Ele ficou cinqüenta dias hospitalizado. Iria tirar o dedão do pé esquerdo, que necrosara após uma pequena inflamação ao lado da unha e acreditava que não demoraria muito a voltar a sua casa. Entretanto, o corte infeccionou. Como era uma pessoa "doce", os fungos e bactérias (existentes aos montes no ambiente hospitalar) reproduziram-se com facilidade.
Para "limpar" o ferimento, retiraram-lhe mais um pedaço do pé. Depois, como a inflamação não o deixava, a perna se foi. Durante esse tempo, teve de brigar para conseguir duas angioplastias pelo sistema público, para desobstruir artérias. Mesmo assim, o outro pé acabou necrosado.
O caso de Israel Garcia Alves, 59 anos, é exemplo dos problemas vasculares com conseqüências traumáticas. Recentemente, teve a perna esquerda e o dedinho do pé direito amputados em decorrência da má circulação causada pelo diabetes. Ele foi atendido pelo SAS (Sistema de Assistência à Saúde - convênio dos servidores públicos do Paraná) e SUS (Sistema Único de Saúde), em Maringá (PR).
Neste ano, o tema oficial da campanha da International Diabetes Federation - IDF é o cuidado com o "pé diabético". "Dê um passo à frente. Previna as amputações" é o slogan que tem sido veiculado com o objetivo de incentivar a atenção especial aos membros inferiores do diabético por parte do médico, paciente e família. Nas campanhas anteriores, outras complicações graves da doença, como nos rins e nos olhos, foram abordadas.
A cada minuto, duas pernas são amputadas, devido ao diabetes, em algum lugar do mundo. Mais de 70% de todas as amputações estão relacionadas à doença. No Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde, pequenas lesões geraram, somente no ano passado, 17 mil amputações de coxas e pernas (excluindo dedos necrosados), a um custo anual de R$ 18,2 milhões ao SUS. Enquete feita pela Sociedade Brasileira de Diabetes mostrou que, de 311 diabéticos, 65% nunca tiveram seus pés examinados. Apesar do diabetes ser conhecido como uma "doença traiçoeira", a IDF estima que a maioria dos casos de úlceras evoluídas tem prevenção. Segundo a instituição, 85% das amputações poderiam ser evitadas.
Programa de referência internacional, o projeto Salvando o Pé Diabético, implantado pela Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal mostra que políticas públicas trazem avanços consideráveis. Desde 1992, tem sido feito o esforço de integrar equipes multidisciplinares, formar profissionais para exames periódicos nos pés dos diabéticos em hospitais públicos e introduzir centros clínicos especializados. No Hospital Regional de Taguatinga (DF), houve queda de 77,8% nas amputações feitas acima do tornozelo, de 1992 a 2000. Hoje, existem mais de 50 ambulatórios voltados ao "pé diabético" no País. O relatório publicado na Neuropathy Issue (Vol 16, 2004) apontou como principais obstáculos à prevenção: a baixa taxa de revascularização (causada pela falta de cirurgiões, pouco interesse dos que existem e demora nas cirurgias), a longa espera por próteses (pacientes esperam, em média, seis meses na rede pública) e a dificuldade de estruturar equipes especializadas (faltam cursos de podiatria).
Em 14 de novembro, no Dia Mundial do Diabetes, realizou-se uma Conferência Global, em Salvador (BA), apoiada pela IDF, Grupo de Trabalho Internacional do Pé Diabético (IWGDF) e Organização Mundial da Saúde. Confiante, a coordenadora do Salvando o Pé Diabético e responsável pelo Departamento de Complicações Crônicas da Sociedade Brasileira de Diabetes, dra. Hermelinda Pedrosa, afirma que a escolha do Brasil para sediar a Conferência traz visibilidade ao programa e estimula ações governamentais. Em outubro, o Ministério da Saúde constituiu um grupo de trabalho para definir diretrizes nacionais para prevenção, diagnóstico precoce, tratamento e reabilitação das lesões do pé diabético.
Embora o Ministério da Saúde apóie a campanha e ainda que se construa um modelo de prevenção, não existe no Brasil uma política de saúde pública que possa prevenir as doenças arteriais periféricas dos portadores da doença. O senhor Israel Garcia, embora tivesse deficiência renal crônica e problema de visão, não recebia exames periódicos nos pés, não tinha acompanhamento de equipe multidisciplinar especializada e não teve tempo, com procedimentos de revascularização tardios, de ter suas pernas salvas.
O grande coração de Garcia não suportou a dor agravada pela amputação. A retirada de uma perna abriu a porta para a infecção generalizada que o levou. Perdi meu pai no último dia 13, pouco antes do Dia Mundial do Diabetes. Perdi meu melhor amigo e meu mais lindo amor. Perdi um pouco a vontade de viver. Existe política para isso?
Mariana Garcia de Castro Alves é jornalista, estudante do Centro de Estudos Avançados em Jornalismo (LABJOR/Unicamp) e, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), desenvolve projeto de divulgação científica.
Notícia
Correio Popular (Campinas, SP)