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Gazeta Mercantil

Qualidade de vida garante boa memória (1 notícias)

Publicado em 18 de dezembro de 1998

Por Regina Neves - de São Paulo
A evidente constatação de que a memória enfraquece com o correr dos anos já está mais do que confirmada pela medicina. Mas, esse desgaste inevitável pode ser retardado e mesmo reduzido a proporções mínimas se forem seguidos alguns simples preceitos médicos. Eles, na verdade, se resumem à mais óbvia das constatações: a necessidade de levar uma vida saudável, indispensável também para quem, ainda longe da velhice, se preocupa com lapsos de memória. "Faça exercícios físicos regulares, eles melhoram a oxigenação do corpo e o cérebro é muito sensível a isto", recomenda o psiquiatra Cássio Bottino. "Tenha uma alimentação saudável, mantenha uma vida intelectual ativa, combata o estresse." Para o neurologista Paulo Caramelli, a memória é altamente dependente da atenção. Muitas vezes, coisas que as pessoas esquecem com freqüência, como a chave do carro, nomes ou números de telefone, na verdade, podem refletir apenas desatenção. E a dificuldade em se concentrar está ligada ao estresse. "Um executivo, há três ou cinco anos sem férias, estará logicamente com a memória comprometida", diz Caramelli. Muitas vezes, o problema pode ser resolvido de forma simples, por exemplo, mudando a maneira de trabalhar. "A capacidade de atenção é esgotável, não dá para fazer três coisas ao mesmo tempo", explica. "É necessário analisar nosso ritmo de trabalho e modificá-lo, fazer uma atividade por vez." Esta mudança, que Caramelli chama de higienização do trabalho deve ser levada a todas as outras atividades. Problemas com a memória devem começar a preocupar quando passam a interferir com as atividades do dia-a-dia e, aí, o primeiro passo é procurar um médico que vai verificar se há algum problema específico de saúde. Explica Bottino que é preciso, primeiro, analisar se a queixa de esquecimentos é persistente, se não se trata de um fato eventual; se o problema chega a ser notado pela família ou pessoas de convivência muito próxima e se o nível de memória acompanha os de outras pessoas da mesma idade e do mesmo grau de escolaridade. Para Paulo Caramelli, se o declínio da memória fiar muito intenso, é preciso verificar se não está ligado a alguma patologia como o mal de AIzheimer, anemia, disfunções da tireóide, tumores ou depressão, entre outras que podem ser tratadas com medicamentos específicos ou com a psicoterapia. Mas estes casos são mais raros. Embora "exercícios de memorização" só ajudem em casos específicos — decorar listas de números, por exemplo, só ajuda a reter listagens cada vez maiores —, a estimulação constante do cérebro é muito importante para a conservação da boa memória. Tanto que, comprovadamente, pessoas de maior nível intelectual têm um declínio muito mais lento e às vezes imperceptível de perda da memória na terceira idade. Bottino explica que a memória não é considerada uma estrutura única. Existem sistemas separados que podem agir em conjunto. E a chamada "memória secundária" — a dificuldade para guardar fatos novos —, que pode apresentar sinais de desgaste a partir dos 60 anos. Todos nós temos, em qualquer idade, algum tipo de falta de memória, como dificuldade em lembrar de nomes ou de rostos. Pode ser uma inabilidade específica ou que não foi suficientemente estimulada ao longo da vida. É por isso que há pessoas com maior memória visual ou verbal para cálculos ou, então, para orientação espacial. Para Bottino, "o que se precisa verificar é se o mal é persistente." Eventuais esquecimentos sobre onde a carteira ou a chave do carro são esquecidas não devem causar preocupações excessivas. Bottino diz que a memória, a grosso modo, funciona como a de um computador: "Limpamos as informações corriqueiras do dia-a-dia para guardar espaço para lidarmos com problemas mais importantes". Mas não há motivo para preocupação: a capacidade do cérebro humano é inacreditavelmente grande. Só como exercício, Von Neumamn, especialista norte-americano em inteligência artificial, autor do livro Computer and the Brain", calcula em dez elevado à vigésima potência o número de bits que corresponderiam ao total de impulsos neurais que passam pelo cérebro humano durante uma vida inteira. A memória humana funciona por meio de associação de idéias. Isto significa que o cérebro junta diferentes peças de informação com as quais forma uma complexa estrutura de conhecimento, que pode ser acessada de diferentes formas. Por exemplo, ao pensar a palavra "água", a memória pode associá-la tanto a "azul, mar, férias" quanto a "peixe, ataque de tubarão, sangue". Isso explica que a memória humana trabalha com um gigantesco número de informações associadas, que podem ser trocadas com uma incrível rapidez. Todo mundo já viveu a situação em que tenta se lembrar de alguma coisa — o nome de um filme, um número de telefone, por exemplo— e quanto mais desesperadamente tenta, mais difícil fica. Isso acontece, segundo o especialista norte-americano Alfred Dobler, porque foi perdida alguma conexão no link do cérebro ligado a esta informação específica, possivelmente uma situação causada por estresse. A memória humana armazena informações em diferentes níveis. Há dados guardados por pouquíssimo tempo, outros por um período relativamente longo e uma parte que retém as informações por muito tempo, até para a vida inteira. Para muitos, é impossível relembrar um número de telefone usado apenas uma vez porque ele estava protegido "apenas" na parte do armazém da memória destinada aos fatos a ser estocados por pouquíssimo tempo. Como não há necessidade de que tudo seja estocado no cérebro, segundo Alfred Dobler, os diferentes estágios da memória humana têm a função de um filtro que o protege do fluxo excessivo de informações recebidas todos os dias. Esta complexa rede de informações e a capacidade de associações de que é capaz o cérebro humano encanta os especialistas em inteligência artificial. Para o professor João Fernando Marar, da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) em Bauru — que desenvolve trabalhos com inteligência artificial que misturam modelos biológicos, neuropsíquicos e matemática —, "muito do que a ciência da computação tem de conhecimento se baseia no que aprendeu da neurologia, da psicologia, da biologia e da medicina." Ele desenvolve alguns tipos de neurônios artificiais que tentam reproduzir habilidades humanas, como o reconhecimento de objetos específicos. "O ser humano é uma máquina, sempre recebendo estímulos e classificando objetos", diz. "No futuro, os computadores quânticos que deverão substituir a atual era do silício vão tentar se aproximar, cada vez mais, da capacidade biológica." CAPACIDADE DE ARMAZENAMENTO DE DADOS Com tanta facilidade de acesso às mais variadas informações já armazenadas em livros, nos computadores e na Internes — que além de facilitar o acesso aos novos conhecimentos, liberam a memória de armazenar milhares de dados —, nem sempre as pessoas se lembram de como a capacidade de memorização já foi importante para o homem. Sem ela, centenas de milhares de narrativas e descobertas científicas teriam, certamente, se perdido. Não é, portanto, de estranhar a importância que o desenvolvimento desta capacidade tenha gerado, na Antiguidade e na Renascença, tantos estudos e tratados, como a mnemônica que, segundo o dicionário Aurélio, é a arte e técnica de desenvolver e fortalecer a memória mediante processos auxiliares artificiais, como combinações e imagens. A mnemônica teria surgido com o poeta grego Simonide, em 470 a.C. Ele teria conseguido se lembrar da posição exata em que estavam diversas pessoas vitimadas por um acidente que destruiu um teatro, co-relacionando cada uma delas ao local onde estavam e, assim, tornou possível o reconhecimento dos corpos. A partir daí, homens tão diferentes e separados no tempo como Platão e Aristóteles, Cícero e Quintiliano, Giordano Bruno e Inácio de Loyola, além de centenas de outros, passaram a construir intrincados palácios mentais, cheios de cômodos — onde cada conhecimento deveria ser armazenado — e a escrever variados tratados mostrando seus métodos. O jesuíta Manco Ricci, enviado à China em 1596 para cristianizar o país chegou a escrever, com símbolos chineses, um tratado em que ensinava a importância das técnicas mnemônicas e de como utilizá-las. Segundo Jonathan D. Spence, no livro "O Palácio da Memória de Matteo Ricci (Companhia das Letras), o jesuíta ensinava que era preciso construir, usando a imaginação, a partir de um palácio que fosse conhecido ou criado com a mente, um enorme edifício mental. O objetivo desta construção mental era o de oferecer espaços para a armazenagem de milhares de conceitos. O ser humano deveria dar uma imagem, escreveu Ricci, a tudo o que quisesse lembrar e a cada uma dessas imagens atribuir uma posição onde ela pudesse descansar tranqüilamente até que fosse chamada por meio de um ato de memória. Intrincados processos mnemônicos como este foram ensinados a todos os estudantes da época. Se a tecnologia nos livrou da necessidade deste armazenamento, conservar uma excelente memória, no entanto, deve continuar a preocupar o homem. Afinal, ninguém conhece o futuro. No filme Farenheit 451, uma totalitária sociedade do futuro queima todos os livros e o conhecimento só sobrevive porque um grupo de homens, escondidos na floresta, se dedica, cada um deles, a decorar e manter na mente o seu livro predileto.