Notícia

O Popular (Goiânia, GO)

Pesca em águas turvas

Publicado em 20 novembro 2003

Em visita a Goiânia, há poucos dias, anunciou o secretário nacional de Pesca que o governo federal pretende quase dobrar a capacidade brasileira de produção de pescado (das 950 mil toneladas atuais para 1,6 milhão), assim como triplicar, até 2006, o consumo nacional, que hoje está em 7 quilos por ano (O POPULAR, 9/11). Para tanto, vai liberar US$ 500 milhões para a construção de 204 barcos pesqueiros e recursos "sem limite" para que o programa de agricultura familiar invista em aqüicultura e piscicultura marinha. Tudo isso será discutido na Conferência Nacional de Pesca, no fim do mês. Não será tarefa fácil. Talvez seja possível uma expansão pronunciada nas aqüiculturas - apesar dos muitos problemas que já representam. No que depender, entretanto, de pesca marítima, com certeza será dificílimo, improvável mesmo. Uma edição da revista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no início deste ano, divulgou trabalho em que 150 especialistas de 40 instituições nacionais afirmaram que "dificilmente será possível aumentar de forma significativa e não predatória a quantidade de pescado marinho produzida pelo Brasil" na zona econômica exclusiva. Na verdade, disseram eles, na região Sul-Sudeste já é indispensável reduzir a captura das três espécies mais exploradas, para não ameaçá-las de extinção, enquanto do Rio de Janeiro à Bahia oito a dez espécies mais exploradas estão sendo capturadas "além da capacidade de reposição" (para uma dessas espécies, o mero, a captura já está proibida). Não bastasse, o altíssimo nível de poluição química, por óleos e despejo de esgotos na costa agrava o problema. Sem falar na questão econômica, já que "mais de 90% da receita dos barcos pesqueiros vai para o pagamento do arrendamento". Na verdade, não é um problema apenas brasileiro. Segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, com o aumento da produção de pescado, de 19 milhões de toneladas anuais em 1970 para 80 milhões em 2003 - sem falar em mais 50 milhões de toneladas/ano nas aqüiculturas (90% nos países subdesenvolvidos) -, cerca de metade dos estoques marinhos já se esgotaram e outros 25% estão sendo sobre explorados. Mais grave ainda, do que é capturado, cerca de 20 milhões de toneladas são desperdiçadas, devolvidas ao mar, por tratar-se de espécies não comercializáveis, capturadas nas redes de arrastão (que são uma das causas mais graves dos problemas). Há subsídios demais para a pesca (US$ 50 bilhões/ano, concedidos principalmente pelos Estados Unidos e Canadá), diz a FAO. Barcos demais. Investimentos demais em novas tecnologias que acentuam a sobre exploração. Por isso mesmo, a União Européia já propôs reduzir em 80% no Mar do Norte a pesca do bacalhau, do hadoque e da pescada, três das espécies mais apreciadas e consumidas. Porque os estoques estão se esgotando. Biólogos da Universidade de Dolhousie, em Halifax, Canadá, lembram que em 50 anos a sobrepesca fez desaparecer nove a dez espécies de predadores de maior porte. Na verdade, outros estudos mostram que nove de cada dez espécies de todos os peixes já estão extintas. Na Europa, os estoques de enguias estão reduzidos a 1% do que eram em 1980. Ainda assim, a pesca em geral movimenta US$ 75 bilhões ao ano, com 39 mil embarcações em atividade. Diante desse quadro, como se vai fazer para o Brasil aumentar tanto sua produção? As espécies da zona exclusiva estão em dificuldade. E, como lembra o especialista Alfredo Sadler, também não há cardumes para os nossos barcos no alto mar brasileiro: "Se houvesse, russos e asiáticos já estariam pescando aí". Nesses mares tropicais, há muitas espécies, mas com poucos exemplares. Também nas aqüiculturas - o setor de produção de carnes que mais cresce no mundo, 10% ao ano - as preocupações são muitas. Segundo a mesma FAO, já é acentuada a perda de serviços naturais, principalmente mangues, os mais valiosos de todos (são o berço da vida no mar). O uso descontrolado de antibióticos gera graves problemas. A invasão de espécies exóticas dificulta o manejo e a reprodução. A introdução de soja transgênica na alimentação de peixes levanta numerosas interrogações. Todos esses temas não nos são estranhos. Já somos grandes exportadores de camarão (90 mil toneladas este ano, previsão de 160 mil em 2005), mas com sérias questões por equacionar. Estamos ampliando as criações de peixes (e algumas espécies podem precisar de 5 quilos de ração para produzir 1 quilo de carne comercializável). Quase 10% do nosso pescado de água doce vem da Amazônia (100 mil toneladas anuais). Mas também lá os problemas estão crescendo. Da mesma forma que no País todo, para os pescadores artesanais, que não conseguem competir com os barcos de arrastão. Mas esses pescadores são 94% do total da categoria. Não faltam problemas, portanto, para discutir na conferência nacional. Até aqui, entretanto, tem-se fugido nas discussões a todos os complicadores mencionados linhas atrás. E enquanto for assim, não se vai caminhar para soluções verdadeiras. Vai-se ter um agravamento da sobreexploração. O acúmulo de problemas ditos ambientais. Dificuldades cada vez maiores para os pescadores artesanais, principalmente da costa. A ciência precisa ter uma participação forte na discussão. Para enfatizar todas essas questões. Ou então não se terá soluções reais. WASHINGTON NOVAES é jornalista