Depressão, transtorno de ansiedade generalizada, estresse pós-traumático, problemas de memória, dificuldade para prestar atenção e falta de flexibilidade cognitiva, que seria aquela capacidade de a mente se adaptar a novos desafios e a situações diferentes — tudo isso aparece com maior frequência em quem teve a covid-19, se a gente compara com a população em geral. Sinal de que aí tem. Tudo bem que não é de hoje a desconfiança de que a infecção pelo coronavírus abalaria a cabeça. Mesmo assim, o estudo realizado na USP (Universidade de São Paulo), publicado recentemente na General Hospital Psychiatry, está dando no que falar. Não faltam bons motivos para isso.
O primeiro deles é: se antes havia a suspeita de que a severidade da doença estaria relacionada ao aparecimento desses transtornos psiquiátricos e de alterações cognitivas, quase como se eles fossem uma consequência de casos mais preocupantes da infecção, os pesquisadores brasileiros derrubaram essa ideia.
Na verdade, os pesquisadores não perceberam qualquer associação entre a gravidade da covid-19 e as desordens neuropsiquiátricas. Elas foram encontradas igualmente em pessoas que tiveram quadros moderados de infecção e que ficaram apenas 24 horas no hospital em um leito comum. Você também se engana se acha que os transtornos psiquiátricos na pós-covid seriam mais prevalentes em quem, vamos supor, perdeu um familiar por causa da doença ou enfrenta dificuldades financeiras devido à pandemia. Se fatores assim, tão comuns nestes tempos desafiadores, fossem o principal empurrão para a mente de um indivíduo pós-covid se afundar deprimida ou ficar ansiosa à toa, o vírus diretamente teria pouca culpa no cartório. Só que não, porque os cientistas também não acharam uma associação entre um estado de ânimo prejudicado por luto ou falta de dinheiro e o surgimento de desordens neuropsiquiátricas meses depois da doença. Portanto, a dedução é de que é o coronavírus mesmo que apronta, independentemente de qualquer outra coisa. "As evidências nesse sentido são crescentes. O Sars-CoV 2 tem uma ação no sistema nervoso central. A única duvida é: como ele faz isso?", diz o médico Rodolfo Furlan Damiano, que é pesquisador e preceptor no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Os diferenciais do estudo O psiquiatra e seus colegas avaliaram 425 adultos em algum momento entre seis e nove meses depois de terem recebido alta do Hospital das Clínicas da USP, onde foram internados, claro, por causa da infecção pelo Sars-CoV 2.
As investigações que existiam a respeito do impacto cognitivo e psiquiátrico da covid-19 em geral foram feitas por via remota — por exemplo, por telefone. No trabalho da USP, porém, as entrevistas com psiquiatras, somadas a uma batelada de testes, foram ao vivo e em cores, tomando de cada participante mais de duas horas. "Além disso, as pesquisas realizadas anteriormente focavam um grupo específico de sintomas, analisando ou só a depressão ou apenas as questões cognitivas", exemplifica o psiquiatra. "Os questionários eram curtos, indagando simplesmente se a pessoa por acaso havia se sentido triste ou sem apetite nas últimas quatro semanas, entre outras coisas." Já o trabalho brasileiro usou o que, na linguagem acadêmica, seria um questionário estruturado. "Ele foi criado conforme critérios padronizados para fazer um diagnóstico e, no caso, usamos os da Associação Americana de Psiquiatria", conta o médico. "O ônus é que, por ser demorado e pelo fato de a pessoa precisar comparecer pessoalmente para ele ser aplicado, nem todos os mais de 3,7 mil pacientes internados e elegíveis para participar acabaram topando." Ainda assim, 425 voluntários já é um número e tanto. Mas o pulo do gato, talvez, foi o grupo da USP ter lançado mão de uma metodologia à base de inteligência artificial para analisar todas as variáveis nas respostas, chegando a um resultado mais preciso de como todos estavam — e, de fato, muitos participantes estavam sofrendo.
Depois da covid-19
A mesma coisa aconteceu com a depressão: 8% dos participantes do estudo estavam deprimidos e essa porcentagem é praticamente o dobro da encontrada nos brasileiros em geral, que oscila entre 4% e 5%. Talvez você levante a dúvida: e se essas pessoas já estivessem deprimidas antes mesmo de se infectarem e serem internadas? "Pode ser, mas pensamos nisso também", conta o doutor Damiano. "De fato, somente 2,5% dos indivíduos começaram a ter depressão após a internação. Os outros já tinham sintomas depressivos. Mas, em casos assim, notou-se uma piora significativa na pós-covid." Por sua vez, 15,5% das pessoas que se recuperaram da infecção meses antes apresentaram transtorno de ansiedade generalizada. É uma prevalência bem maior do que a encontrada normalmente entre os brasileiros, que fica perto de 10%, em média. "Esse quadro, como o próprio adjetivo 'generalizada' no nome sugere, é caracterizado por um estado de preocupação constante, com tudo e com todos", define Rodolfo Damiano. Por fim, 13,6% das pessoas na pós-covid sofrem de estresse pós-traumático. "É um transtorno desencadeado quando se vivencia uma situação que colocou em risco a própria vida ou a de alguém que estava por perto", explica o psiquiatra.
Nem a cognição fica a mesma
Pois é, mais da metade dos participantes (51,1%) relatou que a sua memória já não era a mesma de antes da infecção. Todos, diga-se, fizeram testes que avaliaram não apenas a capacidade de memorizar, mas a atenção, a orientação espacial, a noção de tempo e a fluência verbal. O lamentável é que tudo parece declinar com a passagem desse vendaval chamado Sars-CoV 2 pelo organismo.
Por que tudo isso?
A covid-19 não é a única infecção por vírus que deixa um rastro no sistema nervoso central. "Mas aparentemente, pelo que temos observado, nenhuma outra tem tanto impacto negativo na saúde mental e provoca tanta perda cognitiva", afirma Rodolfo Damiano. Segundo o psiquiatra, as razões podem ser diversas: "Entre elas, a inflamação disparada pelo coronavírus, danos nos minúsculos vasos e a formação de coágulos atrapalhando a irrigação do cérebro, sem contar a presença do próprio Sars-CoV 2 por ali", lista. A realidade é que ninguém sabe as causas do que os psiquiatras andam encontrando meses depois de a infecção ter passado. E duas coisas também ninguém pode afirmar neste momento. Uma delas é se, um dia, esses transtornos darão trégua e se as pessoas irão recuperar suas funções cognitivas. Talvez, mas sem garantias. Outra é se casos leves, como os provocados aos montes por ômicron, também não levariam a problemas neuropsiquiátricos. "É possível, mas a pós-covid de casos leves não foi foco do estudo, então não dá para assegurar nada", justifica o doutor Damiano. Os cientistas tampouco avaliaram crianças e adolescentes, cujo cérebro não deveria ser deixado à mercê de um vírus desses.
Por enquanto, o que temos é um par de recomendações. "Quem teve covid-19 e, tempos depois, sente sintomas desses transtornos deve procurar um acompanhamento psiquiátrico", avisa o médico
Por último, esse tremendo impacto na saúde mental sublinha a necessidade de todo mundo evitar infecção e reinfecção com as medidas de sempre — máscara, só para refrescar a memória dos descarados nas ruas, e vacina. Não custa repetir até entrar na cabeça.