Chamou a atenção, na semana passada, o caso de um paciente terminal de câncer que, em menos de um mês, obteve remissão ao ser submetido a uma terapia celular experimental.
Medicina brasileira produz contribuições científicas importantes e tem serviços considerados referências internacionais | iStock
O tratamento já é utilizado com sucesso nos Estados Unidos e na Europa, mas o mineiro Vamberto Luiz de Castro, 62, foi tratado com um método totalmente desenvolvido no Brasil por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). A terapia revolucionária, que pode custar centenas de milhares de dólares para pacientes no exterior, pode vir a ser ofertada gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
O episódio é uma mostra de que, apesar do atraso do Brasil em diversas áreas em relação a países desenvolvidos (incluindo a saúde), a medicina brasileira produz contribuições científicas importantes e tem serviços considerados referências internacionais.
“A média da saúde pública no Brasil é muito baixa, mas alguns hospitais e universidades têm condições de fazer medicina de ponta, para rivalizar com a melhor medicina que se possa fazer no planeta”, diz à FOLHA o médico e escritor José de Jesus Peixoto Camargo.
DESBRAVADORES
Responsável pelo primeiro transplante de pulmão da América Latina, em 1989, Camargo é um exemplo da importância da iniciativa de alguns médicos na construção da relevância da medicina brasileira.
Em um cenário de precariedade em várias frentes, alguns nomes foram responsáveis por incitar o desenvolvimento de áreas que atingiram a excelência.
Além de Camargo, no Rio Grande do Sul, este é o caso de Ricardo Pasquini no Serviço de Transplante de Medula Óssea do Hospital de Clínicas da UFPR, para citar um exemplo do Paraná.
“Alguns serviços se destacaram muito mais em função de algum desbravador que os fez ganhar destaque internacional”, diz o cirurgião-geral e do trauma Adonis Nasr. “Essas pessoas puxaram os serviços, que acabaram mantendo a tradição e a qualidade”, explica o médico, que também é professor da UFPR e da PUC-PR.
Para Nasr, a trajetória da formação dos médicos, que por vezes inclui estágios internacionais, acaba fazendo com que se tornem introdutores de novos conhecimentos quando retornam aos seus locais de origem e obtêm suporte de instituições.
“O conhecimento destes profissionais faz com que busquem estruturar seus meios de trabalho de forma mais atualizada, e isso faz com o que o Brasil tenha um parque tecnológico bastante atualizado em comparação com países de primeiro mundo”, diz.
Para Nasr, os médicos brasileiros têm acompanhado a evolução acelerada da medicina nos últimos anos, mas houve retração no investimento na área por parte do Estado. “Na iniciativa privada, o investimento em pesquisa é muito tímido comparado ao que vemos em outros países”, alerta.
LOCAIS REMOTOS
A centralidade da iniciativa individual de alguns médicos para a criação de referências na medicina brasileira também acaba evidenciando a desigualdade de recursos no País. Enquanto algumas instituições — a maioria, particulares ou ligadas a universidades — podem estar a par das últimas inovações da medicina, há serviços e cidades que não contam com recursos básicos.
“Isso é uma imagem muito fiel do quanto o País é heterogêneo e do quanto a sociedade brasileira é desigual”, diz José de Jesus Peixoto Camargo. “Essa característica elege algumas especialidades brasileiras que são muito ativas e, de alguma maneira, estimularam apoio governamental e de empresas que reconhecem a importância de ter pontos de referência, enquanto o resto do País sofre com a má distribuição de recursos e a precariedade da formação médica em vários níveis”, critica.
O médico lembra que a qualidade da formação é uma das principais preocupações da categoria. Segundo Camargo, novos cursos são oferecidos por instituições que não dispõem de recursos humanos e tecnológicos suficientes para o ensino da medicina. “A proliferação de faculdades de medicina de baixo nível perturba o mercado médico”, explica.
Já a precariedade da estrutura de saúde fora dos grandes centros, para Camargo, é o maior obstáculo para que médicos jovens escolham ir para regiões remotas. “Ele tem certeza de que, lá, vai conviver com mortes evitáveis — uma das coisas mais torturantes que um médico pode enfrentar”, diz Camargo, se referindo à falta de medicamentos, infraestrutura e pessoal encontrada nestas localidades.
O médico, que é membro da Academia Nacional de Medicina, defende que a primeira iniciativa governamental a ser tomada para estimular a ida de médicos para cidades menores é a criação de um plano de carreira para a medicina.
Para Adonis Nasr, há uma percepção distorcida de que a falta de médicos em locais remotos é de inteira responsabilidade dos profissionais. “Buscou-se programas para distribuir médicos no País, mas não se vê que o problema é estrutural”, diz.
Nasr avalia que, mesmo com o aumento da oferta de cursos de medicina — que considera desordenada —, o problema se manterá. “Não havendo estrutura no interior, os médicos vão continuar se concentrando nas capitais”, explica.