A concepção do negro submisso e incapaz de se organizar, reforça no estudante afrodescendente uma concepção negativa quanto à sua identidade. Da mesma forma, essa visão se multiplica na sociedade e a contribuição para essa distorção histórica vem de onde menos deveria: dos livros didáticos. É o que aponta uma pesquisa conduzida na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, realizada pela doutora em história Mírian Cristina de Moura Garrido.
O estudo foi publicado no livro “Escravo, africano, negro e afrodescendente — A representação do negro no contexto pósabolição e o mercado de materiais didáticos (1997- 2012)”, com apoio da Fapesp. Mírian verificou que nenhum dos autores estudados incorpora em suas obras as contribuições da historiografia mais recente, que busca entender as estratégias de sobrevivência adotadas pelos negros no período pós-abolição. “Dediquei atenção especial a três autores de livros didáticos campeões de vendas, com obras publicadas antes e depois de 2008. Queria saber se e como o processo de análise adotado a partir do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) influiu nos produtos finais”, disse Mírian. O PNLD transformou o Estado brasileiro em um dos maiores compradores de livros do mundo. Quando as editoras inscrevem suas obras para concorrer à aquisição, uma série de requisitos devem ser cumpridos.
E o edital define as características que podem contribuir para a aprovação ou a reprovação dos livros. Os autores escolhidos por Mírian para sua pesquisa foram Gilberto Cotrim, Mario Furley Schmidt e Antonio Pedro, cujas obras são utilizadas há muitos anos por professores. “A construção desse período é bastante diferente de um autor para outro, mas há características comuns. Todos destacam o fato de os ex-escravos não terem recebido qualquer tipo de reparação por parte do Estado, o que causou enormes dificuldades para sua inserção na sociedade. Mas nenhum dos autores incorpora em suas obras as contribuições da historiografia mais recente, elaborada principalmente na Unicamp, que buscou entender as estratégias de sobrevivência adotadas pelos negros no período pós-abolição”, afirmou Mírian. Como exemplo, a pesquisadora cita trecho de um livro de Antonio Pedro: “De modo geral, os antigos escravos não foram integrados no mundo do consumo para dinamizar o mercado, como pensam alguns historiadores.
Quando se empregavam, trabalhavam alguns dias, apenas o suficiente para a sobrevivência. Nada mais lógico, pois para eles o trabalho significava a lembrança de séculos de submissão e desgraça. Preferiram o ócio. Isso dificultou ainda mais sua integração social, pois ficaram à margem dos bens que a sociedade produzia.” Na interpretação de Mírian, essa afirmação está amparada na escolha historiográfica do autor, que ainda toma como cânones as formulações de Florestan Fernandes (1920- 1995), segundo as quais o negro não foi integrado à sociedade de classes. “Mas não coaduna com as formulações da historiografia mais recente. E, por isso, reitera uma concepção de negro submisso, de negro incapaz de se organizar, reforçando no estudante afrodescendente uma concepção negativa quanto à sua identidade”, observa. Para a pesquisadora, a ideia da não inserção no mercado de trabalho é desmentida por estudos como o do brasilianista George Andrews.
“Se na cidade de São Paulo não houve a integração de trabalhadores negros — não por incapacidade dos ex-escravos, mas pela grande disponibilidade de mão de obra europeia —, isso não ocorreu no Rio de Janeiro, que incorporou rapidamente trabalhadores negros em suas indústrias”, disse. Na avaliação de Mírian, a desatualização das obras dos três autores frente à historiografia produzida a partir da década de 1990 faz com que elas não cumpram plenamente as determinações da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003 — depois atualizada como Lei 11.645, em 10 de março de 2008 —, que tornou obrigatório, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Ela menciona, especificamente, o parágrafo primeiro do artigo 26-A, que dispõe sobre os aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir de dois grupos étnicos: a luta dos negros e dos povos indígenas, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
A partir da análise desses três autores, Mírian afirma que procurou discutir, em seu livro, o que oferecer aos estudantes e como aplicar a lei diante do material disponível — uma questão presente nas conversas dos professores de ensino fundamental e médio. De acordo com a pesquisadora, ela fez uma análise da Lei 10.639, depois atualizada para 11.645, e das normas definidas em seguida, que são ainda pouco conhecidas. “Essas diretrizes foram construídas no âmbito de uma intelectualidade negra militante e explicitam o que, na opinião desse grupo, deveria ser ensinado aos alunos, com exemplos de conteúdos e de dinâmicas de sala de aula”, disse. O livro, publicado pela Editora Alameda, tem 200 páginas e custa R$ 46. Mais informações em https://goo.gl/CDjXUf. (Com informações de José Tadeu Arantes, da Agência Fapesp)