Festas no clã genuíno da ciência comemoraram a aprovação este ano – após três décadas de pesquisa – da vacina contra malária, doença severa que mata uma criança abaixo de 5 anos de idade no planeta a cada dois minutos. O prêmio Nobel de Medicina à chinesa Tu Youyou por medicamento eficaz também ganhou os holofotes. Porém, fora da cena científica, poucos sabem que a vacina contou com pesquisadores brasileiros e que outros cientistas trabalham para combater – com inovação – a malária.
É o que ressalta o professor do Instituto de Química Unicamp Luiz Carlos Dias, coordenador do consórcio Molecules Initiative for Neglected Diseases (MINDI), que pesquisa um medicamento para tratar a Malária em dose única, o que é ainda mais um avanço.
“Esta é a primeira vacina aprovada para tratar doenças parasitárias em humanos e teve contribuição de dois pesquisadores brasileiros, ambos imunologistas, a professora Ruth Nussensweigh e o professor Victor Nussensweigh. A professora Ruth nasceu na Áustria, mas veio ainda criança para o Brasil. Os dois cientistas estavam morando nos Estados Unidos desde a década de 1960, quando realizaram contribuições fundamentais para o desenvolvimento da Mosquirix (RTS,S/AS01)”, conta o professor da Unicamp. A vacina, acrescenta ele, usa plataforma baseada na combinação de uma proteína da superfície do parasita Plasmodium falciparum com outra proteína da superfície do vírus que causa a hepatite B.
Em 1967, quando estava na New York University (NYU), nos Estados Unidos, em um artigo publicado na revista Nature, a professora Ruth mostrou que era possível imunizar roedores contra a malária por meio da irradiação dos esporozoítos, um dos estágios de vida do Plasmodium berghei, após mostrar como infectar os mosquitos com esses parasitas.
“A professora tratou alguns exemplares do parasita que infecta roedores, com raios X, para enfraquecê-los. Na sequência, ela injetou os parasitas enfraquecidos em camundongos, que se tornaram imunes a esses parasitas. Este foi o primeiro passo, mas não foi suficiente. Nos anos seguintes, os dois cientistas fizeram outra descoberta fundamental: identificaram a circunsporozoíta principal (CS), proteína que recobre o parasita que ativa o sistema imunológico de mamíferos”, revela o estudioso da malária.
Após clonagem e sequenciamento do gene da proteína CS em parasitas da malária símios (Plasmodium knowlesi), eles conseguiram produzir a proteína em laboratório e publicaram o trabalho em 1980 na revista Science. Este trabalho permitiu a produção da proteína CS como proteína recombinante (rCS), o que abriu o caminho para vários estudos epidemiológicos de populações vulneráveis expostas ao esporozoíto da malária.
“Foi essa contribuição fantástica no uso de esporozoítos atenuados por irradiação, que levou ao desenvolvimento desta vacina, abrindo uma linha de pesquisas que influenciou muitos pesquisadores a continuar enfrentando o enorme desafio de desenvolver uma vacina para a malária,” enaltece Dias.
Estatísticas
A Organização Mundial de Saúde (OMS) informa que, em 2019, a malária, doença transmitida pela picada das fêmeas do mosquito Anopheles, que afeta pessoas negligenciadas em países de baixa renda, matou cerca de 409 mil pessoas. Desses, cerca de 94% dos casos ocorreram no continente africano, principalmente na África Subsaariana, sendo 67% crianças abaixo de 5 anos. Isso significa que uma criança abaixo de 5 anos morre de malária no planeta a cada 2 minutos. “Isso é inadmissível”, fala o professor indignado.
Segundo dados do Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária (PNCM), o Brasil apresentou em 2018, 194,572 casos, sendo cerca de 90% causados pelo Plasmodium vivax, menos letal. Houve uma pequena redução no número de casos em 2018 (157,454 casos), sendo que esses casos ocorrem em regiões de desmatamento e garimpo, nos estados do Norte e região Amazônica.
Mosquirix
A Mosquirix começou a ser desenvolvida em 1987, conta Dias. Os ensaios clínicos de fase 3 foram concluídos em 2014 e ,em 2019, a vacina começou a ser aplicada no mundo real em um projeto-piloto no Quênia, Malawi e Gana. A vacina mostrou segurança e eficácia de aproximadamente 35% ao longo de quatro anos para um esquema de quatro doses em crianças de 5–17 meses. Os resultados do estudo de fase 3, randomizando e controlado por placebo, envolvendo pouco mais de 15 mil crianças, foram publicados na revista médica The Lancet, em 2015.
Desenvolvida pela farmacêutica britânica GlaxoSmithKline (GSK), a vacina combate o Plasmodium falciparum, um dos cinco parasitas que causam a malária e de longe, o mais letal. “Não será muito útil para combater a malária no Brasil, pois aqui, cerca de 90% dos casos são causados por outro parasita, o Plasmodium vivax, para o qual a Mosquirix não apresenta eficácia”, salienta Dias.
O estudo mostrou, revela Dias, que a vacina é segura e apresenta eficácia em torno de 35% na prevenção de casos de malária e infecções mais severas (a eficácia varia entre 26-50% em bebês e crianças pequenas).
“A vacina precisa de 4 doses, que devem ser aplicadas, respectivamente, no quinto, sexto, sétimo e décimo oitavo mês de vida das crianças. Se considerarmos, que são cerca de 270 mil mortes de crianças por ano causadas pela malária, reduzir em cerca de 35% significa salvar algo em torno de 95 mil vidas. Mas só ter a vacina não basta para atingir esse objetivo.”
Pesquisas
O consórcio Molecules Initiative for Neglected Diseases (MINDI) https://mindi.iqm.unicamp.br/) tem como objetivo descobrir novos candidatos a fármacos para o tratamento de malária, doença de Chagas e leishmanioses.
Esse projeto é o resultado de um convênio PITE firmado entre a Unicamp, a Universidade de São Paulo (USP), a Medicines for Malaria Venture (MMV), a iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
“É a primeira parceria envolvendo a MMV e a DNDi e a academia latino-americana que se dedica à otimização de compostos líderes, uma etapa complexa e crucial no processo de descoberta de medicamentos. O objetivo é desenvolver medicamentos que possam ser administrados por via oral, sejam altamente eficazes, tenham baixa toxicidade e sejam baratos e acessíveis e possam ser usados por crianças e gestantes. Com a MMV, como um desafio extra, estamos trabalhando para desenvolver um tratamento de dose única para a malária.”
Dias reforça que o projeto visa trazer para o Brasil novas experiências na área de descoberta de medicamentos, destacando a importância do trabalho colaborativo nesta desafiadora área de pesquisa. “Nesse trabalho, em conjunto com diversos parceiros e cientistas de renome mundial da academia e de empresas farmacêuticas globais, institutos de pesquisa e universidades no Brasil e no exterior, unem esforços em torno de um único objetivo: salvar vidas das pessoas mais negligenciadas deste planeta.”
Colaboração com a OMS, ONU e com as várias organizações sem fins lucrativos, ampliam ainda mais os horizontes do grupo. “Trabalhamos para atingir a meta de erradicar a malária do planeta até 2040, reduzindo em 90% os casos até 2030. Para atingir esse objetivo, é preciso investir em testes de diagnóstico, desenvolver novas vacinas mais robustas, novos medicamentos mais eficazes, fortalecer os sistemas de vigilância e tratamento e esclarecer as populações afetadas”, afirma o docente da Unicamp.
(Confira artigo de Luiz Carlos Dias: https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/artigos/luiz-carlos-dias/contribuicao-brasileira-para-vacina-da-malaria )
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