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Política Nacional de Cuidados: um primeiro olhar (3 notícias)

Publicado em 26 de julho de 2024

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No último dia 3 de julho, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei da Política Nacional de Cuidados . Esta é uma das medidas mais aguardadas – e exigidas – pelos movimentos sociais desde a criação de um Grupo de Trabalho para desenhá-la no início do atual mandato de Lula. Por meio dela, deverá ser estruturado de forma sistemática a garantia pelo poder público do direito ao cuidado (inclusive a domicílio) para aqueles que o necessitam, em especial segmentos como os idosos, pessoas com deficiência (PCDs), crianças e adolescentes e os próprios trabalhadores do cuidado – sejam eles profissionais remunerados ou, em uma situação muito comum no país, familiares não-remunerados.

Com a Política, espera-se poder enfrentar uma constelação de problemas sentidos por toda a população, mas especialmente pelos mais pobres: idosos que moram sozinhos e se machucam ou mesmo morrem em acidentes que poderiam ser evitados pela presença de um cuidador, mulheres que precisam abandonar o mercado de trabalho para cuidar de seus filhos e seus pais, PCDs que encontram dificuldade para realizar tarefas da vida cotidiana. Contratar cuidadores particulares é uma alternativa bastante cara e inacessível à maioria.

“A iniciativa é um grande avanço, porque havia um vácuo na nossa legislação na questão da proteção social. Vale lembrar que, na Constituição Federal de 1988, não existe a palavra cuidado”, avalia Jorge Félix , pesquisador FAPESP de pós-doutorado na Unicamp e professor no curso de Gerontologia da USP. Ele destaca também o processo interministerial e participativo que gerou a Política, assim como sua ênfase na questão das desigualdades de gênero e raça no cuidado e na promoção de trabalho digno no setor.

O documento de 6 páginas é bastante enxuto, restringindo-se a um marco normativo – e delega a um futuro Plano Nacional de Cuidados a delineação das ações concretas. Durante sua tramitação no Poder Legislativo, o projeto ainda poderá ser alterado pelos deputados e senadores. Em entrevista a Outra Saúde , o pesquisador indicou as principais conquistas contidas no PL enviado ao Congresso pelo governo – assim como os pontos em que podem haver brechas para a não-implementação da Política em sua integralidade.

Pioneirismo na legislação brasileira

Na América Latina, o tema do cuidado está em alta. “Outros países da região já têm políticas nacionais ou estão em plena discussão para criá-las, o Brasil estava até um pouco atrasado nisso”, explica Jorge Félix, que participa do projeto internacional de estudo de políticas de cuidado WhoCares? , coordenado no Brasil pelo CEBRAP.

Dezesseis membros do G20 possuem uma política de cuidado para idosos. No ano passado, o Governo Federal organizou um painel de alto nível do Mercosul (do qual também participaram países fora do bloco, como Chile, Colômbia e Peru) sobre o tema, para trocar reflexões e experiências sobre a construção de sistemas de cuidado com as nações vizinhas.

Também em 2023, no mês de março, um decreto presidencial criou o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) encarregado de elaborar a proposta da Política Nacional de Cuidados. Estiveram à frente do processo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e o Ministério das Mulheres, mas vinte órgãos do Governo Federal, entre ministérios e entidades como a Fiocruz e o IPEA, foram indicados para integrá-lo. Dentro do MDS, a responsabilidade de coordenar o GTI coube à Secretaria Nacional de Cuidados e Família, chefiada pela socióloga Laís Abramo, ex-diretora do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil e da divisão de Desenvolvimento Econômico da CEPAL.

Além do envolvimento de entes do poder público, foi estimulada a participação social no processo. Em audiência na Câmara dos Deputados em maio, Laís Abramo indicou que foram realizadas “rodas de escuta e diálogo, adoção de formulários eletrônicos e reuniões” para que diferentes grupos pudessem apresentar suas demandas para a Política. Por sua vez, Jorge Félix revela que “os pesquisadores da área do cuidado – seja os que estudam a velhice , como eu, ou os de outras áreas como o gênero – foram bastante ouvidos inclusive antes da criação do Grupo de Trabalho. Pudemos criar uma relação bastante estreita, mas independente.”

O texto surgido dos trabalhos do GTI, indica Jorge, tem como um de seus principais feitos o de afirmar, logo em seu Capítulo I, que “todas as pessoas têm direito ao cuidado” e que a Política deve promover a “corresponsabilização social e de gênero pela provisão de cuidados, consideradas as desigualdades interseccionais”. Se o projeto for aprovado, será a primeira afirmação do direito universal ao cuidado a constar na legislação brasileira. Por outro lado, crianças e adolescentes, idosos, PCDs e trabalhadores do cuidado seriam o “público prioritário” da Política, segundo o Capítulo VI.

Além disso, o projeto enviado ao Congresso Nacional acolheu demandas importantes de segmentos que vão dos movimento feminista às trabalhadoras domésticas . Entre eles, há os objetivos, expostos no Capítulo II, de “promover o reconhecimento, a redução e a redistribuição do trabalho não remunerado do cuidado, realizado primordialmente pelas mulheres” e “promover o trabalho decente para os trabalhadores remunerados do cuidado de maneira a enfrentar a precarização e a exploração do trabalho” .

Princípios como a promoção dos direitos à autonomia e à convivência familiar e comunitária das pessoas que recebem cuidado, assim como diretrizes como a “integralidade” do cuidado e a “territorialização e descentralização dos serviços públicos ofertados” – discriminados, respectivamente nos capítulos IV e V do texto – indicam que o texto também está reconhece concepções que dão base a estruturas importantes, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

O avanço em relação a limitações do texto constitucional também foi ressaltado. “A Constituição Federal, ao colocar o cuidado preferencialmente nos lares, delegou ele para a família. Para acessar os poucos programas para idosos que existem em algumas cidades, a família precisa provar, com muitas evidências, que não consegue cuidar. E mesmo esses programas são limitados. Não há Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) públicas, nem serviços de cuidados. A Política Nacional de Cuidados tira o cuidado das mãos dos programas, que o próximo prefeito ou governador pode acabar da noite pro dia, e transforma ele em um direito legal”, Jorge explica.

“Só de trazer novos conceitos para o texto legislativo, avançando em relação à Constituição Federal, já é um grande ganho”, sintetiza Félix.

As ações concretas prometidas por Lula

Em reunião com especialistas da área ainda no período de sua campanha de 2022 à Presidência da República, gravada e disponibilizada na Internet por sua própria equipe, Lula propôs a implementação de uma alternativa pública para os cuidados domiciliares para os idosos do país. “Nós temos que transformar [os cuidadores de idosos] em um serviço público, formar muita gente para isso. Por isso a gente fala na necessidade de uma nova política tributária e do fortalecimento do SUS. Se a pessoa não conseguir pagar por um cuidador privado, ela morre? Não pode ser assim, a população está vivendo mais e isso é bom”, disse o presidente.

A ideia apresentada à época aos pesquisadores, conta Jorge Félix, indicava que o serviço, quando implementado, seria oferecido nos marcos do SUS e teria alguma similaridade com a estrutura dos agentes de saúde ou do Programa PAI, que disponibiliza acompanhantes para idosos no município de São Paulo por meio das Unidades Básicas de Saúde. É um plano ousado e promissor – mas nada dele consta no texto da Política Nacional de Cuidados.

Efetivamente, o Capítulo VII do projeto de lei prevê que as “ações, metas, indicadores, instrumentos, período de vigência e órgãos e entidades responsáveis” só serão estabelecidos em outro documento , o Plano Nacional de Cuidados, ainda a ser apresentado pelo Poder Executivo federal.

Em outras palavras, a Política Nacional de Cuidados se restringiria a delinear de forma mais geral as bases institucionais para essas ações: o “marco normativo”, na definição da secretária Laís Abramo em entrevista à Agência Brasil

Flancos abertos?

Apesar da indicação de sua presença no futuro Plano, o professor de Gerontologia da USP lamenta que nenhuma das ações a serem implementadas tenha sido pelo menos indicada. “Penso que isso pode facilitar a judicialização por municípios e Estados que queiram argumentar que não precisam cumprir as medidas, por não serem obrigados pela Constituição Federal ou pela própria Política”, reflete.

Um caminho para contornar essa brecha pode ser a constitucionalização do direito ao cuidado – como propõe a PEC 14/2024 , de deputadas como Maria do Rosário (PT/RS) e Talíria Petrone (PSOL/RJ), que o inclui no Artigo 6º da Carta. A representante carioca também defende a articulação de uma Frente Parlamentar em Defesa da Política Nacional de Cuidados.

A definição de que o direito ao cuidado será garantido “de forma gradual e progressiva”, sem a delimitação de metas mais concretas, também é um ponto de atenção. “O que significa gradual e progressivo? Pode significar à mercê do Orçamento, e pode significar prazos mais longos do que os exigidos pela situação do país hoje”, diz o pesquisador da Unicamp.

Nesse sentido, Félix considera que o capítulo IX do projeto de lei, que trata do financiamento, pode abrir um flanco para o esvaziamento da Política na hora de colocá-la em prática. “Há uma grande brecha, pois o PL sujeita tudo à ‘disponibilidade financeira e orçamentária' dos entes da administração pública que participarem do Plano Nacional de Cuidados. Tudo fica restrito, portanto, à política de ‘austeridade' fiscal que está hoje em vigor, e podem vir pela frente governos ainda mais defensores dessa ‘austeridade'. Isso pode se transformar em um grande nó” para a implementação das ações necessárias, avalia o pesquisador.

Com o caráter mais enxuto do projeto, a possibilidade de fazer uma avaliação mais aprofundada e definitiva da proposta do governo para a Política Nacional de Cuidados foi adiada – as observações aqui apresentadas por Outra Saúde são iniciais. Contudo, ressalta Félix, a aprovação da Política no Congresso Nacional e a apresentação do Plano Nacional de Cuidados não podem demorar.

“A falta de apoio estatal ao cuidado domiciliar está levando as pessoas ao endividamento, porque as despesas com a velhice , por exemplo, estão aumentando muito. Custear individualmente esse cuidado, para os mais pobres, é impossível”, ele alerta.