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Projeto para mapear plantas e animais

Publicado em 14 outubro 2010

Por Jacilio Saraiva

Fazer pesquisas na rica biodiversidade brasileira, que guarda cerca de 20% dos recursos globais, ainda é uma tarefa difícil. Faltam investimentos públicos e privados para projetos de longo prazo e a legislação brasileira trava o desenvolvimento de produtos comerciais criados a partir da natureza, o que dificulta o registro de novas patentes. Hoje, menos de 1% das pesquisas sobre a biodiversidade nacional transformam-se em itens de prateleira e, de acordo com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o país só conhece 10% das espécies que possui.

"Nos últimos 50 anos, os pesquisadores sentiram a necessidade de sistemas de informação mais organizados", afirma Carlos Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Recuperação e Uso Sustentável da Biodiversidade (Biota), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O Biota-Fapesp é considerado um dos principais programas de pesquisas no Brasil e serviu de modelo para o projeto nacional que acaba de ser lançado pelo governo federal, com investimentos de mais de R$ 50 milhões.

Para reverter este quadro, pesquisadores de São Paulo, do Rio de Janeiro, Pará e Tocantins, além de cientistas estrangeiros e empresários, pregam uma maior comunicação entre a iniciativa privada, o governo e a academia, novas leis que favoreçam a bioprospecção e investimentos em projetos de longo prazo.

Em setembro, foi lançado o Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota-Brasil), que pretende financiar trabalhos científicos, com aporte inicial de R$ 51,7 milhões. O Sisbiota é uma iniciativa dos ministérios da Ciência e Tecnologia, da Educação e do Meio Ambiente, junto com 18 fundações estaduais de amparo à pesquisa, mais o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDT), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o CNPq.

O projeto nacional foi baseado no Biota-Fapesp, criado em 1999, para mapear a biodiversidade do Estado de São Paulo. "Avaliamos as possibilidades de exploração sustentável de plantas e animais com potencial econômico", explica Joly.

Nos últimos dez anos, o Biota listou mais de 1,8 mil novas espécies de microrganismos, plantas e animais, além de produzir um banco de dados com 12 mil espécies encontradas no Estado. O programa é responsável por quase cem projetos de pesquisa e os trabalhos desenvolvidos já formaram 169 mestres, 108 doutores e 79 pós-doutores. "Publicamos mais de 750 trabalhos científicos em revistas especializadas, inclusive na Science e na Nature, além de 16 livros e dois atlas da vegetação paulista."

Segundo Joly, não há como determinar o número de pesquisadores em biodiversidade no Brasil - em São Paulo, há mais de mil profissionais. A maioria tem formação em biologia, ecologia, agronomia, engenharia florestal ou oceanografia, com pós-graduação em botânica, zoologia ou manejo da fauna silvestre. Boa parte dos recém-doutorados tem entre 25 e 35 anos.

Para o professor, as principais dificuldades são a legislação, que breca a transformação das pesquisas em produtos úteis para a população, e a falta de projetos patrocinados a longo prazo. Em dez anos, o Biota de São Paulo só produziu três patentes. "Na área da biodiversidade, a continuidade dos estudos é fundamental e menos de dez anos de trabalho em um projeto de pesquisa não é suficiente", diz. "Falta uma lei mais ampla para acelerar a bioprospecção, com critérios para a exploração econômica. E isso não é só um problema do Brasil, é mundial."

Segundo William Fenical, diretor do centro de biotecnologia marinha da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, o Brasil faz parte de um conjunto de países conhecidos pela dificuldade de estabelecer acordos de cooperação no setor da biodiversidade. "Essas dificuldades afastam os cientistas estrangeiros."

Para Sérgio Homma, coordenador de pesquisa do Centro de Pesquisa Mokiti Okada (CPMO), em Ipeúna (SP), que tem patentes relacionadas a fermentadores de material orgânico, a pesquisa brasileira tem um baixo rendimento de resultados. "O Brasil precisa rever os critérios de avaliação para o financiamento de projetos e conduzir pesquisas para a obtenção de benefícios concretos."

Em Palmas (TO), o Instituto Ecológica, que atua principalmente no Cerrado, aposta na produção de mudas e alternativas sustentáveis de trabalho na região. Um dos projetos desenvolve unidades de extração de óleos vegetais entre comunidades rurais do Tocantins. "0 Bra-

sil anda a passos lentos em relação às descobertas científicas sobre as espécies nativas e seu potencial de uso", alerta a diretora Eliana Pareja. "Com o avanço da degradação, muita coisa ficará desconhecida." Em dez anos, o instituto realizou 46 estudos sobre mudanças climáticas, energias renováveis e conservação ambiental.

No Pará, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (Fapespa) apoia estudos sobre o desenvolvimento de biocosméticos a partir da castanha-do-pará, andiroba, copaíba e babaçu. Também desenvolve trabalhos para o aproveitamento dos recursos pesqueiros da região. Criada há três anos, concedeu quase 3 mil bolsas de estudos e financiou 900 projetos de pesquisa, sendo 60 trabalhos na área da biodiversidade. Desde 2007, recebeu aportes de mais de RS 100 milhões.

"O maior obstáculo da pesquisa é que a biodiversidade brasileira está localizada em regiões com pouca densidade de pesquisadores", diz o diretor-científico Sanclayton Moreira. "As fundações estaduais de amparo à pesquisa têm investido em parcerias para otimizai recursos, mas é necessário um maior investimento na formação de recursos humanos." Moreira também afirma que a contratação de profissionais para o desenvolvimento de pesquisas na iniciativa privada ainda é pequena. "A aproximação pesquisador- empresa precisa crescer para gerar inovação e patentes."

Criada em 1998, a empresa Extracta Moléculas Naturais, do Rio de Janeiro, já recebeu investimentos de R$ 9 milhões. Presta serviços para clientes industriais, principalmente no setor farmacêutico. "Nosso trabalho é buscar novos produtos na flora brasileira", explica Antonio Paes de Carvalho, presidente da Extracta, que montou um banco de extratos com 30 mil substâncias de cinco mil espécies vegetais da Mata Atlântica e da Amazônia.

Os projetos da companhia têm sempre um cliente financiador e são direcionados ao tratamento de doenças. "Um estudo pode valer de R$ 2 milhões a R$ 3 milhões, para execução em três anos." Atualmente, há projetos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Segundo Carvalho, a empresa está a caminho de patentear o primeiro produto, um antibiótico natural contra germes Ligados às infecções hospitalares. O projeto já acumula seis anos de pesquisas e o medicamento deverá chegar ao mercado até 2012.

As pesquisas sobre a biodiversidade marinha têm atraído a comunidade científica. Em julho, a Fapesp aprovou nove projetos para o estudo dos ciclos de vida de medusas, algas marinhas, caranguejos e corais, no valor de RJ 5 milhões. Os cientistas querem usar as espécies para a fabricação de medicamentos anticanceríge-nos, filtros solares e biocombustíveis. Há ainda estudos em curso sobre ouriços-do-mare tartarugas.

"As algas podem ser fornecedoras de compostos para aplicações na indústria farmacêutica, agricultura e geração de energia", diz o professor Pio Colepicolo Neto, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), que coordena há mais de dez anos pesquisas sobre a espécie. O setor de transformação de algas marinhas movimenta 25 mil toneladas por ano, em todo o mundo, com negócios avaliados em US$ 200 milhões anuais.

Na agricultura, substâncias extraídas das algas podem ser aplicadas sobre frutas, como o mamão, para aumentar em até cinco vezes o tempo de vida útil da fruta nas prateleiras. O pesquisador também desenvolveu estudos que provam que as algas tropicais fornecem princípios ativos para a produção de protetores solares naturais. "A indústria cosmética pode aproveitar o material para desenvolver produtos contra o câncer de pele e o envelhecimento precoce."

Para o professor, as algas ainda funcionam como alternativa para a produção de biocombustíveis, com o refino do óleo da planta. Segundo Colepicolo, o cultivo da espécie para a obtenção de energia apresenta vantagens sobre outras culturas. As algas secas podem ser obtidas com a ajuda da luz solar, o que dispensa o uso de estufas, e novas colheitas podem ser feitas a cada três meses. "Não é preciso usar terras aráveis, fertilizantes ou pesticidas, ao contrário das fazendas de cana-de-açúcar."

Na cidade de Rio do Fogo, a 80 quilômetros de Natal (RN), a equipe de Colepicolo e o Departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) mantêm cultivos de algas com a cooperação de 12 famílias da região. A produção mensal chega a 300 quilos de algas secas. "Uma multinacional do setor químico já demonstrou interesse em investir no projeto."

Em Fortaleza (CE), a professora Letícia Costa-Lorufo, do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), defende o uso das algas para o tratamento de câncer. A equipe da pesquisadora, que coleta o material em quatro praias cearenses, descobriu substâncias que inibem o crescimento de tumores e podem atenuar os efeitos colaterais da quimioterapia. "Foram realizados testes em animais e a atividade antitumoral aumentou cerca de 30%."

Já o professor Paulo Mourão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolve pesquisa com invertebrados marinhos, como o ouriço-do-mar, para criar novos medicamentos contra a trombose.

Os especialistas concordam que ainda há muito o que fazer. A prospecção nos mares ainda é recente e a coleta de novas substâncias requer grandes quantidades de material marinho. Segundo Colepicolo, da USP, as pesquisas sobre o mar estão, pelo menos, dez anos atrasadas em relação às análises da biodiversidade terrestre.

"O maior problema é superar os gargalos de demanda de matéria-prima", afirma o professor Renato Pereira, da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Para obter 300 miligramas de uma determinada substância, é preciso usar uma tonelada de esponjas marinhas."Além da dificuldade na coleta de material de estudo, segundo Vanderlan Bolzani, do Jnstituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara (SP), é preciso revisar os marcos regulatórios para facilitar a produção de fármacos. "Com a lei atual, não é possível patentear substâncias originadas da biodiversidade", afirma a professora, que trabalha há mais de 30 anos na área. "As patentes são usadas apenas para a propriedade farmacológica dos organismos ou para o método de extração."

Segundo ela, é preciso entender que a pesquisa e o desenvolvimento na área de medicamentos obtidos a partir da natureza demandam tempo, com duração média de dez anos por estudo. "Nos Estados Unidos, a Pfizer levou 12 anos para desenvolver uma substância antitabagismo, inspirada em itens naturais." Por outro lado, a pesquisadora acredita que o cenário da produção científica brasileira começa a mudar. "O governo acena com novos aportes, os setores empresarial e industrial estão mais interessados no assunto e as fundações estaduais de pesquisa fazem investimentos regulares."

No Brasil, um dos projetos mais conhecidos de biodiversidade marinha apoiado por uma empresa é o Tamar, patrocinado pela Petrobras desde 1983. O objetivo é preservar as tartarugas, com o apoio de 23 estações de proteção em nove Estados, que cobrem mais de mil quilômetros de litoral. Além de pesquisas sobre o ciclo de vida da espécie, o Tamar já salvou cerca de dez milhões de filhotes.