O vácuo, para os físicos, é muito diferente daquele concebido pelo senso comum. O espaço vazio possui estrutura e apresenta intensa atividade, na forma de flutuações quânticas, que se explicitam por meio da produção e do aniquilamento de partículas virtuais. Tal concepção, que decorre diretamente da teoria quântica, é bastante familiar para os cientistas da área. E uma das consequências das flutuações do vácuo, o Efeito Casimir, já foi, inclusive, observada e mensurada em laboratório (veja em O Efeito Casimir).
A novidade é que há uma possibilidade teórica de que essas flutuações, antes consideradas muito pequenas para exercer qualquer efeito macroscópico, possam ser amplificadas ao ponto de sua energia exceder a energia dos corpos materiais e produzir resultados como a destruição de uma estrela, por exemplo.
A descoberta, realizada a partir de uma abordagem puramente matemática da teoria e ainda sem comprovação observacional, é um dos principais saldos do projeto temático recém-concluído “Física em espaços-tempos curvos”, coordenado por George Emanuel Avraam Matsas, professor titular do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), e apoiado pela FAPESP.
“Bem no meio do período de vigência do projeto, por volta de 2010, Daniel Augusto Turolla Vanzella, professor doutor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), e William Couto Corrêa de Lima, na época seu aluno de doutorado, descobriram que, se existir uma certa classe de campos quânticos, a densidade da energia de vácuo desses campos crescerá exponencialmente nas vizinhanças de um corpo material muito denso”, disse Matsas à Agência FAPESP.
O trabalho de Vanzella e de Lima foi publicado na Physical Review Letters, com o título Gravity-Induced Vacuum Dominance e estabeleceu as bases desse processo de forma tão geral que tornava possível a aplicação de tal conhecimento em várias área de investigação científica, como cosmologia, astrofísica etc.
“Posteriormente, eu me juntei aos dois, quando aplicamos esse efeito no caso particular de um campo gravitacional criado por uma estrela de nêutrons. Isso nos permitiu entender o fenômeno com maior clareza”, acrescentou Matsas. Um novo artigo, Awaking the Vacuum in Relativistic Stars, desta vez assinado por Lima, Matsas e Vanzella, foi publicado na Physical Review Letters em seguida.
Estrela de nêutrons
São conhecidas atualmente cerca de 2 mil estrelas de nêutrons na Via Láctea (a galáxia da qual o Sistema Solar faz parte) e nas Nuvens de Magalhães (que são duas galáxias próximas da nossa). Elas consistem em objetos extremamente densos, com massas superiores a uma vez e meia a massa solar, comprimidas em corpos esféricos com raios de apenas algumas dezenas quilômetros. Seus campos gravitacionais são tão intensos que curvam fortemente o espaço-tempo nas regiões em que se encontram, conforme a predição da teoria geral de relatividade. É esse encurvamento que perturba o vazio quântico, fazendo com que a densidade da energia de vácuo cresça de forma exponencial.
“Se existisse o campo hipotético no qual baseamos nosso modelo, quando a estrela de nêutrons se tornasse suficientemente densa as flutuações do vazio cresceriam tanto que, em pouquíssimo tempo, haveria, ponto a ponto, mais energia de vácuo do que energia da própria estrela. E essa energia do vazio curvaria ainda mais o espaço-tempo, podendo, no limite, levar à destruição da estrela”, afirmou Matsas.
Por que a deformação do espaço-tempo amplifica as flutuações do vácuo, a ponto de elas produzirem efeitos macroscópicos e até mesmo catastróficos? “Não temos uma boa resposta e acredito que ninguém a tenha”, respondeu Vanzella. “Se houvesse uma maneira intuitiva de entender esse efeito, outras pessoas teriam antecipado sua descoberta há anos. Quando a gente faz as contas, o efeito aparece. Foi um tratamento estritamente matemático das equações que nos levou a descobrir essa possibilidade teórica”, prosseguiu.
O pesquisador relatou que o primeiro resultado matemático que sinalizou tal efeito apareceu em um cálculo lateral feito no trabalho realizado por ele na época de seu doutorado. Esse achado intrigante ficou, por assim dizer, hibernando na gaveta, até que, uma década mais tarde, ele conseguisse aplicá-lo e perceber que uma de suas consequências era o crescimento das flutuações de vácuo.
Aos dois primeiros artigos na Physical Review Letters seguiu-se um terceiro artigo, desta vez publicado na Physical Review D, escrito com a colaboração de Andre Gustavo Scagliusi Landulfo, atualmente professor adjunto na Universidade Federal do ABC (UFABC), intitulado Particle creation due to tachyonic instability in relativistic stars.
“Esse terceiro trabalho partiu da consideração de que o crescimento da densidade de energia de vácuo desencadeado por uma estrela de nêutrons não pode continuar indefinidamente, pois, como essa energia retroage no espaço-tempo, curvando-o cada vez mais, isso, no limite, levaria ao colapso do universo. Em algum momento, alguma coisa deve acontecer para estabilizar o sistema. Verificamos teoricamente que, quando o processo é interrompido e uma nova situação de equilíbrio ocorre, parte da energia de vácuo excedente é liberada na forma de partículas reais, que escapam do sistema. Aconteceria então, nesse caso, uma produção em profusão de partículas”, explicou Vanzella.
Segundo Matsas, no caso concreto da colisão de duas estrelas de nêutrons, por exemplo, o balanço energético dessa produção de partículas proporcionaria uma condição observacional para a eventual confirmação do modelo proposto (veja o quadro 2: Campos escalares).
Dadas as grandes dificuldades de cálculo, o modelo foi construído com base em várias simplificações: o espaço-tempo foi concebido como uma realidade estática; a retroação da energia de vácuo no espaço-tempo não foi computada; e a estrela foi idealizada como um objeto perfeitamente esférico e sem rotação. Sabe-se que, na realidade, nada disso é assim. Mas os pesquisadores verificaram que, mesmo nesse cenário ultrassimplificado, o efeito já se manifestava. Trabalhos posteriores, que contaram com a colaboração de Raissa Mendes, aluna de doutorado de Matsas, procuraram aproximar um pouco mais o modelo da situação real, investigando teoricamente o que ocorreria no caso de a estrela não ser perfeitamente simétrica ou apresentar rotação.
Dois artigos dessa etapa da pesquisa já foram publicados na Physical Review D: Awaking the vacuum with spheroidal shells e Quantum versus classical instability of scalar fields in curved backgrounds. E um terceiro está passando por revisão matemática para publicação.
Contexto cosmológico
A tarefa de analisar esse efeito no contexto cosmológico como uma possível explicação para a expansão acelerada do universo, que constitui atualmente um dos maiores enigmas da cosmologia, é algo que está no rol de prioridades de Vanzella. “Comecei a pensar nisso quando fiz meu pós-doutorado sob a supervisão de Leonard Parker, na Universidade de Wisconsin em Milwaukee, nos Estados Unidos. Parker foi quem fundou a área de teoria de campos em espaços-tempos curvos, na qual trabalhamos. E considerava que a chamada ‘energia escura’, responsável pela expansão acelerada do universo, poderia ser uma energia de vácuo."
A eventual aplicação do efeito descoberto pelos brasileiros no cenário cosmológico seria uma façanha espetacular. Mas o efeito em si já é uma descoberta notável. “A possibilidade de a curvatura do espaço-tempo exacerbar as flutuações do vácuo não é nada trivial, nem intuitiva. Ficamos surpresos ao descobri-la”, comentou Matsas.
“Apesar de a energia total do vácuo ser zero e manter-se em zero, as flutuações fazem com que, localmente, essa energia apresente variações extremas, crescendo ou decrescendo de forma exponencial. Efeitos de vácuo quântico eram esperados, mas com expressão muito sutil. O que Vanzella e Lima mostraram foi que esses efeitos podem assumir proporções catastróficas”, disse o pesquisador.
Agência FAPESP