Às vezes a ciência nos surpreende pela quebra de expectativa. Ouvir falar, por exemplo, que uma nova espécie foi descoberta costuma nos fazer pensar que um grupo de pesquisadores se deparou com um animal nunca antes visto na mata e, apenas pela aparência, já identificou que se tratava de um achado. A realidade, porém, prova que uma grande novidade pode passar anos sendo observada como algo já conhecido até que alguém tenha a curiosidade e audácia de olhar mais perto.
Foi esse último processo que culminou na descoberta de uma nova espécie para o Brasil, o surucuá-de-murici (Trogon muriciensis), uma ave exclusiva de Alagoas que vive restrita à área da Estação Ecológica (ESEC) de Murici. Pelas análises iniciais, os pesquisadores estimam que a população não supere os 90 casais e, por conta disso, a espécie recém-descoberta já se torna "criticamente ameaçada” de extinção. O estudo foi publicado recentemente na revista científica Zoological Journal of the Linnean Society.
A resposta obtida pela pesquisa solucionou um mistério de décadas. Por muito tempo, essa ave foi classificada como o comum surucuá-de-barriga-amarela (Trogon rufus), um “primo” próximo de sua real identificação, mas que é avistado em muitos locais do Brasil e que, conforme as análises mais recentes provaram, é diferente da ave de Murici.
“Eu só tinha algumas gravações do canto dessas aves de Alagoas e, quando ouvi, sabia naquele instante que era algo muito estranho. Não podia ser a mesma a mesma espécie ou subespécie do restante da Mata Atlântica, mas a literatura científica dizia que era”, afirma o biólogo especialista em aves, Jeremy Kenneth Dickens, primeiro autor do artigo.
Durante nove anos, uma equipe de cientistas investigou esse grupo de aves, coletou amostras em vários locais da América do Sul e Central, analisou os exemplares em museus, fez um estudo dos cantos e conseguiu fazer uma análise genética de um dos indivíduos de Alagoas. O DNA provou o que a equipe já pressentia: tratava-se de uma nova espécie.
“Foi um resultado muito importante. Sabíamos que, provavelmente, seria uma espécie muito ameaçada, porque a Mata Atlântica do Nordeste foi destruída e o que resta é menos de 2% da área original. Isso é bem preocupante para as espécies endêmicas (exclusivas) de lá”, explica Dickens.
Gritador-do-nordeste e limpa-folha-do-nordeste estão entre as aves exclusivas dessa localidade que foram consideradas extintas após não serem vistas por anos
Além do surucuá-de-murici, ave que ainda não foi encontrada em nenhum outro fragmento do Brasil, outras 40 espécies também são exclusivas do Centro de Endemismo de Pernambuco ao qual a Estação Ecológica de Murici pertence. O ornitólogo e também autor do estudo, Luis Fábio Silveira, explica esse potencial do local para conservar animais tão únicos: “é uma parte da Mata Atlântica que ficou isolada de outras áreas de floresta da América do Sul e funcionou quase como uma ilha, proporcionando condições para o surgimento de novas espécies”, define.
"Embora seja uma unidade de conservação, a Estação Ecológica ainda não foi toda regulamentada. Há sempre o risco de fragilizar a proteção da área. Por isso, é importante regularizar a situação fundiária da Estação e trabalhar intensamente para que ela continue sendo protegida contra a caça e o desmatamento".— Luis Fábio Silveira (ornitólogo)
Silveira ainda explica que a descoberta faz parte de um grande projeto envolvendo a Mata Atlântica do Nordeste, em especial a de Alagoas. Apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a iniciativa reúne mais de 20 pesquisadores do Brasil e exterior. “Além disso, a comunidade local e as instituições do Alagoas formaram uma rede. Precisamos que mais alunos e mais pesquisadores se interessem nessa ave e nesse tema e esperamos que a descoberta continue fomentando estudos”, conta.
Para Dickens, o resultado do trabalho revela uma realidade: a diversidade ainda não foi toda explorada e o que achamos que conhecemos pode esconder novas descobertas.
“Quando você olha na coleção e na literatura científica, há muitas dúvidas, muitas populações não conhecidas ou variações que a gente não entende bem. É muito possível que existam espécies que a gente ainda não conheceu. E o Brasil ocupa uma posição muito importante mundialmente para a preservação da biodiversidade, porque é guardião de grande parte das espécies no planeta que fornecem a estabilidade dos ecossistemas, garantindo um futuro sustentável e bem estar humano”, conclui.