Conjunto de RNA de vírus dos dois casos confirmados no Brasil foi analisado por pesquisadores, que identificaram origens diferentes
Pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) e do Instituto Adolfo Lutz (IAL), em parceria com cientistas britânicos da Universidade de Oxford, sequenciaram em tempo recorde o genoma do novo coronavírus encontrado no Brasil.
O processo, que normalmente leva 15 dias para ser concluído, foi realizado em 48 horas no caso do primeiro paciente identificado com a doença no Brasil, e as informações foram divulgadas na sexta-feira (28). O genoma do vírus encontrado no segundo caso confirmado do país também foi sequenciado pela mesma equipe e publicado na segunda-feira (2). São os dois únicos casos comprovados da doença no Brasil.
Duas cientistas brasileiras se destacaram no feito. Uma delas é Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP e coordenadora do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), especializado em epidemias de arboviroses, como dengue e Zika.
A outra é Jaqueline Goes de Jesus, que coordenou o sequenciamento, pós-doutoranda na Faculdade de Medicina da USP e bolsista da agência de fomento Fapesp. Junto dela, atuou o pesquisador Claudio Tavares Sacchi, do Instituto Adolfo Lutz.
“Em média, os países estão conseguindo fazer o sequenciamento em 15 dias. Queríamos fazer em 24 horas, bater o recorde, mas não funcionou tudo (no processo). Fizemos em 48 horas, como o Instituto Pasteur (na França)”, afirmou Sabino à BBC News Brasil.
No Brasil, subiu para 433 o número de suspeitos de infecção pelo novo coronavírus depois que o Ministério da Saúde mudou a metodologia de contabilização. Ainda não há evidências de transmissão do vírus dentro do país.
O novo coronavírus já matou mais de 3.000 pessoas em todo o mundo, com mais de 90 mil casos de infecção. Inicialmente chamado de 2019-nCoV, ele foi posteriormente batizado de Sars-CoV-2. A doença causada por ele foi nomeada de covid-19 pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Para que serve o sequenciamento
Entre as principais utilidades de se mapear o genoma de um vírus está ajudar a entender o percurso da transmissão e o tempo em que ele está presente em determinada região ou país. Ao desvendar o histórico do coronavírus, autoridades e pesquisadores podem adotar as medidas adequadas para tentar conter sua disseminação. O sequenciamento de doenças como ebola e zika foi fundamental no desenvolvimento de estratégias de combate a elas.
Diversos bancos de dados online disponibilizam as informações sobre os genomas de Covid-19 sequenciados. Cada país que publica um sequenciamento contribui para a construção de um volume de informação compartilhada que ajuda cientistas e pesquisadores ao redor do mundo.
Um dos principais bancos de dados é do Centro Nacional de Dados Genômicos, da China. Até segunda-feira (2) estavam listados 255 genomas completos do novo coronavírus, de 23 países diferentes, no site da instituição. Cada um destes genomas tem uma sequência genética própria. No Brasil, o governo federal criou a Rede Vírus MCTIC, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, em parceria com o Ministério da Saúde, para a troca de informações.
A primeira amostra do novo coronavírus sequenciado no Brasil, no Instituto Adolfo Lutz, mostrou maior correspondência com um vírus sequenciado na Alemanha. Isso indica que ele infectou pacientes naquele país antes de ir para a Itália, local por onde passou o primeiro brasileiro detectado com a doença. O segundo caso brasileiro, de um homem que também voltou contaminado da Itália, se assemelha a uma sequência encontrada na Inglaterra.
A diversidade de sequências indica que o vírus já está bem estabelecido na Europa, pois houve tempo para que ele desenvolvesse mais mutações. “Tal fato sugere que a epidemia de coronavírus está ficando madura na Europa, ou seja, já está ocorrendo transmissão interna nos países europeus”, afirmou Sabino ao site da agência Fapesp.
Nos Estados Unidos, o sequenciamento do genoma de duas vítimas ajudou a entender o comportamento do vírus em Washington, estado onde residiam todas as seis vítimas fatais registradas nos EUA até agora. Comparando genomas do coronavírus encontrado em pessoas que não se conheciam, pesquisadores verificaram que eles eram da mesma cepa. Isso sugeriu que o vírus já circulava na região há cerca de seis semanas e que as vítimas não foram contaminadas por alguém vindo de fora do país.
As informações de sequenciamentos podem ser acessadas por laboratórios e empresas de biotecnologia. A partir dos dados, é possível realizar exames diagnósticos em pacientes com suspeitas de vírus, assim como recriar trechos do genoma do coronavírus para pesquisas com o objetivo de fabricar vacinas contra o Sars-CoV-2.
“Ter a sequência do genoma permite projetar vacinas com probabilidade de funcionar, com base no que sabemos sobre outros coronavírus. O sequenciamento do genoma é absolutamente crucial ”, afirmou Rachel Roper, pesquisadora canadense que coordena um programa de vacina do Sars, ao site The Scientist.
Atualmente, pesquisadores em diversos países correm para desenvolver uma vacina para a covid-19. Os trabalhos começaram ainda em janeiro, quando foram disponibilizados os primeiros sequenciamentos genéticos do SARS-CoV-2.
Uma empresa de biotecnologia americana, Moderna, anunciou uma vacina experimental contra o novo coronavírus em 24 de fevereiro. O desenvolvimento levou 42 dias, considerado um tempo recorde. Na China, a empresa Clover Biopharmaceuticals, em parceria com a britânica GlaxoSmithKline, declarou que poderá testar uma vacina em abril.
Como se sequencia um genoma
Cientistas chineses divulgaram o primeiro sequenciamento de um genoma do novo coronavírus em 10 de janeiro. Foi cerca de um mês depois do primeiro caso registrado na cidade de Wuhan, em 8 de dezembro, quando ainda era um vírus desconhecido. Foi um resultado extremamente rápido. Na epidemia de outro coronavírus, o Sars-2, o primeiro caso foi registrado em novembro de 2002, e o primeiro sequenciamento genômico só foi concluído em abril de 2003.
O genoma é o conjunto de DNA ou RNA (no caso do coronavírus) contido num organismo. Inclui todas as informações sobre esse organismo, de características físicas a comportamentos. Sequenciar um genoma significa, literalmente, escrever uma sequência quilométrica de letras A, C, G e T. Cada letra diz respeito a um dos quatro tipos de base, ou nucleotídeos presentes no DNA – respectivamente, as substâncias adenina, citosina, guanina e timina.
Em cada sequência genômica, as letras estarão em ordem diferente. O genoma humano é feito de 3 bilhões dessas letras. O genoma do SARS-CoV-2 tem aproximadamente 30 mil “caracteres” genéticos.
Atualmente, a “leitura” da sequência é realizada por equipamento de alta tecnologia, de tamanho pequeno – só um pouco maior que um pendrive. É um procedimento bem mais fácil e barato do que no tempo da primeira epidemia de Sars. O custo foi reduzido em até 100 vezes.