Professores e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP já visitam, fotografaram e catalogaram mais de 600 espaços públicos (praças, parques, calçadões) de dezenas de cidades brasileiras. Trata-se de projeto destinado a fazer um estudo histórico do paisagismo nacional e formar um centro de documentação sobre o tema. Iniciada há quatro anos, a pesquisa abrange um século de paisagismo.
A CARA DO BRASIL NAS PRAÇAS E PARQUES
Projeto pioneiro revela a descontração e beleza dos parques, praças e calçadões mais curiosos do País através de uma pesquisa inusitada. Banco de dados informatizado, arquivo de projetos e fotos são alguns dos resultados que a equipe vem buscando
Há quatro anos, estudantes e alguns arquitetos-pesquisadores do Laboratório de Paisagem do Departamento de Projetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) vêm catalogando e fotografando centenas de projetos paisagísticos - praças, parques, calçadões - de varias cidades do Brasil com o objetivo de analisar as linhas projetuais desses espaços públicos, do final do século passado ale os dias atuais.
Sob a coordenação do professor Silvio Macedo, o projeto Quapá - Quadro do Paisagismo Brasileiro, com oito alunos de graduação, três de mestrado, cinco arquitetos e uma secretária, tem o intuito de criai um banco de dados, a ser posteriormente editado em livro, que servirá de base para estudos sobre o paisagismo no Brasil e p.ira a divulgação da arquitetura paisagística nacional. "Queremos criar um centro de documentação sobre o assunto, com fotos, slides, projetos e vídeos, alem de um banco de dados informatizado, que ficara na FAU/USP", conta Macedo.
Ele explica que o projeto se baseia na idéia de que há no Brasil uma linguagem própria de paisagismo e que a pesquisa pretende agrupar os espaços estudados tanto por temática/função como por características morfológicas. "Estamos fazendo um trabalho basicamente públicos. Com isso queremos detectar como esses espaços foram pensados por seus criadores, embora nem sempre tenham sido elaborados por arquitetos. Alguns parques foram criados por engenheiros, agrônomos e até curiosos."
TRÊS ESTILOS
O trabalho envolve três etapas: Quapá I, iniciado em 1994, consiste na montagem de um acervo de plantas, desenhos, fotos e textos de projetos paisagísticos. Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Curitiba, Campo Grande, Fortaleza, Florianópolis, Goiânia, Maceió, Niterói, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Santos e São Paulo fazem parte das primeiras cidades visitadas.
Quapá II, iniciado em 1997, com prazo para terminar até o ano 2000, vem executando pesquisas de campo em 24 cidades: Aracaju, Campina Grande, Cuiabá, Campinas, Guarujá, João Pessoa, Juiz de Fora, Londrina, Maceió, Manaus, Natal, Osasco, Porto Velho, Praia Grande, Recife, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Santo, André, São José do Rio Preto, São Luís, São Paulo, Sorocaba, Teresina e Vitória. Já a terceira fase do projeto. Quapá III, terá início a partir do ano 2000, sendo concluído em 2003, quando os espaços particulares estiverem todos traçados.
Com financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Pró-Reitoria de Pesquisa e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o projeto consumiu na primeira fase R$ 90 mil, sem contar as bolsas de estudo, e na segunda já passou dos R$ 80 mil, sendo que ainda se encontra na metade do caminho.
Segundo Macedo, fórum visitados aproximadamente 600 lugares, coletados em torno de 2 mil projetos e fotografias de logradouros. "A intenção e criar um banco de dados, além de editar um livro que já está na fase piloto, Quadro do Paisagismo no Brasil. Só falta patrocinador."
O paisagismo no Brasil se define no século XIX a partir do surgimento de uma rede consolidada de cidades grandes e médias que, situadas principalmente no litoral e sob forte influência urbanística européia, mais precisamente francesa e inglesa, possuem condições para a criação de obras significativas, tanto de espaços públicos, parques, praças, boulevards, como privados, jardins de palacetes e chácaras.
É no século XX que o paisagismo brasileiro alcança identidade projetual própria, especialmente com os trabalhos de Roberto Burle Marx, por volta dos anos 40. Seus projetos tiveram grande influência na definição dos paradigmas do paisagismo moderno brasileiro, "Eles se caracterizam pelo plantio de vegetação tropical, por total domínio escalar dos espaços e pelo tratamento dos pisos com grandes planos de cor e com desenhos inspirados na pintura do próprio artista", analisam os pesquisadores.
Eles dividem os parques em três períodos característicos: ecletismo, modernismo e contemporâneo. Na fase do ecletismo surgem os primeiros parques públicos, praças ajardinadas, jardins de mansões dos barões do café no Rio de Janeiro e em São Paulo. Esse período inicia-se com a construção do Passeio Público no Rio de Janeiro e perde sua hegemonia no final da primeira metade do século XX, com os grandes projetos públicos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Durante o ecletismo é total a influencia francesa e inglesa sobre todos os projetos. "Esse período é marcado por uma vegetação mais européia, com lagos sinuosos e fontes importadas, marcando quase um cenário", ressalta Macedo. Como exemplos ele cita a Praça Nove de Julho, em Salvador, a Praça da República e o Jardim do Museu do Ipiranga, em São Paulo, a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, e o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. "Orgânicos ou não orgânicos, eles sempre têm eixos e espelhos d'água."
O período moderno tem início com os projetos de Roberto Burle Marx, no Recife, e os jardins do edifício do Ministério da Educação e Cultura (MEC), no Rio de Janeiro. Até hoje a maioria dos projetos segue seus paradigmas, como o uso da vegetação nativa e o total rompimento com as escolas clássicas. Macedo lembra que, na Praça Ministro Salgado Filho, no Recife, a primeira mudança é a forma dos pisos, mais elaborados, coloridos e com desenhos. Nesse período, a praça adquiriu espaços para lazer e esporte: "As fontes e as pérgulas, mais românticas, dão lugar a lagos com inspiração mais cubista, além da vegetação nativa, tropical, com forte sentido de nacionalismo". Esses aspectos podem ser notados no projeto do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e em muitos parques de Curitiba, no Paraná. De acordo com Macedo, esse é o estilo predominante nos espaços públicos brasileiros.
Já o período contemporâneo reflete a inquietação dos anos 80 e 90 e ainda não está consolidado. Recebe uma forte influência dos paisagistas japoneses, americanos e franceses, em especial na seleção de estruturas construídas de vegetação. "Tem características ecológicas muito fortes, incorporando elementos como colunas e pórticos, com uma tendência mais internacional, embora ainda não seja fácil caracterizá-lo", observa o coordenador.
Apesar das linhas de projeto modernista serem dominantes, ainda se projeta de acordo com cânones do ecletismo, mas novas opções e formas de ação começam a surgir. A partir da década de 80, alguns sinais de ruptura e evolução no projeto dos espaços livres podem ser percebidos em diversos pontos do País.
Como expoentes desse novo período. Macedo destaca o parque Cidade de Toronto, em São Paulo, construído com o patrocínio da cidade canadense numa região de charco totalmente aproveitada: e a Praça Itália, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. "Uma das principais características desse estilo, embora ainda não esteja totalmente definido, é a tentativa de criar um cenário natural, muito próximo ao do próprio local, como o parque da Lagoa de Abaeté, na Bahia, com pórticos, dunas e desenhos mais geométricos", diz.
DETALHES CURIOSOS
Segundo os pesquisadores, não é só no eixo Curitiba - São Paulo - Rio do Janeiro que se encontram obras curiosas e interessantes. Por todo o Brasil existem muitas coisas boas e bem-feitas. "Em Teresina e Manaus, onde nunca imaginávamos existirem praças e parques, tivemos uma imensa surpresa."
Os projetos de Teresina, no Piauí, foram muito bem executados, de acordo com os pesquisadores, e a arquiteta responsável mostrou que gosta bastante de palcos, teatros de arena e arcadas. "É engraçado esse tipo de característica numa cidade em que o sol é escaldante e as pessoas só conseguem ir a uma praça no final da tarde ou à noite, quando o sol se põe. Sem contar que no Brasil não existe a cultura de usar espaços públicos para atividades de teatro."
Outra curiosidade é que em Cuiabá, no Mato Grosso, os espaços são utilizados mais por pessoas do sexo masculino, garantem os pesquisadores. "Adultos, velhos e crianças vão às praças e parques mais que as mulheres, devido ao comportamento social da sociedade cuiabense." Além disso, e praxe ceder os espaços públicos para associações religiosas.
Já na Praça Central de Porto Velho, em Rondônia, as pessoas se encontram para bater papo e encontrar amigos. "Às vezes, famílias inteiras marcam encontro na praça da cidade, vêem-se senhoras tirando fotos com os filhos no meio das fontes, casais de namorados curtindo um momento romântico. Cada cidade usa de uma forma diferente o seu espaço."
Manaus e uma cidade com tudo estruturado e projetado. "Nesta cidade", se encantam os pesquisadores, "tem até uma praça de alimentação no jardim feita pela própria prefeitura. Os dois novos parques que acabaram de ser construídos possuem 90% da área com mata nativa preservada".
Outro aspecto peculiar observado pelo pesquisadores é como os fatores sociais e políticos influenciam na construção dos espaços. "Em época de eleições, bairros pobres e ricos recebem o mesmo equipamento para os espaços públicos e com mais freqüência. Na época de entressafra política, há uma maior concentração de investimentos nas regiões ricas." Atualmente, com a intensa urbanização do País, a demanda desses espaços aumentou havendo maior pressão popular sobre o poder público para as construções.
A cidade de São Paulo, apesar de ser o principal centro urbano do País, investe pouco nos espaços públicos. "Em comparação com o Rio de Janeiro. Curitiba. Fortaleza e Teresina. São Paulo está longe de ser um bom exemplo. O problema é que os políticos que passam pela Prefeitura não dão muita importância a isso."
Francine Sakata, arquiteta formada na FAU, diz que participar da pesquisa está sendo um excelente aprendizado. "O estudo de campo permite que formemos um repertório de informações muito rico. Podemos verificar como os espaços estão sendo usados, se sofrem vandalismo, se têm manutenção ou não, se foram bem planejados, o que devemos ou não fazer."
Para outro pesquisador da FAU, Fábio Rolla, a pesquisa vem rendendo bem. Ele tem projeto de pesquisa de mestrado voltado para essa área. "Retiro todo o substrato de informações para a minha tese de mestrado a partir dessa pesquisa do Quapá. Além disso, gosto muito de conhecer os espaços idealizados por profissionais brasileiros."
Notícia
Jornal da USP