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Revista PIB - Presença Internacional do Brasil

Piracicaba, mas pode me chamar de AgTech Valley

Publicado em 01 dezembro 2019

Por Nely Caixeta e Lizia Bydlowski

Um vento de inovação, carregado de juventude, ousadia e termos em inglês, permeia o ambiente de negócios em Piracicaba, polo da indústria sucroalcooleira no interior de São Paulo Lá, executivos de empresas que figuram entre as maiores do mundo em seu ramo estão tendo que relaxar protocolos e acelerar processos decisórios para se adaptar a parceiros um tanto caóticos e informais em seu método de trabalho, mas capazes de produzir soluções espetacularmente simples e eficientes para problemas crônicos.

A própria cidade, situada a 150 quilômetros da capital e célebre pelo sotaque em que os erres dão nó na língua de quem tenta imitar, ganha outra cara: em um bairro novinho em folha, prédios abrigam espaços de paredes coloridas, onde jovens circulam de jeans, camiseta, tênis, mochila e o indefectível fone grudado no ouvido. O nome da mudança é agtech, como é chamado o conjunto de agentes que buscam soluções digitais criativas e inovadoras para a agricultura e a pecuária. Piracicaba agrupa hoje, em terrenos que já foram cobertos de plantações de cana-de-açúcar, incubadoras e aceleradoras de startups dedicadas a promover uma revolução tecnológica na agricultura capaz de extrapolar fronteiras e conquistar o mundo.

Fundado em 2017, o Pulse traduz bem o movimento desta mola que está impulsionando o AgTech Valley, a marca digital atrelada ao nome da cidade. Trata-se do que chamam de ecossistema, ambiente em que se conectam produtores, empresas e pesquisadores, de um lado, e jovens com uma ideia na cabeça e um laptop na mão, de outro. “Em nosso espaço, criadores individuais e startups trabalham em parceria com a indústria, a academia e os investidores. Um ajuda o outro adar forma aos problemas, determinar o que é realmente relevante e desenvolver soluções eficientes e práticas”, explica Guilherme Lago, diretor de inovação para o mercado do Pulse. Este espaço de novidades constantes é um braço da Raízen, gigante de bioenergia formado por uma joint venture entre a Cosan e a Shell, em parceria com a SP Ventures, gestora de investimentos em tecnologias para o agronegócio. Fazer parte da estrutura de uma empresa quecobre da plantação de cana-de-açúcar ao fornecimento de combustível na bomba, com ramificações por áreas afins, facilita a transformação de projetos em realidade: sempre que alguma solução tecnológica desenvolvida dentro do Pulse tem a ver com problemas observados na cadeia de produção da Raízen, ela pode ser testada e aperfeiçoada em condições reais.

O Pulse conta atualmente com 28 startups residentes, que funcionam em formato de coworking em um espaço de 500 metros quadrados num prédio envidraçado vizinho ao Parque Tecnológico de Piracicaba. Ao longo de seus dois anos de existência, recebeu mais de 8 000 visitantes e realizou mais de 50 eventos, amealhando 280 empresas em seu sistema de networking. “É um lugar colorido, que muita gente tem vontade de visitar. Mas a chave do sucesso do Pulse é a densidade do movimento de pessoas, o quanto ele rende em termos de troca de ideias”, diz Lago Segundo ele, o entra-e-sai do Pulse tem um propósito: estimular serendipity, encontros e conversas ao acaso que resultem em potenciais projetos. “Serendipity é o motor da inovação aberta”, resume. “Claro que tentamos montar uma agenda que case interesses, mas nada funciona melhor do que alguém que está ali acompanhando uma startup de repente encontrar no corredor um executivo ou um investidor interessado no que ele desenvolve. Este ambiente um pouco caótico beneficia e enriquece o diálogo”, afirma Lago.

Outro ponto positivo da presença do Pulse na estrutura da Raízen que ele aponta é uma mudança de mentalidade na empresa-mãe, ao se propor a trabalhar com startups informais tocadas por jovens urbanos que, muitas vezes, não tiveram nenhum contato prévio com o campo. “Quando levamos o primeiro piloto para ser testado na Raízen, o departamento de suprimentos pediu três balanços da startup que tinha acabado de ser criada. A burocracia levava dois, três meses para homologar um projeto de 20 dias”, lembra. “Um foi aprendendo com o outro, e os funcionários dos escritórios convencionais estão muito mais abertos a trabalhar com a nova geração", diz.

Dos 11 pilotos, quatro progrediram e foram contratados pela Raízen: a Aimirim, que otimiza a queima de biomassa nas caldeiras; a Agribela, que usa drones para aplicar agentes biológicos em plantações; a Perfect Fly, que monitora a liberação de herbicidas pelos aviões pulverizadores; e a Strider, que utiliza a geolocalização para apontar pragas no campo. A Raízen não revela quanto investiu no Pulse, mas diz que já ganhou cinco vezes mais do que gastou com o projeto em economia de recursos e produtividade – a propriedade intelectual permanece com a startup, que pode vender seu know how para concorrentes.

“Capitalizamos por estarmos muito perto do desenvolvimento das soluções inovadoras e, muitas vezes, sermos os primeiros a utilizar a tecnologia. Mas não pretendemos ter exclusividade. Isso vai contra o princípio da inovação aberta”, diz Lago. A ponta de lança para a criação da Pulse e outros hubs tecnológicos em Piracicaba foi a pioneira EsalqTec, incubadora de projetos digitais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo, sediada na cidade. Instalada em uma fazenda de 130 hectares ao lado do campus da Esalq, a EsalqTec acomoda cerca de 70 startups, residentes ou candidatas a esta posição, integradas a um ecossistema que envolve um gerador de conhecimento, pesquisa e recursos humanos – a própria escola –grandes empresas e potenciais investidores.

Grosso modo, ela ensina o dono da ideia a dar os primeiros passos no mundo da inovação, a desenvolver o que ainda não saiu do laptop e a se tornar empresa. Daí a startup irá para o Pulse e outros hubs, interagir com clientes e investidores em potencial para colocar a nova empresa de pé. “De todas as áreas de conhecimento em que o Brasil se destaca, a agricultura é a única que realmente gera pesquisa de ponta. Estamos na vanguarda do desenvolvimento agrícola em clima tropical. Por isso mesmo, o movimento agtech aqui está se disseminando por toda a parte e se tornando o maior do mundo”, diz Sergio Barbosa, gerente executivo da EsalqTec. Indo além das possibilidades imediatas em gestação nas startups, Barbosa chama a atenção para o imenso acervo de dados, estatísticas, pesquisas e experiências — a chamada Big Data — que a agricultura brasileira acumulou ao longo do processo que a levou de importadora de alimentos a uma das maiores exportadoras hoje em dia.

“Nosso diferencial não está na produção de drones, sensores ou software. Nossa maior riqueza são os parâmetros agronômicos definidos nas universidades e nos institutos de pesquisa. Ainda vamos ver tecnologias feitas aqui em Piracicaba sendo aplicadas em vários lugares do mundo”, prevê Barbosa. A volta ao mundo das startups agrícolas de Piracicaba já começou. Ele cita o caso da Agrosmart, de soluções para irrigação (ou “gestão territorial”, como ele prefere definir), que tem clientes em Israel, país visto como a mais rica fonte de conhecimentos neste ramo (leia mais sobre a trajetória internacional da Agrosmart na pág. 21). As possibilidades de internacionalização do conhecimento também são sentidas no Pulse. A startup Perfect Fly já realizou pilotos na Argentina; a ExecFarming, empresa russa instalada no Vale do Silício, passou algumas semanas no hub da Raízen, para conhecer de perto seu funcionamento; e a aceleradora argentina NXTP Lab se tornou parceira da brasileira, promovendo intercâmbios e facilitando investimentos.

O fenômeno da multiplicação de agtechs está transportando para o campo gente que nunca passou perto de uma plantação. O próprio Guilherme Lago, da Pulse, formou- -se em química pela USP, fez mestrado na Espanha e foi parar em Piracicaba por causa de seu interesse em projetos digitais. “Fiquei fascinadopor esse mundo agrícola e pelas transformações que já chegaram e que ainda virão”, diz. Entre elas está a feição nova que a cidade está ganhando com o fluxo de jovens inovadores e os negócios que eles atraem. O Parque Tecnológico, criado há dez anos, aloja 80 empresas e registra a circulação diária de 6 000 pessoas, metade delas alunos das três instituições de ensino próximas. “O entorno do parque se desenvolve rapidamente e virou um canteiro de obras”, empolga-se o prefeito Barjas Negri.

O empresário Wilson Guidotti Júnior, o Balu, um dos primeiros a perceber o potencial da tecnologia no desenvolvimento da cidade, criou em 2016 a Usina de Inovação Monte Alegre, um espaço de exposições, encontros e coworking numa antiga usina de açúcar desativada. Ele destaca principalmente o papel da EsalqTec neste processo: “Ela foi fundamental na promoção de iniciativas que consolidaram nosso ecossistema inovador.” A Aguassanta, braço de desenvolvimento imobiliário da Cosan, projetou todo um bairro novo, o Reserva Jequitibá, que abarca o Parque Tecnológico, em uma área de 3 milhões de metros quadrados que também engloba lotes residenciais — 1 500 foram vendidos e existem 400 casas erguidas ou em construção.

“Queremos fazer moradias de médio e alto padrão, apartamentos compactos, condomínios e prédios com unidades customizadas. Também está nos planos um hotel 3 ou 4 estrelas, de design compacto, atendimento digital e coworking no térreo”, adianta Murilo Almeida Filho, diretor da Aguassanta. A aposta mais recente da empresa – um investimento de 4,5 milhões de reais – é o edifício de 2 500 metros quadrados (cinco vezes o tamanho do Pulse) que abriga o AgTech Garage, pioneiro hub de inovação de Piracicaba que funcionava até há poucos meses num casarão no centro da cidade.

Em abril passado, o Garage instalou-se na casa nova com 1 100 metros quadrados por onde circulam, diariamente, de 250 a 600 pessoas, dependendo dos eventos ali realizados. Com seus ambientes compartilhados e salas privadas, o Garage é interligado a um Garden Mall, com opções de conveniência e alimentação. A proposta do Garage é, além de abrir espaço para startups, oferecer duas vezes por ano um encontro a que dá o nome de “innovation connections”, promovendo o contato entre as agtechs e as empresas da região. “A origem destes encontros está no AgTech Day, criado por mim, em parceria com a Esalq, que já chegou à oitava edição. Inclusive, foi em um deles que conheci meu sócio, Marcelo Carvalho, que atuava na cadeia do leite. Eu falei para ele que estava querendo criar algo novo, e desta conversa nasceu a AgTech Garage”, relata José Augusto Tomé, CEO do hub de startups.

Nosso foco principal é trazer as grandes empresas para o ecossistema tecnológico”, diz o pernambucano Tomé, ressaltando a necessidade de os conglomerados tradicionais estarem precisando “se reinventar, ganhar agilidade e velocidade”. Além da sede física, onde os espaços são alugados, o Garage mantém uma plataforma virtual com mais de 300 startups e um grupo de WhatsApp com inovadores do Brasil inteiro. Qualquer empresa pode consultar os projetos em andamento e entrar em contato com seus desenvolvedores, mas as companhias “parceiras”, ligadas ao Garage, contam com a vantagem de uma aproximação customizada. “Nosso partner diz que viu dez startups que pareceram interessantes. Nós avaliamos e indicamos as mais promissoras, as que estão prontas, as que precisam amadurecer”, explica Tomé. O principal diferencial do Garage, segundo seus donos, é a total independência do agronegócio convencional.

“Consideramos que a capacidade de inovar depende de quão independente se consegue ser”, brinca Tomé. E assim, de hub em hub, de startup em startup, de partner em partner, o vendedor que ainda hoje grita “pamoooonha de Piracicaba” pelas ruas das cidades paulistas, relíquia dos tempos da velha agricultura, é, cada vez mais, uma espécie em extinção. O Vale do Piracicaba é tech.