Tem havido uma tendência natural, mas infeliz, a extrapolar, a partir da polegada de conhecimento obtida por um trabalho experimental cuidadoso e um tratamento rigoroso dos fatos, na direção de conclusões de significação muito mais ampla e de grande importância social. Eis ai um problema muito sério. A afirmação do lingüista Noam Chomsky, feita no prefácio de seu livro Language and Mind, vai ao ponto: talvez em nenhuma outra área do jornalismo seja tão difícil encontrar rigor e precisão quanto na cobertura usual do assunto ciência. Não há outro caminho para a polegada de conhecimento: se ela não levar a uma conclusão de grande importância social, não consegue o imprimatur da mídia. Já faz dez anos que o termo genoma humano circula nos grandes jornais de língua inglesa; há menos tempo, chegou à imprensa brasileira. E essa aventura cientifica, encantadora por si só, não escapou ao destino desvendado com singeleza por Chomsky. Sobre o nome genoma humano, e seu correlato DNA, a mídia deixa pousar anseios humanos, aqueles considerados os mais legítimos: mais saúde, mais bem-estar, menos sofrimento. Está lá, nos nossos genes, a prevenção contra tudo que nos ameaça - esse é o eco que vem até nós, pela mídia, de dentro dos laboratórios da biologia contemporânea.
A partir dessa pedra fundamental, cientistas norte-americanos e europeus organizaram-se, mobilizaram as agências públicas de financiamento de pesquisa, e deram a partida, em 1989, ao projeto Genoma Humano - que propôs, na época, apresentar ao mundo, em 2005, a seqüência ordenada e completa que caracteriza as moléculas de DNA dos nossos 23 cromossomos. Os cientistas teriam nas mãos, então, o conhecimento sobre a totalidade dos genes da espécie; e disporiam do conhecimento tido como fundamentai para pavimentar o caminho do prolongamento da vida, talvez até do adiamento sine die da morte, e - quem sabe? - de uma existência sem dor.
Dupla hélice - Um conjunto de descobertas acumuladas desde a década dos 50 dava aos cientistas a autoridade para afirmar a exeqüibilidade da enorme tarefa. A primeira delas em 1953, James Watson, biólogo americano, e James Crick, biofísico inglês, descobriram a chamada estrutura molecular do ácido desoxirribonucléico, o DNA. Na descrição dos dois cientistas, a) as moléculas de DNA dispõem-se no espaço como duas fitas entrelaçadas, chamadas de dupla hélice; b) cada uma das fitas é formada de moléculas menores, iguais entre si à exceção de um de seus componentes: as bases nitrogenadas; c) a força da ligação química entre as bases, duas a duas, e situadas em cada uma das fitas, mantêm a disposição espacial em dupla hélice; d) as bases são quatro - timina, adenina, citosina, guanina - e ligam-se segundo uma regra interna bastante simples: a cada timina, uma guanina; a cada adenina, uma citosina, e vice-versa. A essa descrição, fundadora da biologia molecular contemporânea, seguiram-se outras descobertas, todas muno importantes.
Na década dos 80, quando começou a gestação do projeto Genoma Humano, os cientistas já haviam estabelecido que genes eram trechos de moléculas de DNA; que a informação contida neles, dada pela ordem das bases no trecho de molécula, podia ser lida pela célula e transformada, mediante complexos percursos bioquímicos, no conjunto de proteínas que regulam as funções dos organismos. Enquanto construíam esse corpo de conhecimento, e para poder construí-lo, os pesquisadores desenvolveram técnicas para manejar as moléculas de DNA e as proteínas que as decifram fora da célula, os tubo de ensaio e nas máquinas dos laboratórios. Desse conjunto de ferramentas de pesquisa, surgiu a tecnologia do DNA recombinante - a possibilidade de cortar moléculas de DNA em lugares reconhecíveis; ligar entre si os trechos assim obtidos, advindos de quaisquer organismos; e copiar a recombinação untas vezes quanto o desejado. Parte do impulso que resultou nos organismos geneticamente modificados transgênicos, emergiu daí.
Desafio - A crença de que o desvendamento dos segredos contidos os genes revelaria muitos dos mistérios da vida o DNA recombinante e a invenção, por Frederick Sanger (pela qual recebeu um Nobel em 1980), de um método para determinar a ordem das bases na molécula de DNA: eis a garantias que os cientistas ofereciam, dez anos atrás, para convencer as agências do governo de que o sonho de conhecer todos os genes humanos era um desejo cuja realização dependia apenas da decisão política e econômica de fazê-lo. O desafio resumia-se a uma questão de escala: o que já vinha sendo feito, nos laboratórios, para o gene - trechos de cerca de 10 mil bases nitrogenadas - teria que passar a ser feito em quantidades industriais: o genoma da nossa espécie contêm alguma coisa entre 80 e 100 mil genes; e eles estão incrustados nas moléculas de DNA do núcleo de nossas células, organizadas em cromossomos que, juntos, somam 3 bilhões ou mais de pares de bases.
Reunidos sob o comando do próprio James Watson, e financiados pelo National Institutes of Health e pelo Departamento de Energia, nos Estados Unidos, e pelo Wellcome Trust, britânico, principalmente, os cientistas formuladores do projeto Genoma Humano lançaram-se à tarefa de aumentar gramaticamente a capacidade dos laboratórios ara fornecer leituras de seqüência de DNA. Era preciso automatizar e utilizar os processos já conhecidos da engenharia genética, e também crias instrumentos para gerenciar volumes de informação até ali ausentes das práticas dos laboratórios da área. Industrias de ponta juntaram-se ao esforço financiado pelo setor público para desenvolver máquinas automáticas de seqüências moléculas de DNA e os produtos químicos necessários para fazê-lo cada vez com mais precisão e rapidez. Nas universidades, os laboratórios introduziram rotinas seme-industriais de produção, e os especialistas em informática juntaram-se aos biólogos para criar programas capazes de armazenar os dados fornecidos pelas máquinas automáticas, e que também organizam e dão acesso ao volume de informações estocado. Do lado dos especialistas e genética humana, a corrida foi para criar mapas eu facilitassem a ordenação das seqüências.
Em seus primeiros nove anos, o projeto Genoma Humano custo cerca de um bilhão e seiscentos mil dólares. Gerou seqüências do DNA humano, seu objetivo de honra, em quantidades que ainda eram medidas em milhões de pares de bases, do total de 3 bilhões. Muito mais importante, produziu mudanças apreciáveis no enfoque das ciências da vida e no cotidiano de seus profissionais. Entre seus especialistas, que são também divulgadores e propagandistas, fala-se em revolução. Na esteira das inovações engendradas para atender à lógica do projeto Genoma Humano, os cientistas ganharam a possibilidade de obter seqüências completas do material genético de qualquer organismo. Em 1995, a revista Science publicou a primeira delas - no caso, a seqüência do genoma do vírus Haemophilus influenzae, causador de um tipo de pneumonia. Assinavam o artigo, entre outros, o biólogo molecular Craig Venter, envolvido no projeto Genoma Humano, e Hamilton Smith, Prêmio Nobel por ter descoberto como cortar moléculas de DNA. Foi um marco: consolidou-se, ali, um novo ponto de partida para os pesquisadores.
O inglês Steve Oliver, da Universidade de Manchester, que participou do seqüenciamento do genoma da levedura (finalizado em 1997), um fungo muito usado como modelo nos laboratórios, e como fermento nas cozinhas, diz que o mundo dos biólogos virou de ponta-cabeça. Em vez de partir de uma determinada característica biológica, e buscar o gene ou conjunto de genes relacionados a ela, agora os estudiosos da vida podem dispor do conhecimento sobre todos os genes que fazem viver um organismo, e devem descobrir para que eles servem, que papel desempenham, de que proteínas comandam a fabricação. Um veterano da genômica, o belga And.e Goffeau, sonha com um futuro em que todas as espécies terão seus genomas completos conhecidos. Não é o único. E olhe que há peio menos um milhão de espécies conhecidas sobre a face da Terra.
Nova biologia - Mas, e daí? Eis que se coloca, de outra maneira, o problema sério detectado por Noam Chomsky. Toda a informação que já foi obtida, e que está estocada com a ajuda da nova especialidade chamada bioinformática, e toda a informação que está sendo e ainda vai ser gerada sobre uma variedade de organismos: quando brotarão delas os frutos prometidos? O doutor Venter, em entrevista publicada na edição de julho do Noticias Fapesp, dá um elucidativo exemplo do ponto do percurso em que está a nova biologia molecular, quando se levantam os véus com que a mídia recobre a mais contemporânea das especialidades da ciência. Venter e sua equipe seqüenciaram o genoma de uma bactéria chamada Mycoplasma genitalium, escolhida em razão de ter um genoma pequeno, muito compacto - seiscentos e poucos genes. O interesse deles era realizar experimentos para caracterizar, entre eles, os genes sem os quais o organismo não sobreviveria. Doutor Venter com a palavra (não se pode deixar de notar que ele ampliou a significação do resultado experimental específico, por certo realizado com cuidado e rigor): Há somente 300 genes que são essenciais para a vida, de acordo com o que pensamos no momento; deles, cem são completamente novos para a ciência, não sabemos o que eles fazem. Ainda não entendemos como 300 genes trabalham em uma única célula; se não entendemos ainda isso, como vamos entender 80 mil genes trabalhando juntos, em dez trilhões de diferentes células e em diferentes combinações, que é o que nos forma? Isso está muito além da compreensão científica para os próximos séculos, nós vamos precisar de muita inovação tecnológica para chegar até lá.
A sensata afirmação do doutor Venter equilibra os excessos que a mídia deixa passar e os cientistas, muitas vezes, não fazem movimento nenhum para desmentir. O fato de despir as expectativas do exagero não diminui o brilho do quadro de medalhas conquistadas com as ferramentas da biologia molecular contemporânea, impulsionada pela decisão política de alcançar a seqüência completa do DNA genômico humano. Há novos métodos de diagnóstico, e novas drogas, para alguns tipos de câncer; os cientistas aprendem sobre evolução comparando os genes encontrados nos vários organismos; o gene humano ligado a distrofia muscular progressiva foi encontrado; a produção em laboratório de insulina para diabéticos ia é um fato; e há muito conhecimento que não virou produto, mas ampliou ou ampliará a compreensão sobre os fenômenos da vida.
Primeira versão - Antes do previsto, ia agora, no ano 2000, cientistas do proieto Genoma Humano vão aprontar e divulgar a primeira versão completa das seqüências de DNA da espécie humana - ainda não definitivamente finalizadas; um esboço, ou primeira versão. Segundo anúncio feito em marco pelo vice-presidente dos Estados Unidos. Al Gore, essa primeira versão chegara durante a primavera do Hemisfério Norte - quer dizer, até maio, junho. E um expressivo encurtamento do.s prazos anteriormente previstos, resultado do aumento da produtividade nos laboratórios envolvidos, e também do tato de o ia citado Craig Venter ter desafiado o establishmente científico ao afirmar, em maio de 98, que obteria a seqüência do genoma humano em 24 meses, ao custo de duzentos milhões de dólares.
Venter associou-se a uma das fábricas de maquinas de seqüenciar automáticas e fundou uma companhia totalmente privada para cumprir seu desejo de ser o primeiro homem a estabelecer a ordem de todos os 3 bilhões de pares de bases que caracterizam o genoma da espécie. A nova Celera genomics Corporation, segundo seus próprios comunicados oficiais, funciona a todo vapor, aperfeiçoa seus processos e metodologia obtendo seqüências do DNA da mosca de frutas, e começou com as moléculas de gente no mais passado.
Parte da comunidade cientifica olha com desconfiança os passos de Craig Ven ter. Será que a Celera Genomics Co., se passar à frente do projeto público, vai divulgar seus dados ou vai mantê-los em sigilo até patentear novas descobertas? Vender o acesso à informação genética que obtém é uma das fontes de receita da nova companhia. Entre os assinantes do banco de dados da empresa, figura a Novartis, uma gigante da novíssima indústria das ciências da vida. O apressamento do passo do projeto financiado pelas agências governamentais tem o objetivo, também, de tornar públicos os dados sobre seres humanos tão rapidamente quanto possível, e evitar que informação tão preciosa se torne privilégio de muito poucos.
Cientistas conhecerão todos os genes da espécie humana: adiamento da morte e uma possível existência sem dor
Mas nem tudo são negócios nessa biologia molecular que interessa tanto à indústria da tecnologia médica. O caminho que sai da polegada de conhecimento e leva até a conclusão de ampla significação social nutre-se no selo fértil dós sonhos humanos. Os entusiastas da nova biologia molecular - homens pragmáticos e determinados a alcançar resultados - afirmam que o controle das condições do que se passa na intimidade celular será o escudo contra as vicissitudes que nos ameaçam. O sonho de triunfar sobre a natureza, que move a ciência experimental desde Galileu, passa ainda por outra idéia, também um talismã para os envolvidos na tarefa de decifração do humano pelos genes: do conhecimento das partes emergirá, em algum momento, o entendimento do todo, de tudo.
Uma idéia que parece um antídoto contra o desamparo e a adversidade que cercam este final de século tão cheio de incertezas. São grandes esperanças que ressoam no íntimo da cultura contemporânea e que sintetizam desejos que vemos como comuns à espécie. A mídia conta a todos nós histórias que desejamos ouvir, que nos embalam. Por isso, tão freqüentemente, transforma as polegadas de conhecimento em conclusões de grande significação social. Sonhar é irresistível, inerente à nossa biologia. A ciência, filha da história, da filosofia, e da cultura, também sonha - linda e humanamente. Por que não nos deixaríamos enfeitiçar por ela?
Descobertas: novos diagnósticos e drogas. Identificação do gene de distrofia muscular e produção de Insulina em laboratório
VERDE E AMARELINHO
Brasil também está engajado no projeto Genoma Humano
A biologia molecular, modificada pelas idéias e conquistas do projeto Genoma Humano, já deu frutos no Brasil. Em dezembro de 97, as primeiras máquinas automáticas de seqüenciamento de DNA chegaram aos 33 laboratórios escolhidos pela Fapesp para integrar a chamada rede onsa - um instituto virtual de pesquisa em genômica, criado para estudar o material genético da bactéria Xylella fastidiosa, a causadora da praga do amarelinho (Clorose Variegada de Citrus), doença que afeta 30% dos laranjais do Estado de São Paulo.
Ao projeto pioneiro, relevante por tornar provável a descoberta de formas de combater a praga, e que se aproxima da conclusão, seguem-se novas aventuras. Ia são 50 os laboratórios do Estado - nas três universidades públicas, em institutos de pesquisa e até em universidades privadas - envolvidos no total de cinco projetos. Um deles é a continuação da pesquisando seqüenciamento da Xylella fastidiosa: e o genoma funcional da bactéria, que quer relacionar as seqüências dos genes a capacidade do organismo de causar a doença no.s pomares. Outro é semelhante no objetivo ao Projeto Xylella, mas diferente na organização: propõe -se a seqüenciar, com menos dinheiro e em menos tempo, o genoma da
Missão cumprida: objetivo de acelerar criação de competência na área da biologia molecular teve sucesso
Há ainda o Genoma Cana e o Genoma Câncer, duas iniciativas que tem a ousadia de se debruçar sobre a complexidade do material genético de organismos superiores, e que não ambicionam revelar a seqüência completa do DNA genômico. Ambos os projetos usam uma estratégia completamente diferente: preferem partir do produto - as proteínas - para chegar aos genes que as originam. No caso do Genoma Câncer, os pesquisadores partem das proteínas alteradas que encontram em tecidos retirados de tumores comuns em nosso país para tentar encontrar as regiões do genoma envolvidas com elas.
Até agora, a Fapesp destinou 37 milhões de dólares para o programa - o que o torna o mais rico dos empreendimentos científicos em andamento no Brasil de hoje. Mas falar sobre seu tamanho não diz quase nada sobre outras peculiaridades do programa, como o rato de remunerar os laboratórios pela produção realizada, ou a marca francamente cooperativa da estrutura da rede onsa que, pelo seu site na Internet, ensinou aos pesquisadores do Estado de São Paulo os encantos da colaboração e da troca sistemática de informações. O programa nasceu da decisão de José Fernando Perez, diretor cientifico da Fapesp, de confiar aos pesquisadores do Estado a tarefa de seqüenciar o genoma da Xylella fastidiosa, não apenas pela relevância provável dos resultados para a citricultura, mas para adquirir competências e tecnologias em biologia molecular de que só o Canadá, o Japão, a Europa e os Estados, Unidos dispõem.
Perez vê os desdobramentos do projeto pioneiro como a prova de seu sucesso. Entre eles, o de ter contribuído para a divulgação da atividade de pesquisa na sociedade, nas palavras desse físico de 54 anos. Ele gosta do fato de o projeto ter sido um colimador de esforços e recursos já presentes no Estado. Vocabulário de físicos: num feixe colimado de raios, eles todos apresentam-se paralelos, ou quase paralelos. O efeito é uma concentração de energia que explica, por exemplo, muitas das características do laser. E tudo dentro do cronograma, ressalta.
Um dos interesses era acelerar a criação de competência na área da biologia molecular no Estado. E esse é um objetivo que podemos considerar cumprido. O programa ampliou essa competência, mas também revelou que parte dela já existia, apenas não encontrava como expressar--, conclui.
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