Pesquisas realizadas na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp apontam as bactérias presentes no intestino como nova linha de investigação sobre obesidade e diabetes. Em 2006, um estudo publicado na revista Nature mostrou que obesos e magros tinham um tipo diferente de flora intestinal. Isso chamou a atenção dos pesquisadores do Laboratório de Investigação Clínica em Resistência à Insulina (Licre) da FCM.
Há três anos, eles começaram a investigar o mecanismo pelo qual uma mudança na flora intestinal poderia ter influência na obesidade e na resistência à insulina. De acordo com o médico e orientador das pesquisas, Mario José Abdalla Saad, isso é muito novo.Dois dos candidatos para mediar os efeitos da flora intestinal no metabolismo são os receptores TLR2 e TLR4, proteínas codificadas por um gene da família chamada de Toll-like (receptores símiles a Toll), que este ano esteve em evidência na mídia por conta de dois dos três vencedores do prêmio Nobel de medicina. Bruce Beutler descreveu a ação do Toll-like em ratos e Jules Hoffmann em drosófilas.
O TLR2 desempenha um papel no sistema imunológico. É uma proteína receptora presente na membrana de determinadas células. Ele reconhece antígenos e transmite "sinais" para as células do sistema imunológico. O TLR4 também é um receptor do sistema imunológico. Ele detecta, principalmente, lipopolissacarídeo (LPS), componente presente na parede celular das bactérias gram-negativas existentes no intestino.
"O animal obeso tem o receptor TLR4 ativado. A primeira coisa que encontramos nesse animal foi um LPS elevado. O LPS elevado aumenta absorção de energia que se acumula em forma de gordura. Fomos então procurar de onde vinha esse LPS elevado e os candidatos diretos foram as bactérias do trato gastrointestinal", explicou Saad.
Mas, para se chegar a esta descoberta, foi necessário montar o quebra-cabeça a partir de três pesquisas desenvolvidas pelos pesquisadores do Licre. Os trabalhos resultaram em artigos científicos publicados em revistas internacionais.
O educador físico Alexandre Gabarra Oliveira pesquisou os efeitos do exercício físico na redução da circulação de lipopolissacarídeo e na ativação do receptor TLR4 e melhora da sinalização de insulina em tecidos de ratos com obesidade induzida por dieta hiperlipídica. A pesquisa foi publicada na revista Diabetes, da Associação Americana de Diabetes.
O biomédico Bruno de Melo Carvalho estudou a modulação da microbiota intestinal na melhora da sinalização à insulina em camundongos alimentados com alto teor de gordura. O artigo foi submetido para publicação na revista Diabetologia.
Já a bióloga Andrea Moro Caricilli estudou a microbiota intestinal como um modulador-chave de resistência à insulina em camundongos nocaute TLR2. A pesquisa acaba de ser publicada na revista PLoS Biology. A partir do estudo, Andrea observou que camundongos que não apresentavam a proteína TLR2 possuíam um fenótipo semelhante ao observado na síndrome metabólica e com uma composição bacteriana semelhante à encontrada em indivíduos obesos, com aumento da proporção de bactérias do filo Firmicutes.
Os três trabalhos têm apoio da Fapesp e do CNPq.
Inflamação
Tornou-se cada vez mais evidente que a resistência à insulina, induzida pela obesidade, está associada com uma inflamação crônica do tecido adiposo, músculos esqueléticos e órgãos internos como o fígado. Estudos recentes do grupo de pesquisa do Licre mostram que uma mutação no receptor TLR4 tem um papel central na ligação entre a resistência à insulina, inflamação e obesidade.
O TLR4 é um receptor essencial para o reconhecimento de lipopolissacarídeo (LPS). As concentrações de LPS aumentam significativamente após a ingestão de refeições de alto teor de gordura e carboidratos. A ingestão de gordura leva ao aumento da permeabilidade intestinal, porque o LPS é solúvel em gordura.
Segundo o pesquisador Alexandre Gabarra Oliveira, enquanto o índice de LPS circulante no obeso equivale a 0,5 EU/ml, no magro, esse valor é de 0,05 EU/ml.
Ratos machos com oito semanas de idade da linhagem Wistar foram aleatoriamente divididos em três grupos: controle, alimentados com comida padrão para roedores e água; sedentários, alimentados com uma dieta rica em gordura e água; e obesos praticantes de atividade física crônica e aguda.
Os ratos obesos exercitados cronicamente foram submetidos a seções diárias de uma hora de natação de intensidade moderada, cinco vezes por semana, durante dois meses. Após os exercícios, os ratos obesos treinados passaram a ter um LPS de aproximadamente 0,2 EU/ml. Já os agudos, ficaram em torno de 0,05 EU/ml ou menos.
"Levantamos a hipótese que essa redução era proveniente da flora intestinal. Para comprovar que a diminuição do LPS participava do efeito do exercício, submetemos o animal ao protocolo, injetamos LPS e observamos que os resultados foram atenuados. O animal permaneceu resistente à insulina. Indivíduos que possuem níveis aumentados de LPS têm maior absorção de gordura. Isso leva à inflamação subclínica crônica do tecido adiposo, músculo e fígado e cria um ciclo vicioso. Quanto mais gordura absorve, maior se torna a dificuldade para emagrecer", explicou Alexandre.
Resistência à insulina
Existem aproximadamente 100 trilhões de bactérias no intestino, representando de 400 a 1.000 espécies. O conjunto de bactérias que habitam o trato gastrointestinal é chamado de microbiota. Essas bactérias possuem a capacidade de extrair mais ou menos energia dos alimentos. Elas possuem enzimas capazes de digerir carboidratos complexos - polissacarídeos - transformando-os em carboidratos mais simples que são absorvidos e utilizados ou armazenados pelo organismo.
A partir da hipótese que a flora intestinal do obeso e do magro é diferente, tanto em humanos como em roedores, o biomédico Bruno de Melo Carvalho buscou uma forma para modular a flora intestinal e comprovar a relação desta com a resistência à insulina e com a obesidade. A estratégia foi usar antibióticos. Camundongos da linhagem Swiss foram submetidos à dieta rica em gordura durante oito semanas.
O pesquisador utilizou um coquetel de antibióticos de amplo espectro e tratou os animais durante o período de indução à obesidade. Ele percebeu que o grupo de animais sem o tratamento adquiriu todos os componentes de resistência à insulina induzidos por obesidade - inflamação, intolerância à glicose e perda de sensibilidade à insulina.
"O animal tratado com antibiótico teve todos os componentes fisiológicos melhorados em relação ao animal que apenas recebeu dieta rica em gordura. Tanto no fígado, músculo e tecido adiposo, a ativação de todas as proteínas das vias de sinalização da insulina foi melhorada em relação aos animais que não foram tratados", disse Bruno.
Com o tratamento com antibióticos, o pesquisador conseguiu reduzir o número de bactérias no intestino e essa queda proporcionou uma redução dos níveis de LPS circulante, o que resultou na ativação menor do TLR4 e redução na inflamação desse animal, ocasionando melhora na sensibilidade à insulina.
"No laboratório, não avaliamos o tratamento, mas buscamos novas estratégias de tratamento e proteínas envolvidas no mecanismo de resistência à insulina. É um trabalho extenuante porque tem muitas opções. No obeso, há um aumento de gordura saturada circulante e ela vai induzir a ativação do TLR4, causando inflamação e resistência à insulina. A via de sinalização do TLR4 possui pontos de convergência com outras pesquisas que desenvolvemos", disse Bruno.
Microbiota
A pesquisa da bióloga Andrea Mora Caricilli foi a peça que faltava para entender a relação entre a flora intestinal e a obesidade. Ela utilizou um grupo de camundongos modificados geneticamente para a não expressão do receptor TLR2, chamados nocaute. Estudos publicados anteriormente por outros pesquisadores, todos internacionais, apontam que a ausência do TLR2 leva a um aumento da sensibilidade à insulina. Entretanto, ao contrário do que mostram esses estudos, não foi isto que ela encontrou.
"Percebemos que o camundongo nocaute tinha um aumento da concentração de lipopolissacarídeo em comparação aos animais controle. Esse aumento nos levou a investigar qual era a composição da flora intestinal. Observamos que a flora intestinal desses animais tinha uma maior proporção de Firmicutes, como se observa nos obesos", explicou Andrea.
De acordo com a pesquisa, as mudanças na microbiota intestinal foram acompanhadas por um aumento na absorção de LPS, inflamação subclínica, resistência à insulina, intolerância à glicose e, mais tarde, obesidade.
Para comprovar essa teoria, Andrea tratou os camundongos nocaute para o TLR2 com antibióticos de largo espectro, o que dizimou a microbiota intestinal e resgatou o fenótipo metabólico do animal, assemelhando-se ao que se observa nos camundongos controle. Em seguida, transplantou a microbiota dos camundongos nocaute para o TLR2 para camundongos controles com uma microbiota bastante simplifica e passou a alimentá-los com ração padrão. Os animais começaram a desenvolver obesidade e resistência à insulina.
"Toda regulação do sistema imunológico na flora intestinal, o crescimento e predominância de um tipo de bactéria dependem do alimento que você consome e do ambiente em que você está inserido. Dependendo da flora intestinal estabelecida no seu organismo, haverá uma menor ou maior absorção de gordura e uma maior ou menor propensão ao desenvolvimento da inflamação subclínica e da resistência à insulina. Ainda não está esclarecido como ocorre a seleção bacteriana no intestino", concluiu a pesquisadora.
"A obesidade tem um componente genético e ambiental, mas a flora intestinal é mais importante do que pensávamos. Se eu pegar uma flora intestinal de um animal obeso e transplantar para um animal magro, esse animal é capaz de desenvolver obesidade. Uma dieta calórica com alto teor de gordura e pouca fibra modula as bactérias da flora intestinal e facilita a instalação da obesidade. Essa é uma área de intensa pesquisa no mundo e a FCM está na vanguarda disso", concluiu Saad.
¦ Publicações
Artigo: "Physical exercise reduces circulating lipopolysaccharide and Toll-Like receptor 4 activation and improves insulin signaling in tissues of diet-induced obesity rats"
Publicação: Revista Diabetes, março de 2011
Autor: Alexandre Gabarra Oliveira
Orientador: Mario José Abdalla Saad
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Apoio: Fapesp e CNPq
Artigo: "Gut microbiota modulation improves insulin signalling in high-fat fed mice"
Publicação: Submetida na Revista Diabetologia
Autor: Bruno de Melo Carvalho
Orientador: Mario José Abdalla Saad
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Apoio: Fapesp e CNPq
Artigo: "Gut microbiota is a key modulator of insulin resistance in TLR2 knockout mice"
Publicação: Revista PLoS Biology, dezembro de 2011
Autora: Andrea Moro Caricilli
Orientador: Mario José Abdalla Saad
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Apoio: Fapesp e CNPq