Chances de inviabilizar políticas públicas pela via judicial no Brasil não são desprezíveis
As chances de inviabilizar (parcial ou integralmente) políticas públicas pela via judicial no Brasil não são desprezíveis. Só nos vinte primeiros meses do governo Bolsonaro, por exemplo, 248 ações de controle concentrado de constitucionalidade, questionando ações ou omissões do Presidente, foram protocoladas no Supremo Tribunal Federal (STF). Em um quinto das vezes o Tribunal atendeu aos pleiteantes, impondo derrotas a Bolsonaro – se consideradas apenas as ações que tiveram alguma decisão (de mérito ou liminar), esse percentual sobe para um terço[1].
Embora seja precoce inferir um padrão nesse curto espaço de tempo, pelo que conhecemos da intensidade de interferência do Supremo na política, esses números não parecem se dever à pandemia de COVID-19, ou a alguma atipicidade do governo Bolsonaro. Na política nacional já é praxe que os grupos de interesse derrotados no processo legislativo se mobilizem para buscar reverter o malogro no STF. Evidência disso está no fato de que uma a cada três emendas constitucionais aprovadas até maio de 2020 tenham sido contestadas no Supremo[2].
Os grupos de interesse que mais buscaram reverter emendas pela via judicial foram as associações de magistrados (autoras de 35% das ADINs contra ECs), e os partidos políticos (33% dessas ADINs). Até junho de 2020 o Supremo tinha respondido favoravelmente aos pleiteantes em 1/5 dessas ações, determinando limitações em 15 das 37 emendas questionadas. Ou seja, duas a cada cinco emendas arguidas de inconstitucionalidade foram vetadas ou limitadas. Chama atenção que entre os interesses que mais se beneficiaram dessas decisões estejam os das carreiras públicas da justiça, em especial, das associações de magistrados, que conseguiram frear mudanças nas regras de aposentadoria, contribuição previdenciária e remuneração.
Numa tentativa exploratória de responder quais os grupos de interesses organizados que mais se beneficiaram da judicialização da política no Brasil, utilizo aqui a taxa de sucesso que cada grupo obteve em ações de controle concentrado de constitucionalidade no STF, em dois períodos: entre 1978-1988 (considerando todas as RPs com decisão final)[3] e entre 1989 e fevereiro de 2014 (considerando todas as ADINs com decisão final). A taxa de sucesso é dada pela proporção das decisões que inviabilizaram parcial ou integralmente a legislação sob escrutínio, considerando tanto as decisões de mérito quanto o efeito das liminares.
A taxa geral de sucesso das RPs (57%) é alta se comparada à taxa de sucesso das ADINs (33%), o que pode ser atribuído, em parte, ao papel de gatekeeper que o procurador-geral da República (PGR) exercia em matéria de revisão judicial, filtrando as demandas que eram levadas ao Supremo. Ainda assim, invalidar uma a cada três normas questionadas no tribunal não pode ser considerado algo trivial. Embora significativas, as chances de inviabilizar uma norma no STF não estão igualmente distribuídas entre os diferentes grupos de interesse que conseguiram acessar o tribunal.
O padrão decisório do Supremo indica que os magistrados (por meio de suas associações) foram consistentemente mais atendidos em suas reivindicações quando comparados aos demais grupos de interesse que atuaram no tribunal.
Governos (legislativos e executivos, federais e estaduais) e as demais carreiras públicas da justiça (considerando Ministério Público, Advocacia e Defensoria Pública e Delegados) também obtiveram taxas de sucesso mais altas comparadas à média em ambos os períodos.
O Supremo respondeu favoravelmente ao pleito dos magistrados em 76% das RPs de sua autoria. O segundo grupo mais atendido foi o governo, que teve 66% de respostas favoráveis às suas demandas, seguido das demais carreiras da justiça, com 61%, e dos interesses empresariais, com 59%. As associações de magistrados encontraram um tribunal bastante receptivo às suas demandas também no pós-Constituição de 1988. O Supremo decidiu favoravelmente aos magistrados em pouco mais da metade de suas demandas em ADINs, percentual semelhante de resposta favorável alcançado pelo governo, que foi de 51%. As demais carreiras públicas da justiça tiveram 45% de sucesso. Já os interesses empresariais encontraram um Supremo menos receptivo às suas reivindicações no pós-88, obtendo poucas vitórias (15%).
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) logrou elevadas taxas de sucesso em ambos os períodos – 55% nas RPs e 34% nas ADINs. Os demais servidores públicos (agrupados na categoria burocracia), tiveram considerável sucesso durante a transição democrática (41%), e poucas vitórias no pós-88 (10%). O mesmo se verifica com os demais grupos de interesse ligados à sociedade civil (como associações de moradores, representantes de nações indígenas, e ONGs): 56% de sucesso durante a transição democrática, e nenhuma vitória nos pós-88. As associações de profissionais liberais e do mundo do trabalho tiveram 23% de sucesso no período de transição democrática, e raras vitórias em ADINs (4%).
Os partidos políticos estiveram ausentes da judicialização no período de transição, e conseguiram poucas vitórias em ADINs. A baixa taxa de sucesso dos partidos pode ser compreendida a partir do uso político que fazem da corte. Como argumentou Taylor [4], os partidos podem ter outros objetivos estratégicos ao acionar a via judicial, como demarcar oposição ou desacreditar governos e adversários políticos, não buscando exclusivamente reverter uma política pública ou retirar uma norma do ordenamento jurídico.
Como grupo de interesse que mais se beneficiou da judicialização da política nessa perspectiva, os magistrados buscaram a via judicial com agendas distintas nesses dois momentos: no período de transição democrática a principal demanda foi o fortalecimento institucional, em defesa da independência e da autonomia administrativa do Poder Judiciário, com a defesa de vantagens econômicas vindo em segundo lugar. Após a Constituição de 1988 essa ordem se inverteu, com as associações de magistrados perseguindo majoritariamente interesses de carreira, com a defesa institucional ficando em segundo lugar. Ações com alcance mais amplo, relativas aos direitos fundamentais, foram residuais em ambos os períodos.
A judicialização da política serviu aos magistrados num primeiro momento para a defesa de poderes institucionais, em busca de independência e autonomia administrativa, e após a obtenção dessas garantias constitucionais, o grupo passou a utilizar a revisão judicial majoritariamente para avançar interesses corporativos. A pauta corporativa dos magistrados nas ADINs faz lembrar a afirmação de Posner [5], de que os juízes se parecem com quaisquer outros atores econômicos, indivíduos interessados em si mesmos e dispostos a maximizar sua própria utilidade pessoal.
O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
Base: 703 RPs com decisão final entre 1978-1988 (governo: 268; burocracia: 148; OAB: 88; sindicatos patronais/ empresas: 82; carreiras públicas de justiça: 44; magistratura: 29; trabalhadores/ profissionais liberais: 26; sociedade: 18) e 2.716 ADINs com decisão final entre 1989 e fevereiro de 2014 (partido político: 573; governo: 780; burocracia: 154; OAB: 107; sindicatos patronais/ empresas: 228; carreiras públicas de justiça: 621; magistratura: 79; trabalhadores/ profissionais liberais: 126; sociedade: 48).
Fonte: Pesquisa com financiamento da FAPESP (13/08188-9 e 18/00395-9)
[1] Dados extraídos de Cunha, Luciana Gross. Oliveira, Fabiana Luci de e Buzolin, Lívia. “O STF e a judicialização de políticas: lócus de resistência ou governança autoritária?”. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS. De 01 a 11 de dezembro de 2020.
[2] O levantamento considerou as 106 emendas constitucionais aprovadas no Brasil até maio de 2020, e as 6 emendas constitucionais de revisão de 1993. Dados extraídos de Diego Werneck Arguelhes e Fabiana Luci de Oliveira “Em decisões contra emendas à Constituição, STF atende mais a carreiras da Justiça”. Folha de S. Paulo. 07.ago.2020.
[3] Judicialização da política é o conceito mais mobilizado na literatura especializada para tratar do protagonismo político do Poder Judiciário. É um termo com múltiplas dimensões. Aqui considero a dimensão do impacto das decisões judiciais na produção legislativa, pela via do controle abstrato de constitucionalidade. Embora os estudos sobre a judicialização da política no Brasil privilegiem o cenário pós-Constituição de 1988, vários estudos já mostraram a possibilidade de ocorrência desse fenômeno em contextos autoritários ou de democracias não consolidadas. No Brasil, o STF tem a prerrogativa da revisão judicial desde 1965, quando a emenda n. 16 estabeleceu o controle abstrato, via ação de Representação de Inconstitucionalidade – RP. Embora fosse prerrogativa exclusiva do PGR ingressar com a RP no STF, era comum que as partes interessadas peticionassem junto a ele sua propositura. Dessa forma, as petições iniciais permitem identificar os requerentes dessas ações.
[4] Taylor, Matthew. “Judging policy – Courts and policy reform in democratic Brazil”. Stanford University Press, 2008.
[5] Posner, Richard. “What do Judges Maximize? (The Same Thing Everybody Else Does)”. Supreme Court Economic Review, v 3, 1993, p. 1–41.
Fabiana Luci de Oliveira – Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. É líder do Núcleo de Estudos em Direito, Justiça e Sociedade (NEDJUS-UFSCar). Atua nas áreas de Sociologia do Direito, Metodologia de Pesquisa, Survey e Opinião Pública.