Agência FAPESP
Já em 1969, quando foi fundado por um grupo de professores afastados das universidades pela ditadura militar, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) deu uma contribuição fundamental à pesquisa brasileira, ao impedir que alguns dos principais intelectuais do país buscassem o exílio. Durante as quatro décadas seguintes, a instituição se dedicou à análise da realidade nacional em diversos ramos das ciências humanas.
De acordo com a presidente do Cebrap, Paula Montero, a instituição, que comemora 40 anos em 2009, foi assumida por uma nova geração de pesquisadores, mas manteve o seu compromisso com a reflexão crítica sobre a realidade brasileira e a sua vitalidade intelectual.
“As grandes linhas de pesquisa seguidas pela geração fundadora permanecem até hoje, evidentemente transformadas conforme o contexto da atualidade. As gerações atuais herdaram, com bastante consistência, o debate iniciado há 40 anos, movendo as fronteiras do conhecimento e repensando as questões fundamentais do país”, disse à Agência FAPESP.
Segundo a professora Elza Berquó, da geração de fundadores do Cebrap, as gerações que se sucederam na instituição deram continuidade aos seus compromissos originais e à qualidade da investigação ali produzida, seja por meio de pesquisas, de monografias ou de reflexões críticas.
“O Cebrap conseguiu sobreviver por 40 anos, como uma entidade sem fins lucrativos, fazendo pesquisa de qualidade. Mas o principal é que seus membros sempre foram capazes de formar sucessores, produzindo transições sem traumas – o que mostra que é uma instituição madura. E o fato de ser madura não impede o rejuvenescimento sistemático de seus membros”, disse a pesquisadora.
Relevância política
Segundo Paula, que é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e integra a coordenação adjunta de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP, desde que o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso articulou a fundação do Cebrap, a instituição adquiriu grande importância política e se tornou um centro de pesquisas internacionalmente influente.
“Do ponto de vista do envolvimento político, a instituição tenta ficar sempre em sintonia com as grandes questões que marcam o contexto brasileiro a cada geração. O fato de impedir que a inteligência brasileira fugisse do país abriu uma esperança de pensar o Brasil que inspirou a trajetória da instituição até hoje. Ao longo da década de 1970, esses intelectuais tiveram um papel fundamental ao pensar o Brasil”, destacou.
Elza, que era professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, só permaneceu no Brasil devido à criação do Cebrap. “Como praticamente todos os fundadores, ao ser aposentada compulsoriamente da USP recebi imediatamente convite para sair do país. Mas sentíamos naquele momento que era importante permanecer por aqui, para formar um centro de resistência intelectual e não deixar o vazio crescer ainda mais com a ausência de pesquisadores de ponta nas ciências sociais”, afirmou.
Em 1966, Elza iniciava, na FSP, o primeiro projeto brasileiro de criação de um centro de estudos de dinâmica populacional, com uma equipe multidisciplinar, sob a direção de Cândido Procópio Ferreira de Camargo, que mais tarde se tornaria o primeiro presidente do Cebrap. Para isso, um grupo de médicos, sociólogos, economistas e estatísticos foi enviado a centros do exterior, com apoio da Oficina Sanitária Panamericana, para especialização na área.
“Não tínhamos a disciplina de demografia instalada de forma apropriada no Brasil. A ideia era fazer frente ao neo-malthusianismo, que tomava conta do mundo com a tese de que o crescimento populacional e a queda de mortalidade iria gerar fome. Mas em 1969 o Ato Institucional número 5 nos tirou da universidade e o Cebrap foi criado, com grande esforço de Fernando Henrique Cardoso, e nos atraiu”, disse.
Inovação e continuidade
De acordo com Paula, duas grandes vertentes marcaram o núcleo inicial do Cebrap. Uma delas, liderada por Cardoso e por Francisco de Oliveira, procurou pensar o papel do Estado, a questão política, a democracia e o desenvolvimento. A outra, liderada por nomes como Procópio, Elza Berquó e Paul Singer, teve um papel pioneiro ao pensar a família brasileira sob a perspectiva da demografia – área na qual a pesquisa no Brasil era quase inexistente.
“Essas linhas permanecem até hoje. O pensamento sobre o Estado e a política segue seu curso, especialmente sob a liderança do professor Fernando Limongi. A área de demografia continua ativa, ainda sob a influência de Elza, que permanece no Cebrap e lidera uma importante linha de estudos sobre a saúde da mulher”, explicou.
De acordo com Elza, os trabalhos existentes até então na área de demografia eram feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sob a coordenação de Jorge Mortara – segundo ela, um demógrafo do mais alto nível.
“O trabalho do IBGE era correto e avançado, mas até ali não havia nada feito nessa área na universidade. A visão multidisciplinar que foi introduzida na FSP com a criação de um núcleo de população era muito inovadora. Esse grupo, que foi dispersado pelo AI-5, voltou a se aglutinar com o Cebrap”, disse.
Segundo Paula, os estudos feitos atualmente estão divididos nas seguintes áreas: “Conflitos ambientais”, “Cultura e política”, “Filosofia e política”, “História”, “Política e sociedade” e “População e sociedade”. Há também núcleos de pesquisa temáticos, como “Cidadania e desenvolvimento” e “Direito e democracia”.
Outras áreas, como os estudos de religião, inaugurados por Cândido Procópio – que analisava a relação entre desenvolvimento, protestantismo e modernização –, também permanecem. “O Cebrap ainda tem um grupo – no qual me incluo – que trabalha as questões de religião na sociedade brasileira contemporânea”, disse.
Paula aponta que os estudos na área de “Direito e filosofia” também têm se fortalecido muito, em uma parceria entre filósofos do Cebrap, liderados por Marcos Nobre, e advogados da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Eles estão olhando – sobretudo a partir da inspiração de Jürgen Habermas, é um autor que pensa os procedimentos da sociedade democrática – o funcionamento desse mundo particular do direito. Refletem sobre a lógica dessa máquina e sobre os resultados que ela gera”, disse Paula.
Cepid: renovação
O livro São Paulo: crescimento e pobreza, lançado pelo Cebrap em 1976, lançou uma linha de estudos que se desdobraria, décadas depois, no trabalho feito pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa Inovação e Difusão (Cepids) da FAPESP.
“Esse livro, que marcou época, foi resultado do primeiro estudo sobre o modo de crescimento da cidade e o avanço da pobreza a partir da especulação e da apropriação das terras urbanas. Na esteira dos estudos urbanos, o CEM está tentando pensar essa relação entre espaço urbano e pobreza, enfatizando não tanto o território, como era feito antes, mas enfatizando as redes de relação. Os estudos atuais mostram que as pessoas têm maior ou menor chance de acesso à cidade e seus equipamentos públicos dependendo do modo como elaboram suas redes”, disse Paula.
Ela conta que o CEM, ao trazer novos bolsistas e pesquisadores, teve papel importante na renovação do Cebrap. “Depois da fase áurea, que foi aproximadamente até a redemocratização, em 1985, o Cebrap passou por um momento difícil, quando perdeu apoio de alguns financiadores. Isso durou toda a década de 1990. A criação do CEM, em 2001, deu um novo fôlego à instituição”, destacou.
Segundo Elza, o Cebrap teve um papel fundamental na redemocratização do país. “Todos nós tínhamos um compromisso muito grande com a redemocratização do país e, naquele momento, o Cebrap era um centro vivo de estudos e reflexões”, disse.
A professora afirma, no entanto, que conviver com a ditadura fazendo pesquisa sobre a realidade brasileira não era uma tarefa nada fácil. “Quando o Cebrap produziu São Paulo: crescimento e pobreza, a então sede na rua Bahia foi atingida por uma bomba. Isso dá uma ideia de como era difícil sobreviver. Um momento de angústia para mim foi saber, em determinada noite de 1968, que na manhã seguinte não poderia mais pisar na FSP, onde eu era professora titular. Minhas coisas tiveram que ser retiradas por amigos”, contou.
Comemoração e internacionalização
De agora em diante, segundo Paula, o Cebrap investirá em sua internacionalização, com a criação da Cátedra Ruth Cardoso. “Essa iniciativa terá o objetivo principal de trazer pesquisadores estrangeiros para temporadas no Brasil, aumentando a interação com centros de pesquisa internacionais”, disse.
Em comemoração aos 40 anos do Cebrap serão lançados, ainda em 2009, um livro – coordenado pelo professor Adrian Lavalle – e um DVD contendo entrevistas com personalidades que fizeram parte da história da instituição e do Brasil, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira, José Arthur Giannotti, Elza Berquó, Roberto Schwarz, José Serra e Fernando Novais.
“O livro fará uma análise da atual situação das fronteiras de pesquisa nas diversas áreas de pensamento do Cebrap – política, história, cultura, cidade, entre outras. O DVD terá 12 entrevistas com membros da geração fundadora da instituição, associadas a imagens de época”, disse Paula.