiste em encontrar formas de burlar leis ou regras graças à proximidade de pessoas influentes. "Ele até pode ser positivo, quando se caracteriza como resistência frente a aplicação de leis e taxas que exploram ou submetem o cidadão", reflete. Na maioria dos casos, porém, é negativo, pois cria procedimentos que desorganizam a vida social. "Espalham-se assim soluções prejudiciais à sociedade, como nepotismo e corrupção", acredita Mazzeo. "O 'jeitinho' brasileiro atrapalha a democracia porque faz com que alguns sejam mais iguais do que os outros', destruindo a igualdade de direitos", acrescenta a educadora Sônia Alem Marrach, da FCC, de Marília.
A descrença geral nas leis formais seria, para a psicóloga Mériti de Souza, da FCL, de Assis, um dos motivos da existência do "jeitinho" brasileiro. "É o que ocorre na periferia, onde são articulados códigos próprios, que convivem paralelamente aos legais." Menti enfatiza, porém, que o "jeitinho" não existe só no Brasil. "Em todas as sociedades, as pessoas procuram melhores formas cotidianas de lidar com as leis formais", diz. Para ela, considerar o 'jeitinho" uma exclusividade do brasileiro é um discurso perverso. "Essa postura cria uma baixa-estima e leva grande parcela da população a se ver pior do que as outras sociedades."
Notícia
Jornal da Unesp