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Programa da Fapesp quer inserir o Brasil na corrida por tecnologias quânticas (3 notícias)

Publicado em 09 de junho de 2024

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O dia 31 de dezembro de 1999 foi marcado pela clássica contagem regressiva de ano novo mas, também, por outra que atormentava parte da população. Acreditava-se que, por conta do fim do milênio, os computadores não entenderiam a mudança de ano, o que levaria a uma pane geral em sistemas e serviços. O evento foi tão marcante que ficou conhecido como “bug do milênio”. Apesar do medo, o ano virou e nenhum bug aconteceu. As tecnologias continuaram cumprindo seu papel e sendo desenvolvidas sem erros inesperados causados por uma má formatação do calendário.

Hoje, algumas nações correm contra uma nova contagem regressiva digital: a do Q-Day, o dia em que um computador quântico alcançará a capacidade de quebrar as criptografias clássicas, revolucionando os parâmetros de privacidade e a segurança cibernética em um mundo hiperconectado. Nesse contexto, os países que já estão investindo no desenvolvimento de tecnologias quânticas estão na dianteira. Apenas no ano de 2023, o montante investido globalmente nesta área de pesquisas ultrapassou os US$ 38 bilhões. A maior parte ocorreu em pesquisas financiadas pela China (US$ 15 bilhões), seguida pelo Reino Unido (US$ 4 bilhões) e pela Alemanha (mais de US$ 3 bilhões).

Enquanto a corrida global por tecnologias quânticas se acelera, no Brasil está esquentando os motores, com o surgimento das primeiras iniciativas no campo. Uma delas é o Programa FAPESP QuTIa (Quantum Technologies InitiAtive) em Tecnologias Quânticas que visa acelerar os avanços tecnológicos quânticos no Brasil, com foco no estado de São Paulo. “O objetivo do programa é desenvolver um ecossistema de tecnologias quânticas, incentivando diferentes segmentos dentro desse campo. Isso inclui o desenvolvimento de pesquisas, mas também o investimento por parte do Estado, o surgimento de startups, e tentar atrair talentos de fora do Brasil”, diz Felipe Fanchini, um dos coordenadores do programa e pesquisador da Faculdade de Ciências da Unesp, campus Bauru. O programa contará com um investimento de 150 milhões de reais, que serão distribuídos em editais ao longo de cinco anos

Gustavo Wiederhecker, um dos idealizadores e coordenadores do programa, destaca que o objetivo a longo prazo é construir uma comunidade multidisciplinar que possa trabalhar em conjunto para desenvolver essa área no Brasil, hoje dominada predominantemente por físicos. “A gente acredita que é necessário criar algo que capte o interesse não só da comunidade chamada de ‘convertidos’, que já tem interesse na área, mas também de outros atores, como engenheiros, químicos, e profissionais das ciências da vida”, diz ele, que é pesquisador do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp.

Mais do que computadores

Embora o computador quântico seja o exemplo que mais se popularizou, as tecnologias quânticas, ou a quântica 2.0, como também é conhecida, não se esgotam aí. O desenvolvimento de sensores quânticos e de comunicação quântica também integra o pacote. Inclusive, estas áreas acenam com desdobramentos mais promissores no momento atual. “São muitas frentes de estudo com aplicações diversas, que podem trazer avanços na saúde, na agricultura, em segurança cibernética, etc.”, diz Fanchini. “Faltava um incentivo financeiro maior no Brasil para que a gente pudesse aproveitar os recursos humanos que já temos para desenvolver essas tecnologias nacionalmente.”

O processo, entretanto, vai exigir a superação de alguns empecilhos. Um dos principais, como apontado por Fanchini e Wiederhecker, é o investimento ,que deve ser constante e de longo prazo, além de envolver quantias de milhões, e até bilhões, de dólares. Outro é a necessidade de atrair mais pesquisadores para trabalhar no Brasil e, também, de manter os profissionais aqui formados para aumentar a “massa crítica do campo”, como aponta Carlos Graeff, membro da Coordenação Geral de Programas Estratégicos e Infraestrutura da FAPESP e docente da Faculdade de Ciências da Unesp, campus Bauru. Hoje, o país conta com cerca de 120 pesquisadores no campo das ciências quânticas e um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (INCT-IQ), que congrega 20 grupos de pesquisa de 15 instituições diferentes.

A busca por uma internacionalização plena

Segundo estimativas do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, nos últimos anos o Brasil pode ter perdido cerca de 6,7 mil cientistas. Os motivos são vários: entre eles estão a baixa remuneração, corte de verbas para pesquisa e infraestrutura, baixo investimento e dificuldade de encontrar posições permanentes no país. “Na área da quântica, quase a totalidade dos estudantes de doutorado do Brasil conseguem ser absorvidos por empresas ou universidades no exterior”, afirma Wiederhecker.

Esse é o caso de Filipe Bellotti, físico com experiência em ciências de dados e computação quântica que hoje trabalha na empresa dinamarquesa Kvantify. “Minha posição na empresa faz parecer que toda minha formação se encaixou: tanto a parte em física teórica como a de ciência de dados, que lida com aprendizagem de máquina. Tudo isso se combinou perfeitamente para o trabalho com computação quântica”, afirma Bellotti. O físico está há dois anos na empresa e foi convidado a integrar a equipe por seu ex-orientador do pós-doutorado, realizado também na Dinamarca.

Apesar de, na época, não estar procurando emprego, Bellotti decidiu aceitar a posição dada a oportunidade de aproveitar a formação em física e por ver o potencial de construir algo relevante em uma área ainda em formação e com poucas oportunidades em seu país de origem. “Quando fui atrás de contatos no Brasil que trabalhassem na área de tecnologias quânticas, encontrei poucas pessoas e grupos. Inclusive, uma das pessoas mais capacitadas com quem mantive contato à época queria mais oportunidades para a carreira e acabou saindo do Brasil por não encontrar vagas”, relata.

Nesse sentido, uma das primeiras iniciativas do QuTIa foi abrir um edital para atrair jovens pesquisadores do exterior. Em um primeiro momento serão selecionados cinco candidatos que poderão submeter projetos de pesquisa com um financiamento de até R$ 5 milhões ao longo de cinco anos, dentro do qual está incluso o valor da bolsa Jovem Pesquisador, de US$ 2 mil. “No Brasil, US$ 2 mil são uma quantia considerável, mas ainda é pouco competitiva diante da realidade das bolsas e dos salários no exterior”, diz Fanchini. Uma alternativa para tornar o edital mais atraente foi fornecer um conjunto de incentivos para que os pesquisadores selecionados possam se instalar no país e criar seus grupos de pesquisa, com infraestrutura e com direito a bolsas de pós-doutorado, doutorado e mestrado para agregar estudantes.”

Tornar o país atraente, especialmente em um campo que tem sido alvo de investimentos massivos por algumas nações, é uma das grandes dificuldades que precisam ser superadas por meio de iniciativas do QuTIa. “A saída de pesquisadores faz parte do nosso sucesso. Se não tivéssemos sucesso na formação de pessoas altamente qualificadas, elas não se mostrariam competitivas para ingressar no exterior”, afirma Graeff.

Entretanto, ele ressalta que é necessário manter o fluxo balanceado nas duas pontas: é interessante que pesquisadores saiam, para se capacitar em outras etapas de formação, mas também é necessário que o país receba profissionais do exterior, sejam estrangeiros ou brasileiros que se mudaram para outro país. Para isso, entretanto, é necessário criar um ambiente e um ecossistema favoráveis para atrair pesquisadores. “Nossas políticas de internacionalização sempre focaram em mandar pessoas para fora, mas eu acho que está na hora de pensarmos em trazer gente para dentro, de criar programas e facilitar a vinda de novas pessoas”, diz o físico.

As tecnologias quânticas fora da academia

Para Wiederhecker, um dos pontos necessários para alcançar esse objetivo é o desenvolvimento de uma indústria capaz de empregar os profissionais recém-formados. “Se a pessoa não tem uma perspectiva de que vai ser contratada e que pode construir uma carreira e uma vida, ela não vai ficar. Ou, se estiver fora do país, não vai voltar. Para isso, a gente tem que desenvolver uma indústria tecnológica capaz de empregar nossos egressos, e isso deve ser feito por meio do investimento público”, diz. Um exemplo de investimento do Estado revertido para o desenvolvimento da indústria é a iniciativa recente dos Estados Unidos, que injetou US$ 50 bilhões na indústria dos semicondutores, com o objetivo de intensificar a produção de chips.

Sabendo da importância do desenvolvimento da indústria, em particular em áreas que estão na fronteira do conhecimento, como é o caso das tecnologias quânticas, projetos futuros do QuTIa preveem o contato com representantes das indústrias no Brasil para explicar e apresentar os potenciais das tecnologias quânticas, em busca de novos financiamentos e parceiros. “Algo bastante singular dessa área, por ter atraído muita atenção da sociedade, é a quantidade de especulação que ela suscita. As pessoas acham que amanhã vai ter um computador quântico que vai resolver problemas supersofisticados. Esperamos que isso aconteça, mas não é algo que será feito de maneira rápida. Então, também vamos desenvolver iniciativas para criar pontes e explicar às empresas o que é real e tangível, e o que é sonho”, afirma Wiederhecker.

Fanchini, entretanto, reforça a necessidade de planos de governo a longo prazo e de investimento do Estado para que seja possível desenvolver a área de tecnologias quânticas, tanto na esfera acadêmica como na indústria. “Por mais que a gente tenha muito interesse no envolvimento e no desenvolvimento de indústrias de tecnologia, o Estado precisa desempenhar um papel central. Não vamos conseguir desenvolver essas tecnologias sem o financiamento da União. Não será a iniciativa privada que vai colocar os seus bilhões nesses projetos, porque são investimentos de risco, e em escalas muito grandes”, diz. Nesse sentido, os pesquisadores defendem que os governos devem investir no desenvolvimento de novos conhecimentos e tecnologias para que, em um segundo momento, a indústria possa capitalizar por meio da criação de produtos.

Forças armadas mostram Interesse

Além da indústria, outro setor que pode beneficiar e ser beneficiado com o desenvolvimento das tecnologias quânticas é o militar. O exército brasileiro é o responsável pela segurança cibernética do país, o que levou a instituição a sinalizar interesse e se aproximar da academia para acompanhar os avanços dentro do campo. Mundialmente, a indústria militar é reconhecida por impulsionar a tecnologia em diversos países. No Brasil, ela já promoveu avanços significativos em áreas como a aviação, a navegação e a comunicação. “Empresas como a Embraer, que surgiu a partir de uma iniciativa militar, são exemplos de como o investimento em tecnologia de defesa pode resultar em benefícios amplos para a sociedade”, afirma Wiederhecker.

O físico é otimista sobre a aproximação até aqui, e vê possibilidade de aprofundar a relação dentro do QuTia. “Uma das ideias do programa é estimular a interação entre acadêmicos e militares. Eu acho interessante a aproximação dos militares no sentido que eles dão aos acadêmicos um foco para concentrar os esforços de pesquisa. Como a comunidade científica brasileira pode se unir a eles para lidar com essa questão de segurança cibernética? Na ciência, é importante ter liberdade de pensamento e criatividade, mas também é igualmente importante ter foco e canalizar a capacidade de recurso humano, distribuído nas universidades brasileiras, para resolver um problema de segurança nacional”, afirma o professor.

A busca de articulações entre atores diversos como o Estado, a academia, a indústria e os militares é uma demonstração do amplo escopo do Programa FAPESP QuTIa. E o fato de que já dispomos de recursos humanos de qualidade, formados nas universidades, permite acreditar na possibilidade que o país possa se inserir no seleto grupo das nações que competem pelo desenvolvimento acelerado das tecnologias quânticas. O primeiro edital do programa, voltado para atrair Jovens Pesquisadores, foi encerrado na segunda-feira, 02/06. Os próximos passos envolvem concretizar acordos de cooperação entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por meio da FAPESP e da Faperj, e a organização de uma Escola São Paulo de Ciência Avançada, que terá como objetivo mergulhar estudantes em tópicos de tecnologias quânticas para acelerar a curva de aprendizado no tema.