Embora o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) tenha possibilitado que as instituições de educação infantil públicas no país passassem a contar, nos últimos 17 anos, com um acervo de livros com quantidade e qualidade suficientes para a realização de atividades voltadas a contribuir para a formação de leitores, as coleções de livros disponibilizadas não contemplam as especificidades pedagógicas da primeira infância de zero a três anos. A constatação é da pesquisa "Literatura e primeira infância: dois municípios em cena e o PNBE na formação de crianças leitoras", realizada nos câmpus Marília e Presidente Prudente da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp). Além disso, o estudo evidenciou ainda que os docentes e responsáveis pelas bibliotecas de creches e berçários públicos não estão preparados para desenvolver atividades de formação de leitores com as crianças nessa faixa etária.
"O que nós notamos é que existe um discurso escolarizado sobre a importância da leitura, mas que ele não é cultivado na prática pedagógica", explica a professora de pedagogia da Unesp de Marília e coordenadora do projeto, Cyntia Graziella Girotto. Existe, segundo ela, um despreparo dos professores e cuidadores e de toda a equipe escolar para trabalhar com essas crianças pequenas não só em atividades relacionadas à formação de leitor, mas também para compreender as potencialidades das crianças. Durante o levantamento, no qual os pesquisadores analisaram o acervo de obras literárias do PNBE voltados à educação infantil, foi verificado que as coleções, compostas por mais de 150 obras, não atendem às demandas de crianças com idade abaixo de três anos em termos de projeto gráfico, editorial, estético e literário.
Na avaliação da pesquisadora, não é preciso estabelecer regras para a literatura infantil, mas há especificidades que não podem ser desconsideradas nos livros voltados à primeira infância. "As crianças nessa fase de desenvolvimento não leem do mesmo modo que uma criança em fase de alfabetização, tampouco como um leitor maduro. Mas já ensaiam, pelo contato direto com o livro, o que denominamos de ações embrionárias do ato de ler, atribuindo sentidos às ações iniciais dos modos de ler", pondera. Conduzido nos departamentos de Didática da Faculdade de Ciências e Letras e Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia o estudo teve alguns de seus resultados apresentados no 1º Seminário de Pesquisas sobre Desenvolvimento Infantil, realizado na Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo (Fapesp).
Práticas de leitura
Os pesquisadores também fizeram um mapeamento de como as crianças com até três anos têm acesso a livros nas instituições públicas de educação infantil com base em entrevistas com 520 professores, 60 coordenadores pedagógicos e 55 profissionais responsáveis pela biblioteca de 71 creches e berçários dos municípios de Marília e Presidente Prudente, no oeste paulista. Conforme explica Cyntia, foi constatado que cerca de 80% desse universo de instituições ainda não utiliza o acervo recebido do PNBE. "Em algumas instituições, as coleções ficam em estantes da biblioteca, armários ou em caixas perdidas na instituição ou dividem espaço com produtos e materiais de limpeza", conta.
"O pressuposto de que só a quantidade e a qualidade das obras são condições suficientes para o desenvolvimento de atividades de formação de leitores na educação infantil não é verdadeiro", avaliou Girotto. De acordo com a pesquisadora, uma das razões da subutilização dos livros da coleção do PNBE nas instituições avaliadas é o despreparo da equipe de docentes e responsáveis pelas bibliotecas para colocar em prática atividades voltadas à formação de leitor na primeira infância. "Falta a presença de um bibliotecário que compreenda as demandas pedagógicas da primeira infância", afirma.
Apesar disso, analisa, professores, coordenadores pedagógicos e profissionais responsáveis pelas bibliotecas das instituições participantes do estudo destacaram, durante as entrevistas realizadas pelos pesquisadores, que consideram importante o processo de ofertar e estimular o contato das crianças com o livro. "Mas muitos acreditam que só contar histórias ou ler em voz alta para as crianças é o suficiente", disse Girotto. Segundo a pesquisadora, o mediador de leitura pode e deve ler e contar histórias para as crianças. Mas também é preciso que a criança seja colocada em contato direto com o livro para tateá-lo, explorá-lo e imitar os adultos e, dessa forma, iniciar sua formação como leitor.
Educação literária
A pesquisa deverá resultar em dois livros com previsão de lançamento no 18º Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, que ocorrerá entre 11 e 14 de novembro em Fortaleza, no Ceará. O primeiro livro, com o título provisório "Literatura e Primeira Infância I: da contação de histórias e da proferição", discute a criança como ouvinte e a função do mediador. No segundo livro, também com o título provisório "Literatura e educação infantil: tateios, experimentação e sentidos dos livros para/com os pequenos", os pesquisadores pretendem discutir abordagens específicas do desenvolvimento infantil e as peculiaridades dos livros voltados à primeira infância, que devem valorizar a experimentação e ação direta da criança, ressaltou Cyntia.
"Todo o trabalho de formação de leitor na primeira infância pode ficar a desejar se não existirem livros adequados e não for feita uma adequada mediação e apresentação das publicações para as crianças", estimou a pesquisadora. Para ela, "as crianças precisam reconhecer e usar os livros tal como o adulto ou um leitor autônomo fazem, buscando compreender as informações em textos verbais ou imagéticos", indicou. Por meio do projeto, os pesquisadores pretendem estabelecer um programa de atividades de leitura com crianças com até três anos utilizando o acervo do PNBE e desenvolver uma proposta de formação de docentes.
Além disso, querem continuar os trabalhos nas instituições dos dois municípios com avaliações sobre o acesso aos livros, práticas de leitura literária nas unidades que utilizam o acervo do PNBE, sobre mediação dos professores e sobre os livros selecionados por eles. "As instituições de ensino infantil têm a responsabilidade de propiciar às crianças o contato com obras literárias da melhor qualidade, respeitando suas especificidades de desenvolvimento e sem subestimar sua capacidade intelectual", avalia. "Isso não significa antecipar a alfabetização, mas estabelecer diretrizes para a educação literária, desde a primeiríssima infância, sem apequenar os potenciais da criança", finaliza. (Supervisão: Helena Gozzano)