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TN Sustentável

Produtividade ainda poderá aumentar com melhoramento genético clássico

Publicado em 07 maio 2009

Por Janaína Simões

O Brasil desenvolveu variedades de cana-de-açúcar que produzem de 80 a 120 toneladas de biomassa por hectare, mais do que a média mundial. Em países concorrentes, como Austrália, Colômbia e África do Sul, a produtividade da melhor cana é, em média, de 69 toneladas por hectare.  As variedades brasileiras foram obtidas ao longo do século XX por melhoramento genético clássico. Os limites desse processo — em que características desejadas da planta são selecionadas ao longo de gerações — ainda estão muito longe de ser alcançados, atestam pesquisadores.

Em São Paulo, o primeiro programa oficial de melhoramento da cana surgiu no Instituto Agronômico de Campinas (IAC) em 1933.  No mundo, o melhoramento começou no século XIX, na Ásia.

"É possível mais do que dobrar o limite teórico", afirma Gláucia Souza, pesquisadora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da Divisão de Pesquisa em Biomassa do Programa em Bioenergia (Bioen) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Um desses "limites teóricos" foi mostrado pelo pesquisador Paul Moore, do Serviço de Pesquisa Agrícola do Ministério da Agricultura dos Estados Unidos, durante workshop do programa Bioen sobre o tema melhoramento genético da cana. Em condições ideais de incidência solar e água, mostrou Moore, a produtividade da cana pode chegar a 219 toneladas por hectare. O modelo do pesquisador dos EUA foi feito com base em dados referentes à produção australiana, sul-africana e colombiana.

No Brasil, relata o pesquisador Márcio Henrique Pereira Barbosa, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e um dos melhoristas da Rede Interuniversitária para Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa), uma experiência feita na Bahia com a usina Agrovale teve como resultado uma cana que produz mais de 300 toneladas por hectare e chega a medir 12 metros de altura. Claro que as condições de produção dessa cana foram as ideais, em especial no que se refere à umidade do solo e à insolação, aplicadas na medida certa.

O IAC, relata o diretor do Programa Cana da instituição, Marcos Landell, conseguiu em Ribeirão Preto (SP) uma cana que, em dois meses de crescimento, podia produzir 345 toneladas por hectare de biomassa, e, em dois anos, ultrapassou as 400 toneladas. Essas 'supercanas', produzidas de forma experimental, não são ainda variedades comerciais. Mas nada impede que se chegue lá.

A genética do melhoramento

No jargão, o método clássico, explica o pesquisador da UFV, é chamado de seleção recorrente. Por meio dele, é possível aumentar a frequência de genes e de seus alelos relacionados a características favoráveis — quer dizer, que interessam à agricultura — a cada ciclo de seleção, ao longo das gerações.

Chama-se de 'alelo' cada uma das cópias de um mesmo gene presentes em um cromossomo. Por exemplo, nos seres humanos, cada gene apresenta duas cópias, dois alelos — uma vinda do genoma do pai, outra do genoma da mãe. Por isso, somos um organismo 'diploide'. A cana é mais complicada: a planta é poliploide, tem muitas cópias do genoma e de cada um de seus genes. Isso torna o melhoramento muito mais complexo.

Os melhoristas produzem clones da planta, selecionados a partir de espécies como Saccharum spontaneum, Saccharum robustum e Saccharum officinarum, e fazem cruzamentos entre eles. Das plantas resultantes dos cruzamentos, selecionam aquelas com maior frequência de alelos favoráveis.

Caso sejam mesmo superiores — por exemplo, produzam mais açúcar —, essas plantas serão cruzadas novamente, obtendo-se uma nova geração. Esse trabalho é repetido por muitos anos para garantir que o alelo se torne cada vez mais frequente, e a característica passada de pais para filhos, chegando-se enfim, de fato, à variedade comercial que será colocada no mercado.

"A cada ciclo, pressupõe-se que aumenta a frequência de alelos favoráveis nos indivíduos superiores. Só é possível aumentar a produtividade através de ciclos sucessivos de cruzamento de uma mesma população", acrescenta Barbosa.

Graças ao processo de seleção recorrente, no Brasil, a produtividade da cana vem aumentando na proporção de 761 quilos por hectare por ano, um incremento anual de 1,5%, se considerado o período de 1974 até hoje, segundo o pesquisador.

"A contribuição do melhoramento clássico é enorme e continuará assim por muito tempo", afirma.

Mas há uma desvantagem que está diretamente relacionada ao custo: a demora na obtenção de uma nova variedade. Pode-se levar de 12 a 14 anos entre a seleção dos clones e o lançamento da variedade para os produtores.

Como a biologia molecular ajuda o melhoramento clássico

Marcos Landell, do IAC, explica que o custo é a medida da eficiência de um programa de melhoramento. E a redução do custo está diretamente relacionada à redução de tempo para se desenvolver uma nova variedade. Menos tempo significa menores gastos com equipe, remuneração mais rápida dos programas de melhoramento e ampliação mais veloz da competitividade dos produtores.

Uma das técnicas que podem auxiliar na redução do tempo em melhoramento clássico é a de marcadores moleculares. Hoje, os marcadores selecionados são fenotípicos — quer dizer, dizem respeito ao fenótipo, às características físicas que a planta apresenta e que correspondem a certas características genéticas. Exemplos desses marcadores fenotípicos usados pelos melhoristas são o diâmetro dos colmos — nome técnico para o caule da cana — e o teor de sacarose.

Os marcadores moleculares pressupõem o conhecimento das características dos genes da cana e auxiliarão os pesquisadores a encontrar genes que indiquem se a cana selecionada, ao ser cruzada, vai gerar uma nova planta com as características desejadas.

"Podemos extrair o DNA de um pedaço de folha e identificar marcas importantes nele para reduzir o tempo que levamos para saber quais são as melhores canas", explica Landell.

A produtividade da cana depende muito das condições edafoclimáticas (solo e clima). De acordo com Márcio Barbosa, da UFV, uma mesma cana, excelente para o interior paulista, pode não ser tão produtiva no Centro-Oeste. A interação da cana com o meio ambiente é complexa: ela fica exposta por muito tempo ao meio, atravessando momentos favoráveis e desfavoráveis ao longo de seu ciclo de vida.

"O potencial biológico depende do ambiente, dos fatores bióticos, como doenças, vírus e pragas, e abióticos, como luz, água e temperatura. Precisamos de ferramentas que indiquem o que está dentro da cana, reduzindo as interferências ambientais", acrescenta Landell.

A seleção por fenótipos exige que se façam vários ciclos de cruzamentos para se ter certeza de que a característica buscada está presente nos genes da planta, e não que foi resultado de algum fator ambiental como aumento de insolação ou umidade numa determinada época. Com os marcadores moleculares, os pesquisadores saberão que a característica está presente no gene e poderão, assim, eliminar o fator ambiental, acelerando a seleção dos clones que serão cruzados.

Outras técnicas podem auxiliar ainda mais o trabalho de melhoramento clássico. O próprio estudo do genoma da cana, cujo mapeamento foi financiado pela Fapesp, ainda prossegue. Segundo Gláucia Souza, do Bioen, o objetivo é ter um sequenciamento que sirva de referência para fazer o mapeamento dos genes, associando as características dos genes à sua posição.

Um dos desafios da biologia molecular no auxílio ao melhoramento clássico está em trabalhar com uma planta poliploide. Enquanto o ser humano tem 46 cromossomos (23 em cada um dos dois conjuntos), a cana pode ter de pouco mais de 70 a até 128 cromossomos, dependendo do híbrido com o qual se está trabalhando.

A partir desse mapeamento, técnicas sofisticadas de genética estatística também são necessárias. Hoje, já há técnicas bem-desenvolvidas para genomas diploides. Gláucia lembra ainda que faltam profissionais para lidar com os dados obtidos no sequenciamento do genoma da cana.

Além disso, é preciso muito estudo sobre a fisiologia da cana-de-açúcar, pois ainda se conhece pouco sobre ela. A fisiologia estuda os fenômenos vitais da planta: metabolismo, desenvolvimento, reprodução e genética vegetal. Pouco se sabe, por exemplo, sobre a fotossíntese da cana. "Faltam pessoas para trabalhar nisso e resolver coisas que nos ajudem a interpretar os dados obtidos nas nossas pesquisas", afirma Gláucia.

Transgenia não tomará o lugar do melhoramento clássico

Outro ponto de vista unânime entre os pesquisadores se refere ao papel da técnica de transgenia no melhoramento genético. Por transgenia, conta Márcio Barbosa, da UFV, é possível alterar pontualmente algumas características da cana. Mas a técnica não permite aumentar a produtividade de forma direta, algo que requer a seleção dos melhores genes já presentes na cana por meio da reprodução de vários indivíduos e várias gerações de uma mesma população que carreguem aqueles genes.

"Podemos usar os transgênicos para aumentar a produtividade de forma indireta, como ao fazer a introdução de um gene que vai inibir a atuação da broca da cana, diminuindo a perda no campo por causa da doença", exemplifica.

Para Gláucia Souza, da USP, os transgênicos poderão trazer boas soluções para o desenvolvimento de variedades mais resistentes a herbicidas e inseticidas, mas ainda há muito a ser feito para se chegar a cultivares mais tolerantes à seca e com maior teor de sacarose. Até o momento, não há variedade comercial transgênica de cana-de-açúcar desenvolvida — resultado da instabilidade trazida pela característica poliploide da planta.

"E de nada adianta colocar genes em cultivares pouco produtivos. É preciso usar um bom clone para fazer um transgênico e esse clone virá do melhoramento clássico, porque é essa a técnica que permite trabalhar com o acúmulo dos genes favoráveis", completa Barbosa, da UFV.

"A alteração de algumas características importantes da planta por meio dos transgênicos poderá ter sucesso, mas até agora não tem se mostrado tão fácil, pelas próprias características da cana-de-açúcar, que é um poliploide", destaca Landell, do IAC.

O fato é que ainda há muito a se ganhar no campo, em termos de produtividade.

"Se atuarmos apenas nos fatores bióticos e abióticos, já teremos um novo ganho, independente do melhoramento", atesta Landell. "Há uns 10 ou 15 anos, havia uma ideia de que a biotecnologia iria substituir o melhoramento clássico, mas hoje está claro que os programas mais modernos vão incorporar a biotecnologia para tornar o melhoramento clássico mais eficiente", conclui.

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