'Efetivamente fazer estrutura de proteínas é desenvolver tecnologia de ponta!'
Mensagem de Glaucius Oliva, professor da USP/São Carlos e diretor do Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural, Cepid/Fapesp:
Em carta dirigida a um não identificado membro de um dos grupos mais conceituados e produtivos de SP, o prof. Sergio Ferreira (JC e-mail, 19/7/02) refere-se aos pesquisadores envolvidos em genômica, proteomica, estudos funcionais e estruturais de genes e proteínas, como praticantes de uma meio-ciência.
Trabalhando com genes, proteínas, suas estruturas e aplicações biotecnológicas por quase 20 anos, freqüentemente em projetos executados em redes, das quais sou ferrenho defensor, sinto-me compelido a comentar as opiniões do renomado professor.
Inicialmente, é preciso reafirmar que efetivamente fazer estrutura de proteínas é desenvolver tecnologia de ponta! E o digo com os fatos. As técnicas experimentais de determinação da estrutura de proteínas (Cristalografia e Ressonância Magnética Nuclear) são hoje as ferramentas fundamentais em qualquer projeto de biologia moderna.
Por exemplo, todo o processo de quebra de ATP com a conseqüente conversão de energia em formas úteis à célula foi elucidado com a determinação da estrutura da proteína F0/F1 ATPase, dando o Premio Nobel aos cristalógrafos envolvidos (Sir John Walker, 97) e abrindo novas portas para a compreensão do mecanismo de operação das bombas de prótons e criando a nanotecnologia dos motores moleculares.
O processo inicial de utilização da energia de um fóton no transporte de um elétron para o interior de cloroplastos, evento inicial da fotossíntese, foi determinado com a elucidação da estrutura do centro de reações fotossintéticas que outorgou o premio Nobel de química aos cristalógrafos que a fizeram (Huber, Michel e Deisenhofer, 88).
A estrutura cristalográfica completa do ribossomo, elucidada em 2000 por grupos americanos e europeus, trouxe à luz fatos surpreendentes, como o papel central do RNA ribossomal na catálise da síntese protéica.
Do ponto de vista das aplicações, os mais recentes medicamentos lançados no mercado foram desenvolvidos por planejamento racional baseado na estrutura de seus receptores (por exemplo, Viagra, Glivec, Celebra, Vioox, inibidores de protease do HIV e mesmo alguns inibidores específicos das enzimas renina e ECA, sucessores do anti-hipertensivo Captopril).
O paradigma da biologia moderna é que a função biológica de uma proteína está intrinsecamente associada a sua estrutura tridimensional, ou seja, uma seqüência de aminoácidos só se torna uma proteína quando adequadamente enovelada na sua estrutura nativa. O grande desafio hoje é conhecer a estrutura tridimensional da maioria possível das proteínas.
Portanto, sim, determinar estruturas de proteínas é de fato tecnologia de ponta, envolvendo equipes multidisciplinares realizando a clonagem, expressão recombinante, cristalização, difração em laboratório ou com radiação síncrotron e muita análise computacional dos dados.
Entre os maiores desafios da biologia moderna está a compreensão da forma cooperativa com que a expressão concertada de genes, sistêmica ou regulada por estímulos ambientais, leva às complexas formas da vida em nosso planeta.
O que tem ficado evidente nos diversos projetos genoma concluídos, é que a complexidade de um organismo não está determinada pelo número de genes codificados em seu genoma, mas na expressão cooperativa e na interação entre proteínas, num processo sinergístico em que o todo é maior que a soma das partes.
Como classificar a proteomica de meia-ciencia, uma metodologia que é hoje o estado da arte para a identificação de todas as proteínas expressas num dado estado metabólico de uma bactéria?
Não seria uma importante ferramenta para identificar os principais genes associados a patogenicidade de um microorganismo?
Enzimas de parasitas são produzidas na forma recombinante em larga escala em nosso laboratório e utilizadas em um amplo programa colaborativo de triagem de extratos e produtos naturais da nossa Mata Atlântica na busca de inibidores específicos e compostos líderes para o desenvolvimento racional de novos medicamentos contra doenças endêmicas no Brasil.
Da mesma forma, o Programa Biota da Fapesp, em seu sub-projeto 'Conservação e uso sustentável da diversidade vegetal do Cerrado e Mata Atlântica: diversidade química e prospecção de novas drogas potenciais' desenvolvido por um consórcio de três laboratórios (Unesp/Araraquara, IQ/USP e Instituto Botânico), têm produzido excelentes resultados e gerado patentes e projetos desenvolvidos em colaboração com empresa farmacêutica nacional.
Como desdobramento destas iniciativas foi proposto à Fapesp ambicioso programa denominado Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios, que visa integrar os grupos trabalhando nesta importante área para o aproveitamento da nossa biodiversidade, com efetivo valor agregado pelo conhecimento.
Discordo, assim, do destacado professor, quanto a sua aversão às redes de pesquisa.
Trabalhando de forma concertada podemos atingir a massa critica necessária e o foco comum em problemas de impacto econômico, social e com significativo avanço na formação de recursos humanos para o país.
O trabalho em rede freqüentemente resulta em diversas colaborações científicas.
Em nosso laboratório estabelecemos excelentes colaborações com grupos da UFSCar, USP-SP (ICB e IB), USP/ESALQ, Unicamp/CBMEG e USP/RP(FFCLRP), entre outros, decorrentes de achados e interesses despertados durante a execução dos projetos de sequenciamento que participamos.
Na estrutura dos Cepids da Fapesp (Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão), como o nosso Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural, operamos na forma de rede de laboratórios distribuídos entre a USP/São Carlos (dois laboratórios), UFSCar (três grupos de pesquisa) e vários pesquisadores do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron.
Fica assim evidente, que uma vez formada a cultura do trabalho em colaboração, freqüentemente multidisciplinar, esta prática se prolonga com excepcionais resultados.
Finalmente, concordo com o prof. Ferreira em sua proposta de abrir um construtivo fórum permanente para discussão da política científica dos nossos órgãos de fomento, no qual as idéias possam ser discutidas de forma qualificada, com argumentos fundados em fatos, com análises de experiências semelhantes nacionais e internacionais e com a lisura, clareza, abertura e respeito mútuo, necessários a qualquer debate construtivo.
Com certeza a Fapesp não se furtará à transparência, como sempre o fez, na apresentação de seus projetos, financiamentos, procedimentos de julgamento de projetos, critérios de seleção de consultores e propostas para o futuro.
Além disso, este fórum poderia analisar com detalhe os resultados que as iniciativas de projetos em rede tem produzido, quanto a publicações qualificadas, formação de jovens pesquisadores, patentes, novas empresas, impacto econômico e social.
Sugiro apenas que interesses pessoais, mágoas infundadas ou quaisquer outros motivos não acadêmicos ou científicos não sejam razões para denegrir gratuitamente as experiências de sucesso que tem sido realizadas no sistema de fomento à C&T e Inovação no Estado de SP.
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JC e-mail