Os anticorpos gerados durante uma infecção pela cepa ancestral do novo coronavírus, em grande parte dos casos, são capazes de neutralizar também a variante P.1, é o que sugere testes laboratoriais conduzidos no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP). A pesquisa, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foi divulgada na plataforma medRxiv e ainda está em processo de revisão por pares.
A variante brasileira P.1 surgiu em novembro de 2020 na cidade de Manaus, no Amazonas, e é considerada mais transmissível que a cepa antecessora. Os pesquisadores do estudo realizaram experimentos com plasma sanguíneo coletado entre maio e junho do ano passado de 60 voluntários infectados pela linhagem B.1.1.28 do SARS-CoV-2, a primeira identificada no país. Em 84% dos casos, os anticorpos presentes nas amostras coletadas após o 15o dia de infecção foram capazes de neutralizar a P.1 em culturas celulares. No entanto, os pesquisadores alertam que, apesar dos resultados, não é descartado o risco de reinfecção sintomática e até mesmo morte.
“Os resultados sugerem que os indivíduos infectados pela cepa ancestral do SARS-CoV-2 tendem a estar mais protegidos caso se deparem com a nova variante. Isso não elimina o risco de reinfecção, de doença sintomática ou mesmo de morte. De qualquer forma, traz uma mensagem de esperança num momento em que as coisas estão bem complicadas”, disse à Agência Fapesp Maria Cassia Mendes-Correa, professora da Faculdade de Medicina (FM-USP) e primeira autora do artigo.
O estudo foi conduzido no âmbito do Programa Corona São Caetano, uma plataforma on-line criada para organizar o monitoramento de forma remoto de moradores com sintomas de Covid-19 por equipes de saúde e a coleta domiciliar de amostras para diagnóstico.
Após receberem diagnóstico confirmado por teste de RT-PCR, todos os participantes do estudo com sintomas leves foram monitorados durante 42 dias e submetidos a coletas semanais de sangue para análise do perfil sorológico. As amostras de plasma passavam por um ensaio de vírus-neutralização (VNT), procedimento que envolve o cultivo do SARS-CoV-2 in vitro e, por isso, requer estrutura laboratorial com alto nível de biossegurança.
Ao contrário dos testes laboratoriais comuns, os que identificam a presença dos anticorpos IgM (o primeiro a ser produzido na fase aguda) e IgG (detectado no fim da fase aguda), a técnica VNT permite dosar no plasma a quantidade de anticorpos neutralizantes – capazes de se ligar à ponta da proteína spike, que está presente no SARS-CoV-2 e serve para se conectar com o receptor da célula humana e viabilizar a infecção.
“O anticorpo neutralizante é uma das principais ferramentas antivirais do organismo. Sua produção ocorre gradativamente até alcançar uma quantidade suficiente para abortar a infecção. Na maioria dos pacientes, a curva sobe nas duas primeiras semanas e depois permanece estável”, explica a pesquisadora à Agência Fapesp.
Nos ensaios realizados com a primeira linhagem, a B.1.1.28, os anticorpos presentes no plasma coletado de 56 participantes (90%) conseguiram neutralizar o vírus em cultura. Em contrapartida, no caso da variante P.1, amostras de 50 participantes (84%) foram satisfatórias no teste. Em ambos os casos, somente após o 15o dia de infecção houve quantidade suficiente de anticorpos neutralizantes para combater o vírus, sendo que o desempenho frente à cepa ancestral foi superior em todos os momentos avaliados.
“Importante ressaltar que os testes foram feitos com plasma coletado em 2020 e, portanto, não é possível afirmar que hoje essas pessoas estariam igualmente protegidas. Os anticorpos neutralizantes, assim como os do tipo IgG e IgM, tendem a decair com tempo”, esclarece à Fapesp a pesquisadora.
Com o objetivo de esclarecer essa dúvida, o grupo de pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical da USP está repetindo os ensaios com amostras de plasma coletadas dos mesmos voluntários 180 dias após a infecção. Os resultados dessa segunda etapa devem ser divulgados em breve. Além do mais, os pesquisadores estão testando o plasma coletado em 2020 contra outras variantes preocupantes que estão circulando no mundo, como a B.1.1.7 (identificada no Reino Unido) e a B.1.351 (da África do Sul).
Ainda que seja um dos principais meios do sistema imune para combater o vírus, os anticorpos neutralizantes não são o único, aponta Mendes-Correa. “A imunidade celular, mediada por linfócitos [células capazes de reconhecer e destruir o patógeno], é outro mecanismo envolvido na defesa frente ao SARS-CoV-2 e também constitui importante ferramenta nesse processo. Acreditamos que a combinação desses dois mecanismos resulta na nossa capacidade de nos livrarmos de patógenos”.
Foto: Acervo/IMT-USP