A identificação entre evangélicos e conservadorismo no Brasil hoje é tal que os termos são quase sinonimizados. Não à toa, afinal a hegemonia da direita evangélica em nossa paisagem religiosa e política é rumorosa, vários de seus adeptos estiveram na dianteira do bolsonarismo e alguns até chefiaram áreas estratégicas do último governo, casos de Damares Alves na pasta dos Direitos Humanos, Milton Ribeiro na Educação, e André Mendonça na Justiça e Segurança Pública. Mas, como convém às conjunturas históricas de polarização política, os contrários se reforçam, ainda que nem sempre na mesma proporção. E o que muita gente não sabe é que há uma esquerda evangélica reemergindo publicamente no Brasil.
Esquerda porque se trata de um conjunto de grupos e líderes evangélicos que se classificam entre si e são classificados por seus oponentes assim mesmo, como de “esquerda” ou “progressistas”. Conquanto heterogêneo, esse conjunto desposa um programa político com ênfases mais ou menos pluralistas, redistributivistas, de defesa da democracia, das instituições da República, dos direitos humanos e da preservação ambiental. Me refiro a coletivos como Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (criada em 2016); Cristãos Contra o Fascismo (2018); Rede Fale (2002); Novas Narrativas Evangélicas (2022); Bancada Evangélica Popular (2020); e mesmo a formações evangélicas antirracistas, feministas e LGBTQIA+, isto é, que sincronizam politicamente diversos marcadores sociais da diferença com sua identidade religiosa e partem dessa complexidade para um ativismo de reivindicação de direitos, casos de Evangélicas pela Igualdade de Gênero (2015); Evangélicxs pela Diversidade (2018); Movimento Negro Evangélico (2004); Vozes Marias; Discipulado Justiça e Reconciliação (2016). Há outros tantos movimentos, organizações não governamentais, pastorais, igrejas e influenciadores digitais, boa parte deles criados na última década.
E o que esses atores disputam com seus irmãos de fé da direita evangélica é a própria definição normativa de sua identidade religiosa. “É possível ser evangélico e ser de esquerda?” ou “é possível ser cristão e votar em Bolsonaro”, são perguntas retóricas que estampam postagens nas timelines de ambos os lados e seus partidários. O conteúdo político mais adequado para a identidade evangélica, quem é mais representativo e legítimo e, no limite, o que é ser evangélico e porquê, são pontos centrais do conflito que opõe Silas Malafaia e Marco Feliciano de um lado; Henrique Vieira e Ariovaldo Ramos de outro, para ficar entre pastores.
Mas, antes que o leitor imagine que essa disputa se restringe a posts em redes sociais, devo dar conta do expediente offline dos evangélicos de esquerda. Eles promovem atividades religiosas em ocupações de movimentos como o MTST e MST; apoiam sindicatos e partidos de esquerda; realizam campanhas, fóruns, congressos, seminários, rodas de conversa, cultos temáticos de protesto; passeatas e vigílias em praças e ruas; oferecem cursos de teologias não hegemônicas (teologia da libertação, teologia da missão integral, teologia negra, teologia feminista, teologia queer); publicam livros, cartilhas e estudos bíblicos sobre direitos, justiça e igualdade social; lançam podcasts; mantêm programas de rádio; interveem na imprensa; se organizam eleitoralmente lançando candidaturas de evangélicos progressistas ou apoiando postulantes de esquerda; enfim, mesclam atividades de formação, agitação e propaganda, advocacy, denúncia, produção e difusão de conteúdos e articulação política e eleitoral.
A demanda a que essa reemergência pública da esquerda evangélica responde é clara. Seus adeptos estão reagindo ao protagonismo da direita evangélica, de quem almejam se distinguir, dissociando sua identidade religiosa do direitismo político e desgarrando seus irmãos do pastorado bolsonarista
0Esse repertório de ações é encampado por uma esquerda evangélica reemergente; sim, pois não se trata de uma novidade. No Segundo Império, frações protestantes apoiaram movimentos pela abolição da escravatura, pela proclamação da República e pela laicização do Estado, pautas do ideário liberal e progressista do Brasil oitocentista. Nas décadas de 1950 e 1960 grupos protestantes estiveram mais à esquerda, pautando a “responsabilidade social” como um dever dos cristãos e se engajando em movimentos sociais reformistas, cuja centralidade era o conflito de classes - é dessa época o ciclo de conferências do Setor de Responsabilidade Social da Confederação Evangélica Brasileira. A mais famosa delas se chamou “Conferência do Nordeste” e ocorreu em Julho de 1962 em Recife (PE) com o tema “Cristo e processo revolucionário brasileiro”, reunindo pastores, leigos, teólogos e intelectuais como Paul Singer, Celso Furtado, Gilberto Freyre e Juarez Brandão Lopes. Semelhante ativismo se também se viu no combate à ditadura e na construção da redemocratização nas últimas quatro décadas, com destaque para o Movimento Evangélico Progressista (MEP) nos anos 1990 e o Missão na Íntegra nos anos 2000.
Acontece que a trajetória de movimentos sociais não é linear, nem estanque. Os atores coletivos irrompem no espaço público em função de problemas sociais concretos sobre os quais se engajam, mas tão logo se arrefecem os problemas públicos, os atores coletivos se retraem, para reemergir visivelmente só mais tarde, em novas conjunturas, respondendo a novas demandas. Sendo assim, a pergunta que nos resta é: a que demandas responde e em que condições se dá a atual reemergência pública da esquerda evangélica?
Sua principal condicionante histórica é a radicalização da direita evangélica no contexto de forte polarização política e afetiva no país. Em 2022, segundo dados do Agregador de Pesquisas Eleitorais por Religião do CEBRAP, dois terços dos eleitores evangélicos sufragaram Jair Bolsonaro (PL). O então presidente da República contou com o apoio de um sem-fim de pastores, cantores de música gospel e influenciadores digitais em sua campanha baseada em um programa de viés antipluralista, arrimada na defesa do tradicionalismo familiar e sexual. Nos termos reproduzidos igrejas afora, as bandeiras do aborto, do comunismo, dos direitos do público LGBTQIA+ e da “ideologia de gênero” eram terríveis ameaças ao Brasil, à família tradicional e ao cristianismo. Aquele que as empunhava, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), venceu as eleições com apenas 30% dos votos dos evangélicos.
A despeito da derrota em 2022, Bolsonaro obteve no eleitorado evangélico a mesma vantagem que alcançara sobre o rival em 2018, de trinta pontos percentuais. O desempenho demonstrou a força da mobilização da direita evangélica que estribou suas candidaturas, valendo-se de capilaridade, grandes máquinas eclesiásticas, meios de comunicação em massa e autoridade pastoral. O que chamou a atenção na última, porém, foi a onda de conflitos que gerou, com inúmeros relatos de assédio, ameaças, expulsões e agressões de fiéis por parte de seus irmãos bolsonaristas. Em Goiás, um membro da Congregação Cristã no Brasil foi baleado dentro do templo por um apoiador de Bolsonaro. Ambos frequentavam a mesma igreja.
Por outro lado, ao radicalizar politicamente, os evangélicos de direita afastam fiéis ideologicamente moderados e desengajados, empurrando-os para a zona de influência da esquerda evangélica, a quem coube nas últimas eleições o discurso “contra o voto de cajado”, em defesa da liberdade de consciência e da autonomia dos púlpitos frente à política partidária. Em segundo lugar, inobstante a votação que Bolsonaro arrecadou nesse eleitorado, em números absolutos cerca de 12 milhões de eleitores evangélicos votaram em Lula, o que não é pouco. Ainda mais em um contexto em que o custo social do voto ao candidato petista, para evangélicos, foi altíssimo, já que implicava em contrair conflitos interpessoais, familiares e, até mesmo, em ser convidado a se retirar de sua igreja.
Por fim, a demanda a que essa reemergência pública da esquerda evangélica responde é clara. Seus adeptos estão reagindo ao protagonismo da direita evangélica, de quem almejam se distinguir, dissociando sua identidade religiosa do direitismo político e desgarrando seus irmãos do pastorado bolsonarista. Sabemos, portanto, que não fosse o recrudescimento da polarização política no país, a reaparição da esquerda evangélica teria outras feições e tempos, já que significa uma reação. Mas também é correto dizer que ela expressa algo da própria politização da diferença na sociedade brasileira, algo que se avolumou desde a abertura democrática, ganhou seus confins na última década e que nos fez tanto mais diversos quanto mais cidadãos.
Vítor Queiroz de Medeiros é cientista social, mestre e doutorando em sociologia (USP). Estuda ativismos evangélicos progressistas, integra o projeto temático Pluralismo Religioso e Diversidades no Brasil Pós-Constituinte (CEBRAP/FAPESP) e o Observatório da Religião e Interseccionalidades.