Os resultados de uma pesquisa conduzida pelo Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), ligado ao Instituto de Biociências da USP, e publicada na revista inglesa Nature Communications revelaram que há uma explicação genética para o fato de alguns dos bebês nascidos de gestantes que foram infectadas pelo Zika vírus no decorrer da gravidez nascerem com problemas neurológicos.
Sabe-se que 6% a 12% das crianças geradas por mulheres infectadas pelo vírus durante a gravidez nascerão com a síndrome, que inclui a microcefalia. Segundo o presente estudo, esta taxa de incidência de microcefalia pode ser devida a uma predisposição encontrada em cerca de 60 genes. “A maior parte desses genes é responsável pela regionalização, uma etapa importante do desenvolvimento neural, porque determina principalmente o crescimento da região lateral e cortical do cérebro”, explica a geneticista do CEGH-CEL Mayana Zatz, que coordena a investigação.
Também participaram do trabalho pesquisadores de outras instituições brasileiras, entre elas a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o IQ (Instituto de Química) da USP, as Universidades federais da Paraíba (UFPB), Rio Grande do Norte (UFRN) e Pernambuco (UFPE) e o Instituto Butantan, de São Paulo.
Gêmeos – A pesquisa teve início em 2016, com financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). O fato de que apenas algumas crianças de mães infectadas na gravidez nasciam com a síndrome gerou a hipótese do componente genético (DNA) e a proposta da investigação com gêmeos foi o caminho encontrado para a análise dos genes submetidos às mesmas condições de contato com o vírus.
“Nós examinamos ao todo os dados de 91 bebês de mães infectadas de vários Estados brasileiros e identificamos entre eles nove pares de gêmeos”, informa Mayana. Dos nove pares, dois eram casos de meninas monozigóticas, ou seja, idênticas, sendo ambas afetadas. Os sete casos restantes eram de gêmeos dizigóticos (irmãos que nasceram da mesma gestação, mas não possuem o mesmo componente genético) e, entre eles, apenas um tinha os dois irmãos, um menino e uma menina, afetados (concordantes), enquanto os outros eram todos discordantes, com um irmão afetado e o outro não. “Isso reforçava a hipótese de ter um componente genético aumentando o risco nas crianças que desenvolveram a síndrome”, afirma a pesquisadora.
Na primeira etapa, foi realizado o sequenciamento do exoma (fração do genoma que codifica os genes) de 18 bebês. Feita a partir de uma amostra de sangue, essa técnica refere-se ao sequenciamento de uma região do genoma (todo o código genético do organismo) que corresponde a menos do que 2% de sua totalidade, mas concentra a grande maioria das alterações responsáveis pelas doenças genéticas. “O objetivo foi avaliar se havia alguma variante genética presente apenas nos bebês afetados, mas não encontramos nada. Isso afastou a hipótese de a alteração estar relacionada a um único gene e sugere que se trata de uma herança complexa (fruto da combinação de genes), como é o caso da suscetibilidade ao diabetes, por exemplo”, disse a coordenadora.
Predisposição – Para dar prosseguimento ao trabalho, era necessário então proceder à análise diretamente em células neurais dos gêmeos dizigóticos discordantes. Novas amostras de sangue, de três desses pares (os pais dos outros três não autorizaram a coleta), foram usadas para a geração de células-tronco pluripotentes induzidas por humanos (hiPSC) –aquelas que podem produzir qualquer outro tipo de célula.
Depois de obtidas, essas hiPSC foram transformadas em células progenitoras neurais (NPCs) – as que dão origem ao cérebro e a outras partes do sistema nervoso central – em um experimento inédito. “É um processo muito difícil e o único caminho para estudar neurônios de bebês vivos”, destaca o bioquímico Sergio Verjovski-Almeida, pesquisador do Instituto Butantan e do IQ-USP, convidado, nessa fase, para colaborar no estudo.
Ele empregou a experiência de sua equipe no sequenciamento de RNA (ácido ribonucleico) – elemento celular que executa múltiplas funções vitais na codificação, decodificação, regulação e expressão de genes (no Instituto Butantan, a técnica é aplicada em estudos de esquistossomose e câncer) - para analisar possíveis diferenças nas NPCs das crianças afetadas e não afetadas.
“Observamos um conjunto de cerca de 60 genes com perfil alterado nas amostras dos bebês com microcefalia”, informa Verjovski-Almeida. Segundo ele, vários deles implicam no desenvolvimento do sistema nervoso, o que explicaria as características da síndrome. “Foi possível concluir também que as alterações já estavam presentes nos genes dos bebês que têm a doença antes do contato com o vírus, porque as NPCs dos bebês com microcefalia, mantidas em cultura, já apresentavam o perfil alterado de genes antes da infecção, quando comparado com as NPCs dos bebês sem microcefalia”, salienta.
Assim, a conclusão é que, se não tivessem sido expostas ao vírus Zica, as crianças não teriam desenvolvido a síndrome. “Trata-se de uma predisposição. Sem um fator desencadeante, não há manifestação da doença”, afirma o pesquisador. De acordo com ele, o prosseguimento do estudo visa à ampliação da amostra para pelo menos 50 bebês, a fim de se avaliar a ocorrência estatisticamente. “Para isso, serão necessários mais investimentos, porque a reprogramação da célula para que se torne NPC, além de difícil, é um processo caro”, afirma o cientista. O sequenciamento, por sua vez, não precisará mais ser feito. “Uma vez obtidos, os 60 genes tornam-se referência, e serão testados diretamente nas novas amostras”, diz.
Sobre as aplicações da pesquisa, Mayana explica que além de entender melhor o mecanismo que o vírus utiliza para infectar as pessoas e pensar em como reverter ou tratar a doença no futuro, outro objetivo é o desenvolvimento de um teste para a identificação das pessoas que têm o risco aumentado, para que elas recebam prioridade na hora de tomar uma vacina. “A gente poderia prevenir, assim, o nascimento de novos afetados”, conclui.
Simone de Marco Imprensa Oficial – Conteúdo Editorial Assessoria de Imprensa da USP