A canacistatina, um fungicida natural e inócuo ao meio ambiente, é uma descoberta que surge como mais uma alternativa ecologicamente correta para o combate e controle dos fungos Fusarium e Colletotrichum que atacam os canaviais.
A descoberta de uma proteína da cana-de-açúcar deve trazer significativos benefícios para as lavouras de cana-de-açúcar. A canacistatina, como é chamada, tem ação fungicida e pode se tornar um produto natural contra pragas, reduzindo a aplicação de defensivos agrícolas sintéticos. A proteína foi identificada por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que trabalharam no projeto de seqüenciamento genético da cana-de-açúcar, denominado Programa Genoma Cana. encerrado no final de 2000.
O biólogo Flávio Henrique da Silva, coordenador da pós-graduação em genética e evolução da UFSCar e sua aluna de doutorado, Andréa Soares da Costa, encontraram a canacistatina buscando uma proteína que tivesse ação eficaz de defesa contra fungos. Para isso, foi preciso comparar genes da cana e de outras plantas que já tinham seus genomas conhecidos, como o arroz, e que codificassem uma proteína de defesa. "Vimos que algumas proteínas, chamadas cistatinas, quando liberadas inibiam as enzimas denominadas cisteíno-proteases, que são utilizadas pelos fungos para invadir a parede dos vegetais", explica Flávio da Silva. Os pesquisadores perceberam, então, que a cana também tinha uma proteína com essas características. Restava produzi-la em laboratório e testá-la.
Flávio Silva e Andréa isolaram o clone da cana e introduziram o gene estudado dentro de uma bactéria, a Escheri-chia coli, fazendo com que o microorganismo, via DNA recombinante, produzisse a canacistatina em quantidade suficiente para os testes. O próximo passo foi isolar a proteína da bactéria e proceder as pesquisas e ensaios laboratoriais com ela purificada.
A proteína foi testada primeiramente contra uma espécie de fungo inofensivo às plantas, o Trichoderma reesei, que é empregado na produção de enzimas utilizadas na fabricação de papel. Em contato com a canacistatina, o fungo não foi mais capaz de crescer e se 'desenvolver. Com base nesses resultados, um mês depois de os ensaios terem sido publicados na Biochemical and BiophysicalResearch Communications, os pesquisadores resolveram testar a descoberta contra fungos patogênicos, capazes de produzir doenças.
Verificaram que a proteína era eficaz contra dois gêneros de fungos mais comuns em lavouras de cana-de-açúcar, o Fitsarium e o Colletotrichum, que provocam doenças conhecidas como podridões. Esses microorganismos também atacam e causam danos em plantações de café, laranja, guaraná, pupunha e várias outras culturas agrícolas. "Constatamos, da mesma forma, que a canacistatina era capaz de inibir o crescimento desses fungos, o que a tornava potencial candidata a ser utilizada não só como fungicida. mas também como inseticida natural, porque acreditamos que também possa combater larvas de insetos", comenta Silva.
Podridões - A podridão vermelha, como o próprio nome diz, provoca podridões de cor avermelhada no interior dos colmos da cana-de-açúcar. Os fungos só conseguem penetrar nesses colmos por meio de ferimentos. Em variedades muito suscetíveis, eles podem penetrar até pelas cicatrizes deixadas pelas folhas velhas que se destacaram. Como as cultivares mais vulneráveis não são plantadas comercialmente, o que se dá com mais freqüência é a associação da podridão com a incidência da broca-da-cana.
A broca é uma praga provocada pela larva de um inseto chamado Diatraea saccharalis. cujo adulto é uma mariposa de hábitos noturnos, que realiza a postura na parte dorsal das folhas. Quando nascem, as lagartinhas descem pela folha e penetram no colmo, perfurando-o na região nodal. Dentro do colmo cavam galerias, onde permanecem até a fase adulta.
Por si só, a broca traz danos significativos como a perda de peso, morte de algumas plantas e redução da quantidade do caldo. Mas o principal prejuízo é causado pela ação de agentes patológicos, como o Fitsarium e o Colletotrichum, que penetram pelo orifício, ocasionando, respectivamente, a podridão-de-fusarium e a podridão-vermelha.
Segundo o fitopatologista Yodiro Masuda, do Departamento de Biotecnologia Vegetal da UFSCar. uma vez no interior da cana. os fungos são responsáveis pela inversão e perda de sacarose, por se alimentarem do açúcar acumulado pela planta, além de causar a deterioração dos tecidos. "Dependendo do local de penetração da broca, e por conseguinte dos fungos, pode haver a morte do colmo", explica. "Quando a incidência deste complexo broca-podridões é alta, há reflexo na indústria, pois cai o rendimento do açúcar, e no caso da fabricação do álcool, as canas afetadas provocam contaminações no processo de fermentação, causando menor rendimento", esclarece.
Prejuízos - Algumas pesquisas indicam que em uma propriedade com produção média de 80 toneladas de cana por hectare, as perdas provocadas pela ação conjunta da broca com a podridão podem chegar a 30 quilos de açúcar e 25 litros de álcool por hectare, com apenas 1% de colmos bloqueados.
A forma mais eficiente até agora de controle ao ataque da broca e de podridões é a utilização de variedades resistentes. Outro controle muito utilizado é o biológico, por meio das minúsculas vespas Cotesia flavipes, criadas em laboratório. "Quando liberadas, as vespinhas procuram os furos nos colmos e injetam no interior das lagartas da broca cerca de 50 ovos", explica Yodiro Masuda. Estes ovos dão origem a pequenas larvas da vespa, que se alimentam da lagarta da broca.
Seleção - Segundo o biólogo Flávio Henrique da Silva, a canacistatina é produzida em grau mais elevado em células de folhas e raízes danificadas e é uma inibidora que faz parte do mecanismo de defesa das plantas contra o ataque de fungos ou insetos. Sua ingestão pela lagarta do besouro Leptinotarsa decemlineata, conhecido como besouro da batata-do-colorado, por exemplo, afeta as enzimas digestivas do inseto e altera seu crescimento. Por isso, Flávio da Silva considera que a proteína da cana possa ser utilizada como um inseticida natural, o que seria uma alternativa mais rápida do que desenvolver plantas transgênicas.
"Além disso, também se pode pensar em fazer a seleção de plantas que naturalmente já expressam essas proteínas de forma mais eficiente", diz o pesquisador. "Nesse caso, naturalmente elas já vão ser resistentes, sem precisar sofrer modificações genéticas". Segundo Silva, outra possibilidade a ser estudada, e que não pode necessariamente ser encarada como produto transgênico, seria reforçar, na própria cana, a expressão dessa proteína. "Também poderia inibir a ação dos fungos e reduzir o uso de inseticidas sintéticos", afirma.
Aplicação - Flávio Henrique da Silva diz que é difícil prever em que proporções a aplicação da canacistatina poderia reduzir a utilização de fungicidas nos canaviais. "Acredito que o impacto na diminuição de outros defensivos pode ser grande e que, a principio, a primeira aplicação seria feita em viveiros de mudas, para evitar logo no começo a infecção por fungos". Para aplicação em áreas mais extensas, ainda será preciso estudar a proteína de forma mais detalhada. "Será preciso estabelecer quantidades, melhorar a estabilidade dela no ambiente, de maneira que fique mais resistente."
O maior problema, conforme o pesquisador, é produzir proteína em larga escala para todos esses testes. O grupo de São Carlos estabeleceu uma colaboração com o grupo do professor José Abrahão Neto. da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), para ampliar a produção e desenvolver formas mais estáveis da canacistatina, que resistam a variações de temperatura. "Todo o trabalho que estamos fazendo agora é torná-la adequada para aplicação no ambiente, em condições diferentes."
Segundo Silva, a UFSCar está entrando com o pedido de patente do uso da proteína no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, mas as análises de patentes normalmente são demoradas. O procedimento está sendo encaminhado ao instituto pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fa-pesp), que patrocinou todo o projeto. De acordo com o pesquisador, estima-se que foi investido por volta de R$ 600 mil, incluindo toda a aplicação em seqüenciamento de DNA.
A universidade está tentando também estabelecer parcerias com laboratórios privados interessados em desenvolver a proteína em quantidades comerciais. "As empresas brasileiras já estão cientes de que o investimento em biotecnologia é importante e a parceria com a universidade pode ser benéfica", afirma.
Mas os limites da ação da canacistatina não cessam por aí. "Não param de surgir novas aplicações", diz o pesquisador. Em outro trabalho conjunto, este com uma equipe da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp de Rio Claro), a proteína será testada na eliminação de fungos que vivem em formigueiros e que servem de alimento às formigas operárias. Fábio da Silva cita como exemplo a saúva, que vive em simbiose com o fungo. "Se combatermos o fungo, estaremos combatendo também a saúva". Os resultados desse estudo devem estar prontos ainda neste ano.
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A Granja