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Processo químico faz peptídeo adquirir estrutura similar à encontrada em doenças neurodegenerativas (8 notícias)

Publicado em 20 de outubro de 2023

Os peptídeos são biomoléculas formadas pela ligação entre dois ou mais aminoácidos que apresentam importantes funções no organismo humano, como as de hormônios, neurotransmissores, analgésicos e até antibióticos. Por esse motivo são muito estudados e usados pela indústria farmacêutica, por exemplo.

Em uma pesquisa desenvolvida por cientistas do Departamento de Biofísica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) foram identificadas mudanças significativas em propriedades físico-químicas de peptídeos durante um processo espontâneo de modificação química chamado piroglutaminação, que chega a alterar suas características.

A piroglutaminação é uma transformação bastante conhecida, porém, frequentemente negligenciada na síntese de peptídeos e pouco explorada na proteômica. O alerta revelado na pesquisa é que essa transformação pode ocorrer rapidamente, ainda dentro dos prazos experimentais típicos, e é especialmente relevante em condições que mimetizam ambientes fisiológicos, como em temperatura próxima a 37° C, semelhante à do organismo humano.

A descoberta do grupo brasileiro, além de ter implicações para pesquisas laboratoriais, também abre uma nova perspectiva voltada a estudos sobre doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson. Isso porque, após a modificação química, a molécula adquire estruturação amiloidal (que favorece a agregação das moléculas, formando placas), como as existentes em portadores dessas doenças.

Pela inovação e importância, o estudo foi destaque na capa da revista científica Biochemistry . Recebeu apoio da FAPESP por meio de dois projetos ( e

O grupo examinou in vitro o mecanismo de transformação do aminoácido glutamina (Gln) em seu derivado cíclico piroglutâmico (Pyr), quando presente uma sequência peptídica ou proteica na extremidade N-terminal (uma das pontas da molécula). Esse processo ocorre via deamidação, isto é, a eliminação de um composto químico, o NH3 (amônia). Todas as proteínas são constituídas por 20 tipos de aminoácidos, unidos por ligações peptídicas – o que varia é o número e a sequência dos aminoácidos.

“O resultado pode servir de modelo para muitos pesquisadores que trabalham com peptídeos. Conseguimos dois achados. Voltamos a um tema antigo, que é a degradação da glutamina em piroglutâmico, mas alertamos para a importância da análise da sequência. E a segunda questão foi destacar que, após a transformação do peptídeo, as características mudam, com tendência de ele se atracar a membranas. Com o piroglutâmico, a molécula passa a ter a propriedade de formar agregados amiloides, como se fossem conglomerados típicos encontrados em pacientes com doenças neurodegenerativas. Essas placas amiloidais se depositam no cérebro e interrompem o fluxo de neurônios”, explica o professor do Departamento de Biofísica Clovis Ryuichi Nakaie , orientador do estudo.

Degraus da pesquisa

A sequência peptídica-modelo (QHALTSV-NH2) usada no trabalho surgiu no doutorado da química Mariana Machado Leiva Ferreira, primeira autora do artigo. Ela buscava a síntese de cerca de duas dezenas de peptídeos presentes na sequência de cinco tipos de receptores GPCR (receptores acoplados à proteína G, na sigla em inglês, que captam sinais extracelulares e ativam vias de sinalização no interior da célula), de tamanhos variados (até cerca de 20 aminoácidos). Entre todos esses peptídeos sintetizados, apenas um se destacou pelo baixo rendimento obtido, sendo o único com a glutamina na extremidade amínica.

“Após a primeira tentativa de síntese com rendimento muito baixo, variamos diferentes parâmetros necessários para o aumento do resultado da produção desse peptídeo, incluindo alterações tanto na parte sintética quanto na de purificação, mas, infelizmente, sempre percebemos a degradação de parte dele”, conta Ferreira.

Ao testar soluções comuns do campo de experimentos proteômicos, o grupo notou que em todas elas ocorria a conversão da glutamina para seu derivado cíclico piroglutâmico em função do tempo, seguindo uma cinética típica de primeira ordem, ou seja, a velocidade de transformação acompanhava a reação.

Por isso, optou-se por introduzir uma estratégia sem agitação da solução, sendo possível, assim, inferir que a velocidade de conversão precisa ser considerada. Estima-se, por exemplo, que após cerca de cinco horas do experimento há chances de que pelo menos 10% da glutamina tenha se transformado em piroglutâmico.

A pequena alteração estrutural que ocorre quando o peptídeo nativo é piroglutamizado em sua extremidade N-terminal é suficiente para alterar o comportamento físico-químico da molécula.

“Por ser cíclico e com uma carga positiva a menos, o Pyr-peptídeo seria mais hidrofóbico que o nativo e, assim, antevíamos maior chance de interação do análogo com sistemas membrana-miméticos. O que não esperávamos era que esse análogo mostrasse a formação de estruturas amiloidais, do tipo existentes em portadores de doenças neurodegenerativas. Não chegamos a estudar a doença, mas é um caminho que se abre”, afirma à Agência FAPESP o também professor do departamento Emerson Rodrigo da Silva

Silva é autor correspondente do artigo, juntamente com Nakaie, que ressalta a importância das modificações pós-translacionais que ocorrem no organismo e envolvem a cadeia polipeptídica. Essas modificações desempenham papel na diversidade funcional das proteínas e permitem que uma sequência de aminoácidos codificada em um gene seja adaptada para várias funções e regulações.

“Dentro desse contexto, certamente o fator tempo estará, no fundo, sempre conjugado com a ocorrência das modificações, independentemente do local ou da velocidade de cada uma delas em nosso organismo. Portanto, o conceito do relógio da vida adquire sentido e foi por essa razão que propusemos a ampulheta com a transformação espontânea de Gln em Pyr como ilustração para a capa da revista”, diz Nakaie.

Professor na Escola Paulista de Medicina há 45 anos, ele destaca o pioneirismo do Departamento de Biofísica ao introduzir no Brasil o desenvolvimento de projetos na área de síntese e bioquímica de peptídeos, incluindo derivados de aminoácidos.

“Com certeza, nossos achados abrem caminhos para outros estudos. Depois da conclusão do trabalho envolvido no doutorado da Mariana, também queremos dar seguimento a essa linha de pesquisa”, conclui Nakaie.

O artigo Pyroglutamination-Induced Changes in the Physicochemical Features of a CXCR4 Chemokine Peptide: Kinetic and Structural Analysis pode ser lido em: https://pubs.acs.org/doi/10.1021/acs.biochem.3c00124

Conversão da glutamina em ácido piroglutâmico aumenta propensão de peptídeo a formar agregados amiloidogênicos ( imagem: acervo dos pesquisadores

Matéria – Luciana Constantino | Agência FAPESP