Um comportamento raro em peixes, embora conhecido em baleias, lobos, golfinhos e alguns outros poucos mamíferos, foi registrado pela primeira vez nos poraquês, peixes-elétricos da Amazônia que podem dar descargas elétricas de até 860 volts.
A tática, chamada de predação social, consiste em realizar busca e ataques coordenados, a fim de capturar presas e beneficiar todo o grupo. O estudo – financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Smithsonian’s Global Genome Initiative, National Geographic Society e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – foi publicado nesta quinta-feira (13) na revista Ecology and Evolution (https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ece3.7121).
Os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI), em Manaus, e da Smithsonian Institution, nos Estados Unidos, descreveram o comportamento em um lago da Estação Ecológica Terra do Meio, no Pará. Apesar de conhecidos por caçar solitariamente à noite, um grupo de cerca de 100 poraquês da espécie Electrophorus voltai, cada um com até 1,8 metro de comprimento, foi filmado caçando em grupo.
Ao amanhecer e no pôr do sol, os poraquês migram para uma parte mais rasa do lago, cercam cardumes de pequenos peixes, conhecidos como piabas ou lambaris, e emitem fortes descargas elétricas. As presas saltam para fora e são devoradas quando voltam atordoadas para a água.
“Eu estava em campo, realizando um outro trabalho, quando vi aquela enorme concentração de poraquês. De tempos em tempos, eles davam descargas e as piabas pulavam. Aquilo foi, literalmente, chocante. Nos mais de 250 anos desde que esse animal foi descrito pela primeira vez, esse comportamento nunca havia sido registrado”, conta Douglas Bastos, primeiro autor do trabalho e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia de Água Doce e Pesca Interior (Badpi) do Inpa, sob orientação dos pesquisadores Lúcia Rapp Py-Daniel e Jansen Zuanon. A dupla há anos estuda a diversidade de peixes na Amazônia e também são coautores do trabalho.
Douglas faz parte do grupo liderado por Carlos David de Santana, egresso do Inpa e atualmente pesquisador-associado do National Museum of Natural History, da Smithsonian Institution, em Washington. Em 2019, a equipe descreveu que há pelo menos três espécies de poraquês, duas são novas, entre elas a E. voltai, que realiza a predação social e tem a maior descarga elétrica já registrada em um animal, 860 volts.
Os trabalhos integram o projeto “Diversidade e evolução de Gymnotiformes”, financiado pela Fapesp e coordenado por Naércio Menezes, professor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP).
“Nossa hipótese inicial é que locais como esse, com grande abundância de presas e abrigo para dezenas de poraquês, favoreçam a caça em grupo e o desenvolvimento da estratégia de predação social. Por isso, é possível que o fenômeno ocorra em outros locais e até mesmo com outras espécies de poraquê. Só não foi registrado ainda”, explica Santana.
Para tentar localizar novos pontos de ocorrência desses eventos, agora os pesquisadores trabalham na criação de uma plataforma on-line, o Projeto Poraquê (http://www.projetoporaque.com/), em que moradores dos nove países da Amazônia possam submeter vídeos de outros casos de predação social por poraquês além de obter mais informações sobre esses animais tão fascinantes. A iniciativa visa envolver a comunidade nos rumos da pesquisa com poraquês e deve guiar as novas coletas de campo do grupo.
Predadores crepusculares
Douglas Bastos observou o fenômeno pela primeira vez em 2012, quando fez os primeiros registros com apenas uma câmera. Demorou mais dois anos para que conseguisse organizar a logística para ir novamente ao local, a cerca de 500 quilômetros de Altamira, no Pará, percurso que leva aproximadamente cinco dias para ser feito de barco, pelo rio Iriri. Pegando carona num pequeno avião que passou pelo local e dessa vez mais bem equipado, Bastos conseguiu observar e filmar o grupo em diversos momentos ao longo de 72 horas.
Na maior parte do dia (entre 7h30 e 17h), e durante toda a noite (19h30 às 5h), os animais repousam na parte mais funda do lago (3 a 4 metros de profundidade). No alvorecer e no crepúsculo, porém, eles migram para uma área mais rasa, com menos de um metro de profundidade. Nesses horários, as piabas estão indo para o leito se alimentar ou voltando para a margem para descansar. É o momento em que os poraquês atacam.
“Enquanto a espécie [poraquê] normalmente caça solitariamente durante a noite, aproveitando que as presas estão repousando, esse grupo é de predadores crepusculares: caçam nos horários de sol nascendo ou se pondo, quando as presas estão começando o dia ou encerrando as atividades”, conta Bastos.
Os poraquês nadam em círculos em volta de um cardume, concentrando o maior número possível de piabas. Aos poucos, pequenos subgrupos de dois a 10 indivíduos separam parte do cardume e conduz as presas para a margem. Então, um ou mais poraquês desse subgrupo dispara uma forte descarga elétrica, fazendo com que as piabas saltem, atordoadas pelo choque.
“Disparados simultaneamente por 10 indivíduos, em teoria esses choques podem gerar uma descarga de 8.600 volts!”, diz de Santana.
Os peixes-elétricos então abrem a boca e engolem o máximo de presas que conseguem. Outras espécies de peixes carnívoros, como o tucunaré (Cichla melaniae), podem se aproveitar das presas atordoadas. Após cinco a sete ataques em uma hora, o grupo inteiro retorna para o fundo do lago.
Monitoramento via transmissor
Os pesquisadores agora pretendem coletar alguns animais e implantar um pequeno transmissor sob a pele, que emitirá sinais de rádio, por sua vez captados por uma antena em terra firme. Assim, a movimentação dos poraquês poderá ser monitorada de forma contínua, permitindo determinar padrões e mesmo possíveis hierarquias dentro do grupo.
Além disso, o grupo planeja medir a potência das descargas elétricas emitidas, a fim de saber tanto a voltagem daquelas disparadas para atordoar as piabas quanto se há também emissão de descargas fracas, que os peixes-elétricos de modo geral usam para se comunicar. Assim, será possível saber se os animais se comunicam para coordenar os ataques.
Por fim, a coleta de amostras genéticas permitirá verificar se os indivíduos são parentes, como costuma ocorrer com os mamíferos que caçam em conjunto, que normalmente são irmãos liderados por um genitor mais velho.
“A descoberta é um lembrete da nossa falta de conhecimento adequado sobre o modo de vida dos peixes, mesmo das espécies mais emblemáticas da região”, destacou Jansen Zuanon, coautor do trabalho e pesquisador de longa data dos peixes amazônicos. A pesquisadora Lúcia Rapp acrescentou ainda que “a confirmação do comportamento de predação social levanta várias questões importantes que só podem ser respondidas estudando os poraquês em seu ambiente natural”. Os pesquisadores do Inpa enfatizaram a importância de mais estudos comportamentais em campo para que se possa entender melhor a diversidade de peixes.
Os autores concluem reiterando que o trabalho além de contribuir para o entendimento adequado da biologia de peixes e da história natural dos peixes elétricos, serve também como uma oportunidade para se pensar na infinidade de descobertas que a diversidade amazônica ainda guarda e em tudo que se pode perder se não buscarmos formas de preservá-la.
O artigo Social predation in electric eels, de Douglas A. Bastos, Jansen Zuanon, Lúcia Rapp Py-Daniel e Carlos David de Santana, pode ser lido em:
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ece3.7121