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Laboratório de Sensibilidades

Precisamos de razões para crer neste mundo

Publicado em 06 abril 2020

Por laboratoriodesensibilidades

24. Podemos aproximar dessa questão certos acontecimentos memoráveis: por exemplo, a coragem com que respeitáveis sanitaristas brasileiros, Adolpho Lutz e Emílio Ribas, enfrentaram há mais de um século a grande epidemia de febre amarela. É que eles, além de outros voluntários (Oscar Moreira, Domingos Vaz, André Ramos e Januário Fiori), levando a sério uma teoria do médico cubano Carlos Finlay, deixaram-se picar por mosquitos infectados que a teoria indicava como sendo os efetivos transmissores da doença. Sem dúvida, a saúde de todos eles correu um grande risco, mesmo que, prudentemente, tenham tomado certos cuidados, como o de usar mosquitos infectados de um “caso leve” [1]. Mas isso não é tudo. Convém salientar que eles, sem que fossem obrigados a isso, articularam suas próprias vidas orgânicas a uma experiência pioneira cuja única garantia, naquele momento, era algo forte demais: dar consistência experimental ao brilho de uma idéia que os arrastou para além de sua compreensão imediata. E nesse intenso movimento eles não apenas ajudaram a “nos proteger do caos” como também a vencer o caos mental que se apoderava dos estudiosos daquela epidemia. Deleuze recolhe de Henri Michaux uma comparação muito útil neste caso: esse acontecimento nos leva a pensar que “o que basta para as ‘idéias correntes’ não basta para as ‘idéias vitais’”, justamente as idéias “que se deve criar” e que, uma vez criadas, rodeiam-se de zonas de indeterminação, inexploradas, instigadoras de re-criações.

 

25. Com essa referência ao acontecimento vivido por alguns dos nossos sanitaristas, posso reafirmar uma obviedade: a de que a filosofia não tem o monopólio das idéias vitais. Mas seria possível privilegiar um outro lugar para elas, para essas idéias que abrem saídas para a vida? Uma pergunta de Deleuze aponta a dificuldade: “que seria pensar se ele não se defrontasse sem cessar com o caos?” Quando se diz que as idéias vitais são “objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência”, aparece a pergunta: como pensar um “lugar” para elas nesse conjunto? Ou: em que lugar ocorre o pensar que elas diferenciam tão vertiginosamente? Se as idéias vitais são inseparáveis de saltos de intensidade experimentados por quaisquer dos nossos poderes (desde o sentir até o pensar por conceitos, por funções ou por sensações ), a procura de um lugar extensivo para situá-las já é por si mesma um “criar” e, portanto, um lance de idéia vital [2]. O salto intensivo implicado pelas idéias vitais, não sendo redutível a conexões extensivas, é uma indicação de que nosso campo de experiências com acontecimentos sofre aberturas não apenas à vida orgânica, mas também à vida não-orgânica. Deleuze fala em “potência de uma vida não-orgânica, aquela que pode haver numa linha de desenho, de escrita ou de música”. Por isso, ele pode dizer que “são os organismos que morrem, não a vida”. Por que? Porque a potência de uma vida não-orgânica presente numa “obra” acaba por indicar “uma saída para a vida”, de traçar “um caminho por entre as vias”. Neste sentido, “criar” é “resistir”. E resistir, primeiramente, à tentação de escrever com seu ego, “sua memória e suas doenças”. Deleuze diz que “no ato de escrever há a tentativa de fazer da vida algo mais do que pessoal, de liberar a vida daquilo que a aprisiona”. Ele destaca a “pequena saúde frágil” de três autores que ele tanto admira, Espinosa, Nietzsche e Lawrence, dotados de um “fraco organismo””, de um “equilíbrio mal assegurado”. Entretanto, “não é a morte que os quebra; é sobretudo o excesso de vida que eles viram, provaram, pensaram”. O que com eles aconteceu é certamente uma virtualização excepcional, uma vida não-orgânica, “uma vida muito grande para eles” [3]. A saúde frágil transforma-se na grande saúde, tema que sempre retorna em Deleuze. A grande saúde, mesmo às custas da “doença”, implica “realizar um pouco de potência”, pois “a doença deve servir para alguma coisa, como todo o resto”. Para ele, a doença “não é uma inimiga”, pois “aguça uma visão da vida, uma sensação da vida”; trata-se, de “ser tomado” pela “vida em toda sua potência, em toda a sua beleza” [4] até quando o organismo suportar os encontros intensivos com algo forte demais.

26. Mas, aí, algum ferino ceticismo, que mal suportou a palestra até este ponto, grita lá de não sei onde: pois bem, professor, toda essa fala em prol da grande saúde, em prol de obras e ações que marcam vigorosamente a potência de pensar e a potência de agir, tudo isso pode até valer em relação aos grandes pensadores, artistas, cientistas e benfeitores da humanidade… mas pergunto: como alguém incapaz de uma grande obra, e não sendo um místico, pode ter alguma fé no mundo, ir além do jogo da confiança e da desconfiança, e ser assim arrebatado pela vida em toda sua potência, em toda sua beleza? Como pode um irrisório rosário de misérias vividas comportar rebrilhos de uma vida, já que o algo forte demais que o afronta não passa de uma existência alquebrada?

27. Diante da pergunta, o palestrante cala na garganta a tendência ao discurso consolador, e espera que uma outra junção de vozes transforme essa pergunta numa outra saída. Ao buscá-la, ele apenas lê, sem comentário algum: “cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia . É toda uma conversão da crença”. Esta “não se volta para outro mundo, dirige-se a este mundo”. “O certo é que crer não significa mais crer em outro mundo, nem num mundo transformado. É apenas, simplesmente, crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo, e, para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem nomeadas as coisas” [5]. Ora, restituir o discurso ao corpo implica cuidar dos encontros intensivos neste mundo, mundo do qual “nos desapossaram”, o que nos obriga a politizar a questão em toda parte em que a vida é ameaçada. Assim, “acreditar no mundo” vem a ser, “principalmente, suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos”. Porque, “é no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se, ao mesmo tempo, de criação e povo” [6], salientando-se que esse e entre criação e povo é o da consistente co-presença intensiva e não o da organizatória relação extensiva entre chefes e subordinados.

Luiz B. L. Orlandi

[1] Ver Neldson Marcolin, “Na própria pele”, artigo na seção “Memória” da Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, março de 2009, pp. 6, 7.

[2] G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, Paris : Minuit, p. 189, 196, 197. O que é a filosofia ?. Tr br. de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, São Paulo: Ed. 34, pp.259, 266-268.

[3] G. Deleuze, Pourparlers, Paris: Minuit, 1990, p. 196. Conversações, tr. br. de Peter Pál Pelbart, São Paulo: Ed. 34, 179.

[4] L’Abécédaire, ob. cit., Letra L de Literatura.

[5] G. Deleuze, Cinéma 2. L’Image-temps, Paris: Minuit, 1985, pp. 223-225. Cinema 2. A imagem-tempo, tr. br. De Eloísa de Araújo Ribeiro, São Paulo : Ed. Brasiliense, 1990, pp. 207-209.

[6] G. Deleuze, Pourparlers, ob. cit., p. 239. [Entrevista a Toni Negri em 1990]. Conversações, ob. cit., p. 218.

A respeito de confiança e desconfiança. Comunicação apresentada no Colóquio “Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde”. Rio de Janeiro. 8 de maio de 2009. Publicada como capítulo de livro em Túlio Batista Franco e Valéria do Carmo Ramos (Org.), São Paulo, Editora Hucitec, 2010, pp. 17-32.