Metade das mortes registradas no mundo decorre de doenças coronarianas, segundo as autoridades de saúde. Diante da gravidade do problema, cientistas do mundo todo dedicam boa parte do seu tempo à formulação de drogas e métodos mais eficientes para o combate dessas enfermidades. O esforço conta com a colaboração de pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, que nos últimos oito anos têm trabalhado no desenvolvimento de técnicas e biomateriais voltados ao tratamento da hipertensão arterial e da aterosclerose (ou arteriosclerose), baseados na liberação controlada de óxido nítrico (NO), uma substância sintetizada pelos mamíferos e que tem propriedades antiinflamatórias, antiproliferativas e antitrombóticas. Os estudos conduzidos pelos especialistas da Universidade, que já geraram sete pedidos de patentes, estão abrindo perspectivas para o uso de novas tecnologias pela indústria farmacêutica, destinadas ao tratamento desses males.
Embora os biomateriais doadores de NO estejam sendo preparados por químicos, a pesquisa é de natureza multidisciplinar, como destaca o professor Marcelo Ganzarolli de Oliveira, do Departamento de Físico-Química do IQ. Segundo ele, os estudos contam com a colaboração de especialistas de outras áreas da própria Unicamp, como o Instituto de Biologia (IB) e a Faculdade de Ciências Médicas (FCM), além do Instituto do Coração (InCor), hospital ligado à Universidade de São Paulo (USP). Ganzarolli conta que os trabalhos tiveram início em 1995, logo que ele retornou do seu pós-doutorado na Inglaterra.
Três anos depois, três cientistas dividiriam o Prêmio Nobel por terem descoberto, no final da década de 80, que o NO, mais conhecido até então apenas como um poluente atmosférico, era a substância sintetizada endogenamente pelos mamíferos para o controle da pressão arterial. O episódio fez com que o interesse pelo assunto aumentasse em todo o mundo. Ganzarolli valeu-se desse impulso para iniciar uma linha de pesquisa baseada na síntese de moléculas doadoras de óxido nítrico, bem como na caracterização das suas propriedades químicas e fisiológicas. O objetivo era buscar uma alternativa aos comprimidos e adesivos transdérmicos que cumprem essa missão, mas que utilizam, por exemplo, a nitroglicerina como fonte exógena da substância. "A grande vantagem das moléculas doadoras que sintetizamos é que, por serem endógenas [estão presentes no sangue], elas não são tóxicas ao homem", explica.
Ganzarolli montou uma linha para sintetizar essas moléculas e, posteriormente, a atividade vasodilatadora das drogas foi confirmada em ensaios com animais, num trabalho em colaboração com o IB. Em outras palavras, os pesquisadores verificaram que os doadores de óxido nítrico sintetizados, reduziam a pressão arterial. O método de síntese e as formulações, que se mostraram eficazes, renderam três pedidos de patente em nome da Unicamp e receberam menções honrosas do Prêmio Governador do Estado, nas edições de 2001 e 2002. Além disso, um artigo publicado foi capa da revista "Nitric Oxide" também em 2002. A partir deste ano, o professor do IQ e sua equipe se impuseram um outro desafio: trabalhar na formulação de um "veículo" que pudesse conduzir, de forma controlada, o óxido nítrico até locais específicos no organismo.
Os especialistas da Unicamp desenvolveram, então, um gel que tem como base um polímero, no qual o NO está incorporado. Ganzarolli esclarece que, assim que o material é aplicado, ele passa a liberar, através da pele, o óxido nítrico, que irá atingir posteriormente a corrente sangüínea. Esse estudo contou com a colaboração do médico escocês Richard Weller. No ensaio promovido no departamento de dermatologia da Universidade de Edimburgo, na Escócia, com homens e mulheres saudáveis, a aluna de doutorado do IQ Amedea Barozzi Seabra, verificou que o gel contendo o NO provocava uma vasodilatação local.
"O experimento abriu boas perspectivas para o uso farmacológico dessa formulação, pois ela possui um grande potencial de aplicação para o tratamento de infecções e feridas na pele, como a psoríase e as lesões produzidas pela leishmaniose cutânea, doença endêmica em países tropicais como o Brasil", afirma Ganzarolli. O trabalho permitiu, ainda, a continuidade das pesquisas, dessa vez direcionadas para o controle da aterosclerose, outra doença na qual os doadores de óxido nítrico podem ter uma ação terapêutica. A doença pode ser explicada como um processo imunoinflamatório. Ele se origina no espaço logo abaixo da primeira camada de células que reveste o interior de todos os vasos sangüíneos, o endotélio. É nesse ponto que as placas de aterosclerose se desenvolvem. O problema é especialmente grave quando afeta as artérias coronárias, que nutrem com sangue o músculo cardíaco.
A maior parte dos infartos ocorre quando a placa ateromatosa se rompe subitamente, disparando a formação de um coágulo que bloqueia o fluxo sangüíneo. Quando isso acontece, uma parte do coração deixa de ser irrigada. As conseqüências normalmente são graves, podendo levar à morte. Segundo Ganzarolli, entre as várias formas de tratamento desta doença, uma delas é uma técnica conhecida como angioplastia. O método consiste na introdução, através da artéria femoral, de um cateter contendo um balão em sua extremidade. Através do vaso, o médico chega ao coração do paciente e, conseqüentemente, à artéria coronária comprometida. Ao atingir o ponto exato da estenose, o balão é inflado, ampliando assim o calibre do canal e restabelecendo o fluxo sangüíneo. Acontece, porém, que logo após o procedimento, entre 5% e 10% das pessoas sofrem o que os especialistas chamam de reoclusão aguda. Simplificando, as artérias voltam a se fechar rapidamente.
Além disso, de 30% a 50% dos pacientes submetidos à angioplastia passam pela mesma situação depois de um período um pouco maior, num processo chamado de reestenose tardia. Para reduzir esses índices, a medicina aprimorou o procedimento. A alternativa foi colocar uma malha metálica (stent) em torno do balão preso ao cateter. Após inflar o balão, a malha se expande e é fixada no interior da artéria, dando sustentação às suas paredes. Apesar de mais eficiente que o método anterior, este também não tem 100% de sucesso. "Mesmo com o uso do stent, entre 20% a 30% dos pacientes ainda têm reestenose", diz o professor do IQ.
Só para se ter uma idéia do número de pessoas acometidas pelas doenças coronarianas os especialistas estimam que perto de 2 milhões de stents são implantados anualmente no mundo. Há cinco anos, um novo avanço foi registrado nessa área. O stent passou a ser revestido por substâncias inibidoras da reoclusão. Uma dessas drogas, a rapamicina, já é usada comercialmente no recobrimento de stents. Basicamente, ela tem uma ação antiproliferativa. O que os pesquisadores do IQ fizeram, com o auxílio de especialistas do InCor, foi aproveitar a idéia para desenvolver um polímero contendo o óxido nítrico, para ser usado no revestimento do stent. O objetivo era obter um efeito melhor do que o das drogas convencionais, dado que o NO tem uma ação ainda mais abrangente.
"Nós já fizemos esse revestimento e constatamos a propriedade do polímero liberar o NO de forma controlada. O próximo passo será testar o método in vivo, em modelos animais", adianta Ganzarolli. Esses ensaios, de acordo com ele, ficarão a cargo dos médicos do InCor. A expectativa é que os testes preliminares estejam sendo realizados por volta do segundo semestre do ano que vem. O docente da Unicamp diz que as matrizes poliméricas já estão sendo patenteadas. Ele destaca que, além de colocar o Brasil no seleto clube de países detentores desse tipo de tecnologia, os estudos têm contribuído para a formação de pessoal qualificado e para a difusão do conhecimento.
Os trabalhos já geraram duas dissertações de mestrado e uma tese de doutorado. Atualmente, o trabalho envolve duas teses de doutorado, uma de mestrado e alunos de iniciação científica. "Neste ano nós publicamos dois artigos sobre os materiais doadores de óxido nítrico na revista "Biomaterials" que possui o maior índice de impacto nesta área", afirma Ganzarolli, que ressalta ainda a importância do apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) aos projetos coordenados por ele.
Notícia
Jornal da Unicamp