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Pesquisa investiga diálogo entre Murilo Mendes e a arte espanhola (1 notícias)

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Por Manuel Alves Filho

Tese de doutorado desenvolvida pelo historiador literário e tradutor José Leonardo Sousa Buzelli, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, investigou a chamada “matéria de Espanha” na obra do poeta modernista Murilo Mendes. O objetivo do pesquisador foi estudar o uso do país europeu como matéria literária por parte do autor brasileiro. “Busquei fazer uma leitura bastante próxima dos textos e identificar as referências literárias com as quais Mendes ‘dialogava’, como as obras de literatos e artistas plásticos castelhanos, catalães, galegos e andaluzes”, explica Buzelli, que visitou arquivos e bibliotecas no Brasil, Espanha e Itália, atrás de livros e cartas escritos pelo poeta. O trabalho foi orientado pela professora Maria Eugenia Boaventura.

Em seu trabalho, o pesquisador analisou mais detidamente dois livros de Murilo Mendes: Tempo Espanhol, volume de poemas publicado em Lisboa, em 1959; e Espaço Espanhol, um itinerário geográfico-cultural-literário escrito entre 1966 e 1969, mas que teve publicação póstuma. Um dos recursos utilizados pelo poeta modernista nas duas obras, observa o autor da tese de doutorado, foi a tópica clássica ubi sunt, termo que em latim significa “onde estão?”. “Mendes lançou mão dessa pergunta retórica para contrastar um passado bastante idealizado com um presente percebido por ele como brutal e mesquinho”, pontua.

Um dado importante sobre Murilo Mendes, conforme Buzelli, é que ele era um católico de fato. “Quando criança e adolescente, ele era um católico por convenção, já que toda a sua família pertencia a essa religião. Entretanto, já adulto, ele conheceu no Rio de Janeiro o artista plástico e poeta Ismael Nery, que o converteu definitivamente ao catolicismo. Essa conquistada religiosidade passou a marcar profundamente as obras de Mendes, orientando-as a partir daí. Tanto que a divisa de Tempo e Eternidade, livro escrito em parceria com Jorge de Lima e publicado em 1935, seria ‘Restauremos a poesia em Cristo’”, explica o pesquisador.

Nessa fase, Murilo Mendes tornou-se colaborador da revista católica A Ordem, na época editada por Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima. “Estamos falando da década de 1930. Naquela época, os católicos temiam o avanço do comunismo ateu de orientação soviética. Como forma de fazer oposição ao comunismo, muitos católicos passaram a apoiar o fascismo. Faziam isso não por convicção, e sim por pragmatismo. O princípio era a seguinte: o inimigo do meu inimigo pode ser meu aliado. Mas desde o princípio estava claro que a união entre católicos e fascistas seria temporária, destinada apenas a juntar forças contra um ‘mal maior’”, afirma o autor da tese de doutorado.

Com a eclosão da II Guerra Mundial, porém, Murilo Mendes e os demais colaboradores de A Ordem, percebendo a real dimensão do nazi-fascismo, começaram a expressar seu arrependimento público por aquele apoio. “Mendes, especificamente, passou a se mostrar mais tolerante com relação ao comunismo em seus escritos. Em seu livro O Discípulo de Emaús, publicado em 1945, último ano da guerra, ele faz uma hierarquização de sistemas, colocando na primeira posição o cristianismo, seguido do comunismo e tendo o capitalismo na última posição. No volume, ele escreve: ‘O comunismo é revolucionário diante do capitalismo, e conservador diante do cristianismo’”, relata Buzelli.

 

Igreja questionada

Um episódio de caráter político, porém, abalou a fé de Murilo Mendes. Ao assumir o poder após a guerra civil espanhola (1936-1939), o general Francisco Franco recebeu o apoio tanto do clero castelhano quanto do papa Pio XII. “Embora nunca tenha perdido a fé completamente, Mendes passou a questionar as razões que levaram a Igreja, que deveria estar comprometida com a causa dos oprimidos, a dar sustentação a um regime autoritário. Tal questionamento surge de forma muito eloquente no livro Tempo Espanhol. Na obra, publicada quando ele já morava na Europa, Mendes tenta compreender o que está acontecendo no país ibérico”, esclarece Buzelli.

O pesquisador afirma que também é possível perceber no mesmo livro a idealização que Murilo Mendes faz do passado espanhol. O poeta modernista dá grande peso ao que a historiografia espanhola chama de “Século de Ouro”, que grosso modo vai de 1530 a 1680, ano da morte do dramaturgo Calderón de la Barca, época da máxima expansão econômica, política e militar do reino ibérico, e na qual viveram grandes expoentes da sua cultura, como os escritores Miguel de Cervantes, Luís de Góngora e Francisco Quevedo, além dos pintores Diego Velázquez e El Greco.

Foi nos séculos 16 e 17 em que a Espanha, liderando uma coalisão militar católica, freou definitivamente o avanço turco pelo Mediterrâneo, e em que foram criados Dom Quixote e o conquistador Don Juan, personagens de apelo universal ainda hoje. “Mendes não poderia deixar de contrastar esse passado, que se apresentava tão glorioso, tão católico, com o presente de uma Espanha autoritária, repressiva, empobrecida e católica só no nome. Daí surge para ele o apelo da tópica do ubi sunt. Ele quer saber onde estão o Cervantes e o Quevedo da atualidade. A resposta óbvia é que foram mortos pelo regime”, detalha o autor da tese de doutorado.

É sintomático, prossegue Buzelli, que os últimos escritores retratados no livro sejam todos representantes da chamada “Idade de Prata”, e todos igualmente mortos durante a guerra civil ou nos primeiros anos do franquismo: Miguel de Unamuno e García Lorca, mortos em 1936, Antonio Machado, em 1939, e Miguel Hernández, em 1942. “É como se Mendes dissesse que a ascensão de Franco marcou o fim (ou a interrupção) do esplendor literário espanhol”. Em dada altura de Tempo Espanhol, diz Buzelli, Murilo Mendes interrompe a sua narrativa para fazer uma admoestação ao clero ibérico.

No poema “O Padre Cego”, por exemplo, ele apela para que o sacerdote não abençoe a espada, numa referência ao apoio da Igreja ao regime franquista, e pergunta: “És pai vigilante ou assassino?”. Em outro poema, “O Cristo Subterrâneo” [ler nesta página], o poeta modernista divide o catolicismo espanhol em dois: o oficial, que apoia o ditador Franco; e o “subterrâneo”, clandestino, comprometido com as lutas dos estudantes, dos operários e das vítimas da ditadura.

No final da década de 1960, Murilo Mendes escreve Espaço Espanhol, este em prosa. O livro, espécie de “guia de viagem” bastante pessoal, é construído seguindo a geografia da Espanha. O autor começa falando do Norte e depois vai dando a volta ao país e fazendo referência às outras regiões. Na obra, o poeta brasileiro se demora um pouco mais nas pessoas [chega a escrever que “na Espanha o maior monumento é o homem”], descrevendo os costumes e as localidades, mostrando-se sempre nostálgico e melancólico em relação àquele passado cristão bastante idealizado. “Como lembrou uma professora que participou da minha banca de defesa, Filipe II era tão ou mais brutal do que Franco, mas importava a Murilo Mendes idealizar o monarca ‘aurissecular’, apresentá-lo como uma figura generosa, ainda que problemática, para servir de contraponto ao tirano fascista e mesquinho”, diz Buzelli, que também conta que o poeta modernista sempre se mostrou impressionado com as touradas.

Ao falar sobre o duelo homem-animal, segundo o pesquisador, o autor mineiro se mostra fascinado com a relação dos espanhóis, um povo tão católico, com esse esporte que ele percebia como um resquício de ritos pagãos fenícios, sugerindo que o cristianismo ibérico tinha uma base pagã. Murilo Mendes afirma em Espaço Espanhol que a Espanha estava dividida entre o touro-pagão e a Virgem-cristã, com a Igreja Católica ficando muitas vezes do lado do touro. “O texto desse livro expressa muita nostalgia e melancolia. Um exemplo é quando Mendes, na passagem dedicada a Madri, observa a verticalização da cidade. Em dado momento ele pergunta: ‘Existirão ainda espanhóis dentro dos arranha-céus?’ Trata-se de uma referência à cultura espanhola e ao caráter de sua gente, que para ele estaria muito ligado à terra, à sua paisagem árida. Ou seja, ele questiona se, ao retirar o espanhol do contato com esse cenário, ele ainda continuaria sendo espanhol”

O mesmo acontece, finaliza Buzelli, quando Murilo Mendes percebe que os madrilenos trocavam as plazas de toros pelos estádios de futebol. O poeta torna perguntar: ‘haverá ainda espanhóis dentro dos estádios?’. “Como se vê, também em Espaço Espanhol Mendes contrapõe o presente à sua idealização do passado”, sustenta o autor da tese de doutorado, que contou com bolsa de estudo concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

 

O poeta

Murilo Mendes nasceu Murilo Monteiro Mendes, em 13 de maio de 1901, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Foi o segundo filho do casal Onofre Mendes, funcionário público, e Elisa Valentina Monteiro de Barros, que faleceria no ano seguinte, aos 28 anos. Como não pertencia a uma família rica, teve que trabalhar para se sustentar, embora sempre desejasse ser poeta. Embora a sua colaboração com a imprensa tenha se iniciado em 1920, ainda na sua cidade natal, ele publicou seu primeiro livro, Poemas, somente em 1930, depois de ter se mudado para o Rio de Janeiro. A obra recebeu o Prêmio Graça Aranha de poesia, o que fez com que o pai de Murilo Mendes, que era contrário à aspiração literária do filho, passasse a apoiá-lo.

Na década de 1950, Murilo Mendes partiu para a Europa como professor de literatura brasileira a soldo do Itamaraty. Tentou primeiramente a Espanha, que em 1956 lhe negou o visto necessário por causa de suas posições antifascistas. Entretanto, as autoridades franquistas nunca lhe barraram a entrada no país como turista, dando-lhe a oportunidade de fazer amizade com muitos escritores e artistas plásticos espanhóis, como Jorge Gullén, Dámaso Alonso, Rafael Alberti e Miró. Finalmente, em 1957, o poeta modernista transferiu-se para a Itália, onde passou a ensinar na Universidade Sapienza de Roma. Durante quase duas décadas tentou retornar ao Brasil, sem nunca conseguir. Faleceu em 1975, durante uma viagem a Portugal com a esposa.

Após a morte de Murilo Mendes, a viúva Maria da Saudade Cortesão Mendes [filha do historiador português Jaime Cortesão, a quem Tempo Espanhol está dedicado] doou a biblioteca do poeta, composta por 2.800 exemplares, à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente, o acervo está disponível para consulta pública no Museu de Arte Murilo Mendes, mantido pela UFJF. Para desenvolver sua tese de doutorado, José Leonardo Sousa Buzelli também recorreu à biblioteca para analisar a obra do autor modernista.

O Cristo
Subterrâneo

Descubro um Cristo secreto 
Que nasce na Espanha súbito.

Não é o Cristo vitorioso 
Dos afrescos catalães, 
Nem o Cristo de Lepanto 
Suspenso por uma torre 
De espadas, velas, paixões. 
Não investe uma colina, 
Não brilha no meio do altar 
Entre ornamentos de prata. 
Nem no palácio dos ricos, 
Nem no báculo dos bispos.

É um Cristo quase secreto 
Que nasce das catacumbas 
Da Espanha não-oficial. 
Nasce da falta de pão, 
Nasce da falta de vinho, 
Nasce da funda revolta 
Contida pela engrenagem 
Da roda de compressão. 
Nasce da fé maltratada, 
Vagamente definida.

É um Cristo dos operários 
Atentos, em pé de greve, 
Filhos de outros operários 
Mortos na guerra civil. 
É um Cristo dos estudantes 
Sem dinheiro para as taxas. 
É um Cristo dos prisioneiros 
Que no silêncio cultivam 
A pura flor da esperança. 
É um Cristo de homens-larvas, 
Famintos, inacabados, 
Morando em covas escuras 
De Barcelona e Valência. 
É um Cristo da experiência 
De padres inconformistas 
Que não abençoam espadas 
Nem incensam o ditador. 
É um Cristo do tempo incerto. 
É um Cristo do vir-a-ser, 
Formado nos corações 
Da Espanha que não se vê.

(Do livro Tempo Espanhol)

Excerto

Sonhei uma vez que, desejando adotar
um menino, entro com Saudade num
orfanato madrileno. O diretor mostra-nos 
uma turma de garotos brincando
no pátio; observamo-los minuciosamente. 
Logo de início é eliminado um de aspecto 
desagradável, ríspido, fosco. Terminávamos
a operação de análise quando o diretor
aponta-nos exatamente o eliminado: 
“Por que no escojen Ustedes este niño?”
“Porque nos parece muy antipático”.
E ele indignado: “Cómo osan Ustedes hallar
antipático el bastardo de Franco?” Passei
o sonho a Rafael Alberti, que comenta: 
“Este es un sueño político”.

(Do livro Espaço Espanhol)