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Por que o mesmo medicamento age de formas diferentes em cada pessoa? (1 notícias)

Publicado em 03 de julho de 2025

Você já tomou um remédio que funcionou perfeitamente para um amigo, mas não fez o menor efeito em você? Ou pior: já sentiu efeitos colaterais intensos enquanto outras pessoas nem perceberam que estavam medicadas? Esse fenômeno, embora curioso, é mais comum do que parece —e a ciência tem várias explicações para ele.

Cada indivíduo é biologicamente único e apresenta um conjunto particular de características genéticas, fisiológicas e comportamentais que influenciam diretamente como seu organismo absorve, distribui, metaboliza e elimina os medicamentos.

"As pessoas são diferentes umas das outras, não só na sua genética, mas também em uma série de outras características, como a idade, o peso, o sexo, doenças pré-existentes e até alergias", resume o médico geneticista Salmo Raskin, também diretor científico da SBGM (Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica).

Tudo isso influencia a forma como o corpo processa e responde a um medicamento.

Cada organismo, um laboratório diferente

Todo medicamento, após ser ingerido, inicia um complexo percurso pelo organismo. Ele precisa ser absorvido (geralmente no estômago e intestino), metabolizado (principalmente no fígado), distribuído pelos tecidos e, por fim, eliminado (principalmente pelos rins). Esse caminho é o mesmo para todos, mas a velocidade e a eficiência com que cada etapa acontece variam bastante de uma pessoa para outra.

"Essas variações individuais impactam tanto a eficácia quanto a ocorrência de reações adversas", sinaliza Patricia Moriel, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp e coordenadora do Grupo técnico de Farmacovigilância do CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo).

Assim, enquanto de 50% a 75% das pessoas respondem bem ao tratamento, segundo a farmacêutica, uma parcela significativa pode não obter o efeito esperado, sentir efeitos colaterais indesejados ou simplesmente não ter nenhum efeito do medicamento.

Essa diferença pode ser influenciada por fatores fisiológicos. A idade é um deles. "Bebês e idosos têm metabolismo mais lento, o que pode aumentar o tempo de ação e os riscos de efeitos adversos", diz Moriel. Portanto, a dose dos medicamentos para essas pessoas, em geral, tende a ser menor.

O peso corporal também importa, já que a maneira como o medicamento se distribui no organismo pode mudar conforme a quantidade de gordura e músculos. "Pessoas com maiores pesos corpóreos podem precisar de doses mais altas para atingir o mesmo efeito, pois o medicamento pode ser mais diluído em um volume maior de sangue e tecidos", explica Maurício Yonamine, farmacêutico, mestre e doutor em toxicologia e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Já o sexo biológico influencia por conta de diferenças hormonais e metabólicas.

A genética no comando dos remédios

No entanto, o fator talvez mais intrigante está escondido no DNA. Nosso material genético é 99,9% igual, mas aquele 0,1% de variação faz uma enorme diferença quando o assunto é metabolizar medicamentos. "Diferentes pessoas produzem quantidades distintas de enzimas que metabolizam os medicamentos", explica Raskin.

Por exemplo, um gene chamado CYP2D6 é responsável por produzir uma enzima que metaboliza vários antidepressivos, analgésicos e outros medicamentos. Quem possui uma versão hiperativa desse gene —e como consequência uma produção grande de enzima— pode eliminar o remédio rápido demais, tornando-o ineficaz. Já quem tem uma versão mais lenta pode acumular o remédio no organismo, correndo risco de intoxicação.

Essa área de estudo é chamada farmacogenética ou farmacogenômica, que tenta entender como as variações genéticas afetam a resposta a medicamentos. Segundo Patrícia Moriel, pesquisadora da área, testes genéticos já são utilizados para personalizar tratamentos em áreas como oncologia e psiquiatria.

"Por exemplo, podem identificar variantes nos genes CYP2D6, CYP2C19 ou SLCO1B1, que influenciam a eficácia e segurança de medicamentos como antidepressivos, anticonvulsivantes, analgésicos, anticoagulantes e até estatinas", lista.

Ela diz ainda que esses testes também são capazes de analisar características moleculares dos tumores, como mutações em genes como EGFR, BRCA1/2 ou HER2, permitindo indicar qual terapia alvo ou quimioterapia terá maior chance de sucesso para aquele tipo específico de câncer.

Eles podem ser realizados a partir de amostras de sangue, saliva, raspagem bucal ou por meio de biópsias tumorais, quando o objetivo é caracterizar o perfil genético do câncer.

"Embora no Brasil o uso desses testes ainda seja limitado na prática clínica de rotina, em outros países, como a Espanha, eles já fazem parte dos protocolos do sistema público de saúde, sendo realizados antes da prescrição de certos medicamentos. Isso permite uma escolha mais precisa do tratamento, aumentando a efetividade terapêutica e reduzindo o risco de reações adversas", sinaliza Moriel.

O papel (nem sempre coadjuvante) do fígado e dos rins

Se o DNA determina como produzimos as enzimas metabolizadoras, o estado de saúde dos órgãos que processam e eliminam os medicamentos também pesa bastante na balança.

O fígado é o principal centro de "processamento" do corpo. Ele desempenha um papel crucial no metabolismo (biotransformação) da maioria dos medicamentos.

Já os rins atuam como os principais órgãos de excreção, filtrando o sangue e eliminando os metabólitos —ou, em alguns casos, o próprio fármaco inalterado— por meio da urina. Se qualquer um desses órgãos não funcionar direito, o remédio pode se acumular perigosamente.

Como alerta Yonamine: "Em casos de insuficiência hepática ou renal, há risco de toxicidade pelo acúmulo de medicamentos no organismo". Por isso, exames de função hepática e renal costumam ser solicitados em tratamentos mais delicados, tanto antes da medicação como depois, para acompanhamento do impacto nesses órgãos.

Alimentação, álcool, cigarro e outras armadilhas cotidianas

Não basta só olhar para dentro do corpo. O que fazemos no dia a dia também interfere no funcionamento dos remédios.

Um exemplo clássico: o suco de grapefruit (toranja) pode inibir a enzima CYP3A4, responsável pela metabolização de muitos medicamentos, como as estatinas (exemplo, sinvastatina e atorvastatina), benzodiazepínicos e anti-hipertensivos (como anlodipino), levando a concentrações elevadas no sangue e maior risco de reações adversas. Laticínios podem prejudicar a absorção de certos antibióticos, como a tetraciclina e o ciprofloxacino.

Álcool e tabaco também têm efeitos consideráveis. Bebidas alcoólicas podem potencializar a ação de sedativos como ansiolíticos (diazepam, lorazepam), antidepressivos tricíclicos e antipsicóticos, além de sobrecarregar o fígado, prejudicando a metabolização de outras substâncias. Há risco, inclusive, de toxicidade hepática, como no caso de interação com o paracetamol.

Já o tabagismo acelera o metabolismo de alguns medicamentos, como a teofilina, a clozapina e a olanzapina, reduzindo sua eficácia.

"Certos medicamentos não conseguem ser absorvidos adequadamente diante de certos alimentos ou substâncias. Por isso, é comum que muitos medicamentos precisem ser tomados em jejum", explica Salmo Raskin.

É importante ainda ficar atento as interações medicamentosas. O uso de outros fármacos ou suplementos pode interferir, principalmente se eles atuarem em vias metabólicas semelhantes àquelas em que o medicamento pretende atuar.

"O uso concomitante de outros medicamentos (incluindo os de venda livre, como analgésicos e antiácidos) ou suplementos (vitaminas, minerais, fitoterápicos) é uma das causas mais comuns de alteração na resposta a um tratamento. Essas interações podem aumentar ou diminuir o efeito do medicamento principal, levar a novos efeitos colaterais ou intensificar os existentes", alerta Maurício Yonamine.

O futuro (promissor, mas ainda limitado) da medicina personalizada

Diante de tanta variabilidade, seria ideal se cada pessoa pudesse receber um tratamento sob medida. É isso que busca a farmacogenômica: combinar o conhecimento genético com a prescrição de medicamentos personalizados. recentes mostraram que as reações adversas podem cair cerca de 30% quando as doses dos medicamentos são adaptadas ao seu DNA.

No entanto, apesar dos avanços nessa área, ainda não é possível prever a resposta de todos os medicamentos com base no DNA. É uma promessa que está se concretizando aos poucos.

"No nosso laboratório estamos estudando os diferentes genes relacionados a farmacogenômica, relacionando com a ancestralidade de nossa população, que temos visto que é muito miscigenada, para tentarmos entender se as diretrizes internacionais (que normalmente levam em conta europeus e americanos) também devem e podem ser aplicadas no nosso país", diz Moriel.

A boa notícia é que o avanço da tecnologia de sequenciamento genético tem tornado os testes cada vez mais "acessíveis" —embora caro para a maioria da população (em torno de R$ 5.000)— e abrangentes. O Brasil, inclusive, tem investido nessa área, com projetos financiados por órgãos como o CNPq e a FAPESP, como o da professora e pesquisadora Patricia Moriel.

Enquanto o futuro não chega por completo, médicos e farmacêuticos seguem combinando ciência e experiência para ajustar doses, acompanhar o paciente e tentar garantir que o remédio, de fato, faça bem.

Revisão técnica: Patricia Moriel , farmacêutica, doutora, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp e coordenadora do Grupo técnico de Farmacovigilância do CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo).

Léo Marques

Colaboração para VivaBem