"Não se pode imaginar um projeto de desenvolvimento do Brasil sem a inclusão da Amazônia, que é 60% do nosso território. Então têm que ser considerados os povos que lá estão, temos que lhes dar participação, que integrá-los", afirma Marco Antonio Raupp
Edmilson Conceição escreve para a revista “Economia Interativa”:
O que o progresso da ciência e a Amazônia têm a ver com o Brasil, os brasileiros e o mundo é o que nos esclarece aqui o presidente da SBPC, Marco Antonio Raupp. Por coincidência dialética, nasceu no outro extremo do país esse homem que vai comandar o espetáculo das discussões científico-culturais-tecnológicas no meio do maior bioma do mundo.
Gaúcho de Cachoeira do Sul, aos 71 anos que completará no mesmo mês de julho da reunião, Raupp terá como função reger uma orquestra quase sempre dodecafônica de cientistas e pesquisadores que, em suma, pesquisam, repensam e repõem o país diante de si mesmo todos os anos.
Com sua batuta de matemático, pesquisador em Análises Numéricas, doutor pela Universidade de Chicago, comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico, não faltam a Raupp títulos e capacitações. Nesta entrevista ele relembra a “Economia Interativa” que o conhecimento é um dos insumos mais valiosos do mundo para qualquer país e que está ligado a todos os aspectos de uma sociedade - social, cultural, econômico, ambiental. Repassa em lições concatenadas as mazelas, das desigualdades sociais, regionais e históricas brasileiras e apresenta as fórmulas e possíveis soluções para enfrentá-las. Como se propõe a demonstrar, conclui que até mesmo para enfrentar crises, o bom é estarmos vivendo a era do conhecimento.
Leia a primeira parte da entrevista com Raupp, sobre a Reunião Anual da SBPC em Manaus e sobre as relações da entidade com o Estado e o poder:
- A reunião de Manaus não corre risco de virar um happening, com índios, ONGs, militantes internacionais e políticos de todos os matizes realizando manifestações no centro da arena? A reunião da SBPC vai se diferenciar fundamentalmente em quê, em relação ao recente Fórum Social Mundial?
A reunião da SBPC é mais concentrada na questão da ciência. Ela vai se focar, em relação à Amazônia naquilo que se encaixar com as questões que trazem à baila a formação de recursos humanos, a importância da extensão da educação, de se atacar os desequilíbrios regionais, de se levar a ciência para alem dos muros universitários, para as empresas, para o serviço público. Na questão indígena, por exemplo, vai focar também a democracia e o multiculturalismo. Isso não é bobagem, temos que respeitar todas as manifestações culturais, porque isso enriquece a cultura nacional. E qualquer projeto de desenvolvimento de país tem que considerar isso. Nossa reunião será um happening, sim, mas no bom sentido. A ciência vai chamar a atenção para problemas gerais da sociedade brasileira. Vão estar reunidos cientistas, pessoas amigas da ciência, pessoas que entendem a importância da ciência, pessoas que estão apostando com a sociedade na contribuição que a ciência pode dar.
- A ciência e a cultura em discussão referem-se à da Amazônia integrada ao país ou à regionalizada e internacionalizada que se estampa na mídia? O que se porá na mesa sobre fronteiras, terras indígenas, desmatamento, internacionalização, minérios, agricultura?
A Amazônia é um desafio nacional. Ela tem uma inserção regional e projeção internacional. Quando dizemos que temos que desenvolver ciência para a Amazônia, não é para a Amazônia isoladamente. É para um grande pedaço do Brasil. Não se pode imaginar um projeto de desenvolvimento do Brasil sem a inclusão desse pedaço, que é 60% do nosso território. Então têm que ser considerados os povos que lá estão, temos que lhes dar participação, que integrá-los. A visão é a de projeto de nação. O papel da Amazônia é o que ela desempenha nesse projeto de nação sustentável. A ciência e a SBPC são universais, nesse sentido. Estamos preocupados com a ciência no Brasil, com um projeto de nação para o país, mas não nos descuidamos de pensar que há um sentido de universalidade em tudo isso.
- O tema foi escolhido a dedo para virar notícia ou porque a entidade tem contribuições originais e consolidadas para apresentar à sociedade brasileira e à comunidade internacional? Quais?
É claro que temos. A visão original, o paradigma da nossa visão sobre a Amazônia, para simplificar, é o seguinte: a Amazônia não é nem um santuário nem um cemitério. Nós não devemos destruir a Amazônia cortando madeira e criando gado lá, sem saber as conseqüências disso, porque em valor agregado isso significa muito pouco. Não devemos fechar a Amazônia, cobrando ingresso para visitação pública. Precisamos é entendê-la. A ciência pode contribuir com uma visão racional de todo esse sistema, de como operar nele, de como gerar conhecimento, de como esse conhecimento pode se transformar em novos modos de exploração, dentro de um projeto nacional. É isso. Nem santuário, nem cemitério.
- A Amazônia é de alguma forma contemplada hoje pelas políticas nacionais de ciência e tecnologia. Lá existe o Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), tem presença federal no Amazonas, no Pará. Qual é a sua visão sobre isso?
A Amazônia já teve investimentos significativos, mas muitos deles descontinuados. Um grande exemplo é o Centro de Biotecnologia da Amazônia, em Manaus. É um projeto que teve a participação da Zona Franca, da Suframa. Fizeram-se grandes investimentos lá, criou-se uma infra-estrutura boa, mas até hoje essa coisa não está funcionando em termos de produção científica ou de produção biotecnológica. Por quê? Por causa dos impasses políticos, de disputas entre ministérios. Existem vários exemplos, como o Instituto de Medicina Tropical, em Porto Velho, mas que vão mal ou bem, dependendo de quem olha. O que precisa é uma visão integrada, em nível federal, naturalmente, e colocar toda a infra-estrutura existente em pleno funcionamento. Tem que ampliar o INPA e outros e pôr tudo isso para funcionar, senão é desperdício de recursos. Não podemos nos dar a esse luxo. Há exemplos positivos de articulação federal com governos estaduais da região, principalmente com os estados do Amazonas e do Pará. Graças a isso se constituiu um sistema regional de ciência e tecnologia que aloca bons investimentos, já há uma consciência de que o conhecimento põe as coisas para funcionar. Criou-se uma universidade estadual, disseminada pelo interior: lá em Tabatinga, na tríplice fronteira, tem um campus da universidade estadual do Amazonas. Eles têm um sistema que cobre todos os municípios do estado. Criaram uma fundação de amparo à pesquisa, que está fazendo investimentos da ordem de R$ 40 milhões. É pouco, comparado com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), mas é muito mais do que por exemplo o Rio Grande do Sul investe, mais do que os investimentos de Santa Catarina, mais do que Pernambuco investe. É igual ao que a Bahia investe. A Bahia é outro bom exemplo de ação estadual. São exemplos de uma boa conexão do governo central com os governos regionais. Porque tem que haver esse esforço conjunto, de toda a sociedade. E tem que articular também, obviamente, com as indústrias. Manaus é um pólo importante, na área empresarial, então todo esse desenvolvimento tem que estar concatenado também com a área industrial.
- A SBPC tem alguma força política nas instâncias do Estado? Qual, como se explicita?
A opinião sobre isso deveria vir de alguém de fora, não de nós. Talvez o próprio Estado é que deveria responder se influenciamos ou não. Mas o fato de estamos presentes em todos esses Conselhos que assessoram os governos e participar de discussões no Legislativo e no Judiciário, tudo isso nos leva a crer que eles gostam de ouvir as opiniões da SBPC, que temos alguma importância.
- Ciência, tecnologia, política, economia e sociedade. Como a entidade e seus membros entendem e exercem as relações entre esses pilares?
Acho que respondem a isso todos os exemplos que já dei antes de bandeiras novas que a SBPC levantou e continua a levantar. Essas participações nos grandes movimentos sociais mostram que a SBPC está atenta e que todos esses pilares estão co-relacionados. A entidade foi criada com essa preocupação. Lembremo-nos que em 1948, mais precisamente em decorrência da Segunda Grande Guerra, aconteceram dois dos maiores impactos que atingiram a ciência e a tecnologia. Um foi o surgimento da energia nuclear, que mostrou não só a força, mas a capacidade da ciência para descobrir novas energias, e nesse caso também o poder destrutivo da ciência. Por outro lado vimos o Projeto Manhattan, que criou a tecnologia do computador, que tinha como primeira função fazer os cálculos para a realização da fissão nuclear. Von Neumann, um grande matemático, foi o cara que liderou a criação desse primeiro computador. Hoje ninguém consegue imaginar a organização de qualquer sociedade, de qualquer governo, sem o computador, sem um sistema computacional que permita a transferência de dados, a difusão de conhecimentos, a comunicação entre pessoas. É claro que isto está relacionado também com a problemática da sociedade: política, guerra, como usar a ciência. Os primeiros a se preocupar, a se levantar contra a utilização nefasta da energia nuclear foram os cientistas. Eles é que pensaram antes de todo mundo em construir sistemas políticos que pudessem controlar o poder que vinha com o domínio dessa enorme força. Einstein foi um que capitaneou o esforço e os movimentos pacifistas. A SBPC foi criada com esse espírito e dentro desse momento do pós-guerra. A preocupação dos cientistas era: não podemos deixar a ciência ser usada para qualquer fim. Esse é o paradigma da SBPC, ciência e sociedade. A nossa revista, que se chama "Ciência e Cultura", espelha isso. Não podemos dissociar a ciência dos objetivos da sociedade, porque senão ela pode ser usada para a destruição da própria sociedade. Essa preocupação está presente sempre na SBPC, é o nosso DNA: a permanente interação entre todos aqueles pilares mencionados.
- Com o que temos, qual é o futuro da ciência e tecnologia no Brasil? E o que precisa ser feito para ser melhor?
Hoje nós temos implantado no país um sistema de ciência e tecnologia. A SBPC teve um papel importante ao chamar a atenção da sociedade e dos governos para a instituição desse sistema. Hoje estamos promovendo e produzindo sistematicamente conhecimento científico. Esse sistema é constituído entre outras por entidades federais como o CNPq, Capes, Finep (Financiadora de Estudos e Projetos). Esses e outras dezenas de agentes ajudaram a reformar a velha universidade, transformando-a em pilar da sociedade moderna. Um desses pilares foi a criação da USP (Universidade de São Paulo), em 1934, outro, a criação da Universidade do Distrito Federal, a Universidade de Brasília. Essa criação de um ambiente de apoio às atividades científicas, como a formação de professores de nível superior, tudo isso foi importante. É um sistema sem similar entre os países da América Latina. Não tem. Ninguém tem uma integração sistêmica como essa que nós temos aqui. Isso, em termos de ciência fundamental, ciência básica, ciência acadêmica.
Por outro lado, nós temos excelentes exemplos de sucesso também em áreas de ciências aplicadas e ciências tecnológicas. Desde o início do século passado, a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Butantan, na questão da saúde pública. É verdade que ainda temos seriíssimos problemas de saúde pública, mas essas instituições já demonstraram que os recursos nelas investidos revertem em grandes benefícios, embora elas não tenham capacidade para enfrentar todos os problemas de um país com as nossas dimensões. Elas são exemplos importantes de sucesso. Na ciência aplicada, na tecnologia, temos o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), aqui em São Paulo, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o CTA (Centro Técnico Aeroespacial), de São José dos Campos e a própria Embraer, a Petrobras, na extração de petróleo em águas profundas. Tem muito mais exemplos de organizações como essas que tornam o Brasil respeitado em todo o mundo. E como é que foi desenvolvida essa questão da pesquisa de petróleo em águas profundas? Com a cooperação das universidades brasileiras, com papel destacado da Escola Politécnica da USP e principalmente da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), da Coppe (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia). Ali foram construídos centros de desenvolvimento e difusão de conhecimentos que são exemplos de atividade com papel vital no desenvolvimento tecnológico do país.
O que nós temos que fechar é essa conta que resulta de um desenvolvimento histórico desordenado, que nos deixa aquele déficit, aquele saldo de desigualdades sociais e desigualdades regionais. Temos é que melhorar a distribuição desse sistema de ciência e tecnologia para outras áreas do País. Esta é uma questão estratégica. Precisamos satisfazer um principio de justiça federativa. Muitos desses estados pobres não podem continuar dando como contribuição para o PIB nacional mais do que recebem em investimentos em ciência e tecnologia. Isso serve até para o propósito de inclusão social. A modernização tem que estar acoplada com o projeto de inclusão. Por último, um problema que tem que ser resolvido é esse das estruturas legais, que foram feitas para uma outra era, não para a era da economia do conhecimento.
Nota da redação: A segunda parte da entrevista será publicada na edição desta terça-feira, 16 de junho, do JC e-mail.