Biomaterial deverá ser usado em procedimento que repara má-formação nas mãos de portadores de síndrome rara
Uma técnica cirúrgica inovadora está sendo testada no país para corrigir a fusão de dedos de crianças portadoras da chamada síndrome de Apert, que acomete um a cada 70 mil nascidos no mundo – não há números de incidência no Brasil porque a notificação da doença não é compulsória. Graças a uma parceria entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e o Hospital Sobrapar – Crânio e Face, de Campinas, no interior paulista, pedaços de pele de tilápia foram utilizados nos procedimentos a fim de melhorar o processo de reconstituição dos dedos e otimizar a recuperação dos pacientes. As primeiras cirurgias ocorreram em setembro deste ano.
De acordo com o cirurgião plástico Edmar Maciel, presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), de Fortaleza, e coordenador-geral da pesquisa com pele de tilápia, realizada em conjunto com a UFC (ver Pesquisa FAPESP no 280), houve redução no tempo da cirurgia, menor morbidade do tecido enxertado e melhor pega (ou aderência) do enxerto de pele humana na região em que os dedos são separados. O uso do biomaterial também diminuiu em 50% o número de curativos, causou alívio nas dores do pós-operatório e baixou os custos do tratamento. Maciel é coautor de quatro pedidos de patente relacionados ao preparo de peles de tilápia para uso médico, entre eles o tratamento de queimaduras e ferimentos e procedimentos cirúrgicos ginecológicos.
O também cirurgião plástico Cássio Eduardo Raposo do Amaral, vice-presidente do Sobrapar, que liderou a equipe cirúrgica em Campinas, informa que os cinco procedimentos realizados até quarta-feira (27/10) fazem parte de um total de 10 programados para 2021. "O objetivo é comparar os desfechos com os de outro grupo de 10 pacientes operados sem a técnica. Já observamos, por exemplo, que as crianças sentem menos dor e a troca de curativos é feita a cada cinco dias em vez de ser diária”, detalha. "Os resultados serão compilados e publicados em artigos.”
Raposo do Amaral conta que em 2018 desenvolveu, com sua equipe, um protocolo para a separação de dedos de portadores de Apert para maximizar o movimento e a função das mãos. O trabalho, que já rendeu dezenas de publicações, ganhou o reforço do biomaterial desenvolvido por Maciel e o grupo cearense de pesquisadores.
A separação cirúrgica dos dedos deixa uma região sem pele, chamada de área cruenta. Antes do uso da pele de tilápia, a pele retirada do abdômen da própria criança era enxertada ali para reconstituir o tecido. "A perda desses enxertos era grande. Por isso, estávamos procurando algo como um curativo biológico que maximizasse essa pega da pele enxertada”, descreve Raposo do Amaral. "No fim do ano passado, a cirurgiã plástica do nosso grupo, Thaís Miguel do Couto, e a mãe de um paciente sugeriram usar a pele de tilápia para preparar o ferimento antes do enxerto. Conversei, então, com o Maciel, que é um amigo de minha família há muito tempo, para estabelecermos uma parceria. A Thaís submeteu um projeto de pesquisa e o Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas [Unicamp] aprovou o uso da técnica em pacientes”, comenta Amaral.
Tecnologia à flor da pele
O material utilizado nas cirurgias é produzido e fornecido pelo banco de peles da UFC. A pele do peixe passa por um processo de preparação em que é liofilizada (desidratada) e esterilizada. Depois, o tecido é embalado a vácuo e irradiado com raios gama, para eliminação de microrganismos. Essa última parte do processo ocorre no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), em São Paulo, que é parceiro da UFC e do IAQ na produção do biomaterial.
Segundo Maciel, a liofilização é vantajosa em vários sentidos. Por meio desse processo, o material pode ser armazenado à temperatura ambiente, sem necessidade de refrigeração, o que facilita e barateia o transporte. Por ser desidratada, não está sujeita à proliferação de bactérias. "Outra vantagem é que toda essa preparação deixa a pele liofilizada livre de glicerol, componente que causa dor quando em contato com a pele ferida ou exposta”, aponta o cirurgião cearense. "E a hidratação, necessária para uso final nas cirurgias, é simples de ser feita: basta mergulhar o material por 10 minutos em soro fisiológico.”
O médico do IAQ conta que a pele de tilápia evoluiu de um curativo para tratar queimaduras e ferimentos para um biomaterial que prepara a pele para receber enxertos, seja na ginecologia – em cirurgias para reconstrução vaginal –, seja no tratamento de Apert. "Em feridas profundas, o colágeno da pele da tilápia é absorvido e integrado no leito da ferida. Esse colágeno cria uma matriz dérmica para receber o enxerto com a pele do próprio paciente, algo que acontece 10 dias após a aplicação do tecido do peixe”, explica.
Com a retirada da pele de tilápia, o ferimento está preparado para receber pedaços de pele mais finos do que o tecido abdominal, normalmente usado nos procedimentos convencionais. "A nova técnica facilita a integração de tecidos estruturalmente mais simples – como a pele retirada do couro cabeludo ou do antebraço do paciente – com o leito da ferida. Isso aumenta o sucesso da pega da pele e evita uma grande cicatriz na barriga”, destaca.
Fonte: Revista Fapesp