Notícia

Jornal da USP

Passos recuperados

Publicado em 26 outubro 2003

São fenícios e persas, grecomacedônios, romanos, judeus samaritanos, bizantinos, árabes e normandos (cruzados europeus), que viveram na costa mediterrânea de Israel, em épocas sucessivas. Em busca de vestígios de grande talento artístico e atividades comerciais, cerca de 16 pesquisadores brasileiros têm viajado para Israel, uma vez por ano, para desenterrar da areia e do cascalho 2.500 anos de história do sítio arqueológico conhecido pelo nome de Apollonia-Arsuf, localizado no município de Herzliya, 15 quilômetros ao norte de Tel-Aviv, local de um antigo porto no Mediterrâneo Oriental, com 18 séculos de ocupação histórica. O Projeto Apolônia é um programa de pesquisas e formação em história antiga e arqueologia, que realiza expedições brasileiras para escavações e atividades científico-culturais no sítio de Apollonia, através de parceria entre a USP, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-GS) e a Universidade de Tel-Aviv. Os pesquisadores são coordenados pelo professor Francisco Marshall, da UFRGS, que enviou a primeira expedição a Israel em 1996. É um projeto internacional e interinstitucional que busca relacionar problemas e temas investigativos das áreas de história antiga e medieval com a prática de pesquisa arqueológica em campo. O Projeto Apollonia tem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Pró-Reitoria de Graduação da USP, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Universidade de Tel Aviv e da Prefeitura da cidade de Herzliya. O sítio arqueológico de Apolônia está incrustrado na planície de Sharon. Foi nesse território que o rei inglês Ricardo Coração de Leão derrotou o sultão muçulmano Saladino, em 1191. As escavações têm trazido à tona momentos da história que comprovam que houve civilizações ocupando a região cinco séculos antes de Cristo. Tem uma opulenta vila marítima romana e um castelo da época das cruzadas. Segundo Maria Beatriz Borba Florenzano, professora de arqueologia clássica do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP e coordenadora adjunta do projeto, o objetivo é conhecer como se deu a ocupação grega, bizantina, fenícia e romana e oferecer aos alunos de pós-graduação uma oportunidade de trabalho de campo em um sítio antigo do Mediterrâneo. "Os alunos ficam mais sensibilizados para realizarem o trabalho de pesquisa e conseguem interpretar com mais facilidade documentos antigos, compreendendo também como se constrói o conhecimento em arqueologia", explica. O trabalho de campo da equipe de pesquisadores brasileiros não é fácil. Sob um sol escaldante de 40°C e umidade relativa do ar muito baixa, pois é uma região desértica, o trabalho só pode ser feito na época do verão, já que no inverno a área é varrida por chuvas e tempestades de areia. As escavações acontecem embaixo de tendas, para proteger os pesquisadores do sol. SURPRESAS Embora o sítio arqueológico apresente muitos vestígios, na maioria das vezes os pesquisadores são obrigados a remover dois metros de entulho até alcançar os objetos antigos de maior valor. Mesmo assim, para eles tudo vale a pena, já que em cada balde de entulho retirado pode vir uma grande surpresa de tirar o fôlego. Como é o caso do esqueleto de um cão que pertenceu à época dos cruzados. Ou das mais de 600 pedras de balista, um tipo de catapulta, lançadas pelos muçulmanos contras as muralhas do castelo. Ou ainda a cabeça de uma estatueta do deus fenício Baal, do século 6 antes de Cristo, um fragmento de cerâmica grega com inscrição do século 5 antes de Cristo, cerâmicas helenísticas, lamparinas do século 2 da era cristã, uma agulha de marfim do período romano, fragmentos de mosaico bizantino exaltando o cristianismo em terminologia paga do século 4, e uma lamparina árabe com ilustrações do século 8. Cada momento da escavação passa por um rigoroso controle científico. Tudo o que é encontrado é imediatamente registrado em computador. Os arqueólogos trabalham o tempo todo com um detector de metais, porque a área é riquíssima em moedas. No término do trabalho é feita a lavagem, seleção, numeração, identificação, classificação e restauração do material recolhido. Maria Beatriz explica que os alunos-pesquisadores participam de cada etapa sob a orientação do professor de Universidade de Tel-Aviv Israel RolI, um mestre na classificação das descobertas, que faz questão de levar os alunoc a sessões em laboratório para estudo do material. "Todas as fases da arqueologia clássica podem ser presenciadas pelos alunos-pesquisadores", afirma Maria Beatriz. O que mais chama a atenção no sítio arqueológico, segundo Maria Beatriz, é o Castelo de Arsuf, da época dos cruzados, e a vila marítima romana, com um porto, onde foram encontrados, sob a água do mar, tanques de tingimento de tecidos na cor púrpura, extraída de um molusco. Esse conjunto arquitetônico, segundo as pesquisas, tem um rigoroso alinhamento com os pontos cardeais, que o faz posicionar-se de forma obliqua em relação ao litoral. Isso mostra que, apesar de Apolônia não ser um centro político como a vizinha Cesaréia, seguia o planejamento urbanístico típico das melhores cidades do período romano. "Em meio às ruínas do castelo já foram resgatados um fragmento de coluna, um capitel corínto-romano e outro bizantino", explica a professora. Apolônia foi rebatizada pelos árabes com o nome de Arsuf e, graças às obras de fortificação, pôde resistir durante dois anos ao cerco dos cruzados. Os cavaleiros cristãos impuseram seu domínio sobre toda a costa mediterrânea da Palestina em 1099. Arsuf sobreviveu a todas as tentativas de captura, que só ocorreu em 1101, quando Balduíno, o rei cristão de Jerusalém, com a ajuda de uma poderosa frota genovesa, submeteu a cidade, após três dias de combates furiosos, numa das maiores batalhas das cruzadas, que levou à morte 9 mil homens. Em 1187, foi reconquistada pelo poderoso Saladino e voltou ao controle dos cristãos em 1191, quando Ricardo Coração de Leão marchou em direção ao sul transportando catapultas e outras máquinas de guerra. Milhares de cavaleiros europeus cavalgavam atrás do rei inglês, cercados por um grande número de infantes. Fazer arqueologia no Oriente Médio tem proporcionado aos alunos-pesquisadores das universidades brasileiras uma visão mais prática da arqueologia clássica. Embora a professora Maria Beatriz incentive a ida de estudantes da USP para essa experiência, ela acredita que as escavações não poderão ser ampliadas devido à crescente urbanização da cidade e à construção de novos condomínios na área, que tem uma belíssima vista para o mar. Mas, enquanto a nova cidade não cresce definitivamente, a antiga, aquela que viu passar por suas vielas uma parte significativa da história, continua a revelar seus segredos.