Boa parte das cianobactérias, conhecidas como algas azuis, vive em águas marinhas, de lagos e de rios, em contato direto com peixes e frutos do mar que podem ser afetados de diferentes formas pelas substâncias produzidas por esses microrganismos, muitas delas ainda desconhecidas. Pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Universidade Técnica da Dinamarca, descobriram e caracterizaram uma série dessas substâncias, produzidas por cianobactérias coletadas em um reservatório em Pernambuco e em folhas de árvores do Parque Estadual da Serra do Mar, no litoral paulista.
As descobertas foram feitas durante a pesquisa "Metabólitos secundários produzidos por microrganismos aquáticos e impacto na qualidade de frutos do mar e de peixes de água doce", realizada com o apoio da FAPESP em cooperação com o Innovation Fund Denmark. O objetivo, de acordo com os pesquisadores, é ampliar o conhecimento sobre a eventual toxicidade dessas substâncias e sobre os riscos de contaminação para consumidores de frutos do mar e peixes. No estudo também são analisadas outras classes de produtos naturais bioativos não tóxicos com potencial para diversas aplicações – entre elas, em medicamentos.
“As cianobactérias são os organismos mais antigos da Terra, bem adaptadas a qualquer ambiente com um mínimo de água. O acúmulo de fósforo, nitrogênio e matéria orgânica em ambientes aquáticos favorece o seu desenvolvimento. Esse crescimento acelerado, fenômeno conhecido como floração, que é facilmente percebido por tornar a água verde, favorece a liberação de substâncias, cujos efeitos em outros organismos não são plenamente conhecidos. Algumas espécies de cianobactérias produzem toxinas que já foram caracterizadas e outros compostos ativos que ainda não foram descobertos”, conta Ernani Pinto, professor da FCF-USP, responsável pela pesquisa.
Dessa forma, o trabalho contempla não só toxinas, mas outras substâncias produzidas pelos microrganismos que podem ter impacto na água, nos frutos do mar e nos peixes.
Entre as substâncias identificadas e caracterizadas pelos pesquisadores quatro são produzidas por uma espécie de cianobactéria coletada do Reservatório de Tapacurá, no município pernambucano de São Lourenço da Mata. O grupo já havia comprovado que a espécie estudada produz a molécula da anatoxina-a(s), toxina com efeito inibidor da colinesterase, inativando a atividade da enzima acetilcolinesterase (AChE), uma das mais importantes e necessárias ao pleno funcionamento do sistema nervoso de humanos, de outros vertebrados e de insetos.
Trata-se do único composto organofosforado natural conhecido. Testes de laboratório mostraram que o efeito da anatoxina-a(s) é igual ao dos inseticidas sintéticos. Sua ingestão pelo animal aquático ou pelo ser humano pode provocar salivação intensa, parada respiratória e parada cardíaca.
Agora, os pesquisadores trabalham para identificar os possíveis efeitos das novas substâncias em diferentes modelos, avaliando sua toxicidade e seus mecanismos de ação. De acordo com Pinto, o que se sabe por ora é que as substâncias são peptídeos inibidores de proteases – enzimas capazes de degradar proteínas.
“Além da produção da anatoxina-a(s), encontramos na mesma cepa quatro substâncias que são inibidoras de protease. Essa sucessão de descobertas em torno da cianobactéria indica que se trata de um organismo de extrema importância, evidenciando sua capacidade de produzir substâncias ativas dos mais variados tipos. A literatura mundial costuma se ater mais aos aspectos toxicológicos, mas essas outras substâncias descobertas podem virar medicamentos, por exemplo.”
Em outra frente da pesquisa, em parceria com o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, o grupo encontrou 38 peptídeos produzidos por cianobactérias que vivem na água retida pelas folhas de plantas da Floresta Tropical de Picinguaba, na Serra do Mar – 37 deles inéditos na literatura científica. As substâncias não parecem ser toxinas, mas pertencem a famílias distintas de peptídeos que ocorrem em cianobactérias e que são inibidores de proteases.
“Ainda não foram realizados ensaios toxicológicos para determinar se essas substâncias são tóxicas ou não, mas elas podem cumprir uma função importante na natureza, como na alelopatia – processo que envolve metabólitos secundários produzidos por plantas, algas, bactérias e fungos que influenciam na comunicação intra e entre espécies, no crescimento e desenvolvimento de sistemas biológicos. É a capacidade que as plantas têm de produzir substâncias químicas que, liberadas no ambiente de outras, influenciam de forma favorável ou desfavorável o seu desenvolvimento”, explica Pinto.
Ainda de acordo com o pesquisador, essas substâncias podem ser produzidas para proteger as cianobactérias de animais que consomem plantas. Elas também atuam na homeostase, processo de autorregulação por meio do qual sistemas biológicos tendem a manter sua estabilidade para se ajustar a condições ótimas de sobrevivência.
“O Captopril, fármaco usado no tratamento de hipertensão arterial e em casos de insuficiência cardíaca, foi descoberto e desenvolvido a partir de uma toxina natural inibidora da enzima conversora da angiotensina I. Podemos estar no caminho do desenvolvimento de novos fármacos a partir da descoberta de novas substâncias com mecanismos semelhantes”, diz.
Os resultados foram relatados no artigo Structural Characterization of New Peptide Variants Produced by Cyanobacteria from the Brazilian Atlantic Coastal Forest Using Liquid Chromatography Coupled to Quadrupole Time-of-Flight Tandem Mass Spectrometry, publicado pela revista Marine Drug. Já a descoberta das substâncias produzidas pela cianobactéria coletada no Reservatório de Tapacurá foi relatada na revista Toxicon, no artigo First report of spumigin production by the toxic Sphaerospermopsis torques-reginae cyanobacterium.
Fonte: Agência FAPESP