A biografia “Revolucionário e gay – A vida extraordinária de Herbert Daniel: Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018. 378 p.), escrita por James Green, dá elementos para entender mais uma decisão crucial em sua vida: a opção pela luta armada. É necessário situá-la no contexto. Retração no bem-estar social em período de recessão (como na crise da estabilização de 1964-1967) gera expansão na repressão policial, minimalismo governamental provoca maximalismo penal. Mas não é só o contexto econômico o que importa. O debate político o influencia.
Eram “guias espirituais” o sucesso da Revolução Cubana e as ideias de Régis Debray, um jornalista francês marxista, sobre estratégias de guerrilha, isso sem referir à Frente Nacional para a Libertação do Vietnam, cujos combatentes eram também chamados vietcongues. Foi um exército formado por norte-vietnamitas para lutar na Guerra do Vietnã junto ao exército do Vietnã do Norte contra a coalizão formada pelos Estados Unidos e pelo governo do Vietnã do Sul. Era composto principalmente por milícias aptas para táticas de guerrilha, embora contasse também com unidades militares perenes.
A Revolução Cultural Chinesa também era parte daquele contexto. Foi uma profunda campanha político-ideológica levada a cabo a partir de 1966 na República Popular da China, pelo então líder do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-tung. Acompanhada por vários episódios de violência, instigada principalmente pela Guarda Vermelha, grupos de jovens organizados nos chamados “comitês revolucionários” atacavam aqueles suspeitos de deslealdade política ao regime, à figura de Mao e ao Maoísmo, a fim de consolidar (ou restabelecer) o poder do líder onde fosse necessário.
Grupos de trotskistas como a Polop [Organização Revolucionária Marxista – Política Operária] também expressavam uma crítica à transformação do leninismo em ortodoxia, durante o período stalinista, quando o termo marxismo-leninismo acabou por substituir leninismo. A denominação “marxista-leninista” passou a designar a doutrina oficial da União Soviética, bem como dos partidos membros da Internacional comunista como o PCB [Partido Comunista Brasileiro] do qual a Polop discordava ou possuía dissidentes. De fato, o termo refere-se à interpretação stalinista do pensamento de Lenin. Tal interpretação seria alçada à condição de única possível e verdadeira, sendo qualquer outra, como a dos trotskistas, portanto, estigmatizada como herética.
Segundo as crenças marxistas de Lenin, a sociedade russa não podia se transformar diretamente do seu estado atual de capitalismo tardio para o comunismo, mas deveria primeiro entrar em um período de transição socialista. Para isso, Lenin acreditava uma ditadura do proletariado ser necessária para reprimir a burguesia e desenvolver uma economia socialista. Para Lenin, a democracia representativa dos países capitalistas tinha sido usada para dar uma ilusão enquanto mantinha a ditadura da burguesia.
A interpretação de Lenin do socialismo era centralizada, planejada e estatista, com a produção e a distribuição estritamente controladas. Seus apelos ao “controle operário” dos meios de produção não se referiam ao controle direto das empresas por seus trabalhadores, mas ao funcionamento de todas as empresas sob o controle de um “Estado operário”, dominado pela vanguarda ou nomenclatura do partido único. Isso resultou em dois temas conflitantes no pensamento de esquerda: o controle dos trabalhadores populares e um aparato estatal centralizado, hierárquico e coercivo.
Sua crença em um Estado forte excludente da burguesia entrava em conflito com as opiniões de marxistas europeus socialdemocratas. Defendiam um governo parlamentar democrático em que o proletariado detivesse a maioria. Além disso, Lenin foi o primeiro líder marxista a elevar o papel da violência como instrumento revolucionário.
Debray, preso na Bolívia após entrevistar Che Guevara, um argentino ex-estudante de Medicina e uma inspiração adicional para Daniel, embora tenha sido morto em 8 de outubro de 1967, forneceu uma estratégia de luta armada a ser adotada pelos membros da Polop para derrotar o regime militar brasileiro. Baseados no sucesso de Fidel Castro e seus guerrilheiros em Cuba, os escritos de Debray sistematizavam a teoria do foquismo: um pequeno grupo de revolucionários poderia criar “focos” e estabelecer bases rurais para desmoralizar um regime ditatorial, inspirar as massas camponesas a se levantar e, em última instância, derrubar o governo reacionário. A frase-resumo era: “o pequeno motor [a guerrilha] ativa um maior [as massas]”.
Com todo esse caldo de cultura política superficial de esquerda os insurgentes rebeldes dos anos 60 imaginavam se tornar a voz de uma frente unida de trabalhadores da cidade e do campo, preparados para tomar o poder. A doutrina marxista da luta de classes turvava mentes e corações não possibilitando enxergar o predominante no Brasil: o sindicalismo pelego (exceto pelas duas greves de Contagem e Osasco devido ao arrocho salarial) e a ausência de camponeses possuidores de terra, dada a inexistência de qualquer reforma agrária na história brasileira. Trabalhadores já começavam a ser expulsos para as cidades.
O ritmo da revolução e o imediatismo da luta armada polarizaram os trinta dirigentes representantes de pequenos grupos de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, reunidos para o IV Congresso Nacional da Polop. Para aprovação de um documento com a reafirmação da possibilidade de uma “revolução socialista” semelhante à de Cuba no Brasil se dividiram em uma votação 16 contra 14. Por um voto, houve uma cisão na O.
Foi a primeira de uma série de dissidências e cisões em diversas organizações trotskistas. A crítica à “imobilidade” da liderança da Polop refletia o sentimento dominante entre os estudantes radicais no Brasil e no mundo em 1967-68. Clamavam: “a revolução está ao alcance; as condições são favoráveis; a hora é agora; não se pode perder o bonde-da-história”. O movimento estudantil estava nas ruas contra a censura, a política educacional e a natureza repressiva do regime militar. A situação econômica era vista como uma crise geral do capitalismo. Não se enxergavam e nem ao País. Em 1970, o recenseamento indicava 93.139.037 habitantes.
“No início de 1968, a O. provavelmente tinha cerca de 50 integrantes, com número equivalente de simpatizantes assíduos dispersos pelos movimentos estudantis e trabalhistas em Belo Horizonte. Além disso, tinha contatos e aliados espalhados em diversas cidades de Minas Gerais e um aglomerado de revolucionários com ideias afins no Rio” (p. 75).
Recrutas do movimento estudantil uniam-se à organização. Alguns ex-operários eram vistos com prova do “apoio da classe operária”. Um ex-sargento expulso da Força Aérea em 1964, assim como o ex-capitão Carlos Lamarca, ambos eram vistos como capazes de fomentar a organização entre soldados rasos, embora nos anos anteriores o ex-sargento havia unido forças com outros ex-membros do Exército em uma tentativa fracassada de organizar uma insurreição armada.
Estado policial é uma organização estatal fortemente baseada no controle da população (e, principalmente, de opositores e dissidentes) por meio da polícia política, das forças armadas e outros órgãos de controle ideológico e repressão política. Historicamente, é um tipo de Estado em que a autoridade é isenta de qualquer limite formal ou controle jurisdicional.
No Estado policial, uma evolução do típico estado absolutista monárquico, o bem-estar dos súditos, a prosperidade estatal e a ordem pública não seriam assegurados pela dinâmica das forças sociais, mas por um rigoroso controle administrativo de caráter autoritário, vertical e paternalista. A extensão dos poderes do Estado seria moralmente justificável por sua finalidade: a de trazer bem-estar e felicidade aos habitantes do país. Só o Estado absoluto poderia dispor do poder e dos meios necessários, inclusive a coação física, à realização de tal finalidade, por não estar sujeito às suas próprias leis. Tal concepção resulta em uma confusão entre fins (a felicidade dos súditos) e meios (o poder do Estado). Desta forma, ao Estado Policial sucede o Estado de Direito.
No contexto contemporâneo, o conceito assume uma conotação negativa: como um Estado marcado pelo uso intenso das forças da ordem ou de polícia secreta. A ideia de Estado Policial aparece, então, ligada à ideologia do totalitarismo.
Totalitarismo (ou regime totalitário) é um sistema político no qual o Estado, normalmente sob o controle de uma única pessoa, político, facção ou classe social, não reconhece limites à sua autoridade e se esforça para regulamentar todos os aspectos da vida pública e privada. Ele é caracterizado pela coincidência da coerção autoritária, onde os cidadãos comuns não têm participação significativa na tomada de decisão do Estado, e da ideologia de coesão: um esquema generalizado de valores promulgado por meios institucionais para orientar a maioria, senão todos os aspectos da vida pública e privada.
A ideia de totalitarismo como poder político “total” através do Estado foi formulada em 1923 como uma crítica ao fascismo italiano, compreendendo-o como um sistema fundamentalmente diferente das ditaduras convencionais. O termo depois ganhou conotações positivas nos escritos do principal teórico do fascismo. Ele usou o termo “totalitário” para se referir à estrutura e metas do novo Estado fascista. “Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado.”
Na verdade, conceito de totalitarismo surgiu nos anos 1920 e 1930. A visão de ele ter sido elaborado somente depois de 1945 é empregada como parte da propaganda antissoviética durante a guerra fria.
Ao lutar aqui contra um Estado Policial, os trotskistas brasileiros se viam como parte do trotskismo internacional. Este defendia sua leitura do marxismo contra a burocratização do Estado Operário e a política nacionalista em vez da Internacional, a partir da ascensão de Josef Stálin ao poder em 1924 na União Soviética. Trotsky desenvolve a ideia de Revolução Permanente e da Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado. Segundo Trotsky, quanto mais tarde um país conhecesse seu capitalismo industrial, mais conservadora seria a burguesia local, porque o medo ao proletariado seria mais forte se comparado à sua oposição à casta dos oligarcas governantes ou à casta dos militares.
Além disso, já não existia no século XX uma classe de pequenos e médios artesãos para fornecer a mão-de-obra para uma revolução burguesa. Devido à modernização industrial, a única força de trabalho disponível nas cidades era constituída pelo proletariado. Daí à Revolução Permanente: a burguesia já não é capaz de fazer sua “revolução burguesa”, logo, tem de ser a classe operária a encarregar-se das tarefas democráticas.
Ela não se contentará com o programa “liberal-burguês” e irá logo começar a pôr em prática o “programa socialista”. Assim, a revolução será “permanente”, porque, pela sua própria dinâmica, tenderá a evoluir para posições cada vez mais radicais.
O que acontece se a revolução ocorrer em país com condições econômicas ainda não maduras para o socialismo? Em um caso desses, a revolução só se manterá se tiver a ajuda de revoluções socialistas vitoriosas em países desenvolvidos. Assim, a revolução deve ser “permanente”, não só no aspecto do aprofundamento, mas também do alargamento internacional. Se uma revolução socialista acontecer em um país subdesenvolvido e não se expandir a países desenvolvidos, para o apoiar, tenderá a “degenerar”.
Em um país subdesenvolvido, o desenvolvimento cultural do proletariado será muito diminuto. Por isso, no “Estado Operário” irão surgir os “burocratas” da nomenclatura, tal como surgiram também nos sindicatos e partidos operários. O risco é a burocratização do Estado do socialismo realmente existente levá-lo a se tornar um Estado Policial e/ou Totalitário.
A rebeldia no final dos anos 60 no Brasil contra o Estado Policial chama atenção por seu caráter juvenil, sendo os guerrilheiros principalmente jovens estudantes universitários “urbanoides”, e sua brevidade. Começa em 1967/68 e em 1970 quase todos já tinham sido presos, torturados e assassinados, fora os exilados por força da violência brutal repressiva da polícia política e das Forças Armadas.
Quantos eram os guerrilheiros da luta armada contra essa força do Estado brasileiro?Impossível saber por seu caráter clandestino e por razão de segurança nem os próprios militantes conheciam os demais a não por encontros em “pontos” para troca de informações e/ou documentos da organização. James Green afirma: “embora os militantes da VPR considerassem o recrutamento de Lamarca um sinal de seu sucesso político e da crescente força do movimento revolucionário, vale lembrar que provavelmente não havia mais de 5.000 militantes nem centenas de outros apoiadores nos cerca de dez grupos envolvidos na luta armada que operavam no Brasil nos anos 1960 e o início dos anos 1970” (p. 119).
Depois de dois anos e sete meses de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) confirmou, em seu relatório final, 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país. Entre essas pessoas, 210 são desaparecidas. Foram mortos cerca de 10% dos guerrilheiros por essas estimativas.
O limite das relações humanas é determinado pela biologia. O ser humano tem capacidade de manter uma rede de amizade composta por, em média, 150 pessoas. Conhecido como “número de Dunbar”, ele foi estipulado, na década de 90, pelo antropólogo inglês Robin Dunbar. O professor da Universidade de Oxford, é um dos mais importantes estudiosos da Psicologia Evolutiva. Segundo ele, esse número se mantém estável desde os primórdios da humanidade e não mudou com a popularização das redes sociais digitais.
Considerando o recrutamento de guerrilheiros apenas na vanguarda do movimento estudantil (e a dupla contagem), a rede de relacionamentos não devia ser muito extensa, se comparada à dimensão do território e da população brasileira na época – cerca de 90 milhões de habitantes.
O fracionamento dissidente – antes das tentativas desesperadas de fusões por questão de sobrevivência – também era visível. Por exemplo, “como o Colina [Comandos de Libertação Nacional], a VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] fora fundada em parte por dissidentes da Polop em São Paulo, que haviam rompido com a organização no fim de 1967. Em janeiro de 1968, um grupo de ex-membros das Forças Armadas uniu-se ao Movimento Nacional Revolucionário (MNR), que era, em grande parte, composto por antigos soldados e marinheiros que apoiaram as reformas de Goulart e tornaram-se mais radicais após terem sido expulsos do Exército em 1964” (p. 117).
O corpo de participantes com experiência militar, evidentemente, era muito reduzido. Mas contribuiu para levar os valores morais da casta dos guerreiros para os guerrilheiros urbanos inspirados por guerrilha rural em Cuba e Bolívia: fama, glória, coragem e honra. O culto à personalidade,tradicional na esquerda, era mantido com o destaque dado não só a Lamarca como a alguns poucos trabalhadores-estudantes ou líderes sindicais das greves de Contagem e Osasco em reação ao arrocho salarial do regime militar.
Por fim, chama a atenção as mulheres como uma minoria. “Marcelo Ridenti [“O Fantasma da Revolução Brasileira”. São Paulo: Unesp/Fapesp; 1995] calculou que 15% a 20% dos participantes das organizações da luta armada eram mulheres, embora um número muito menor ocupasse posições de liderança. Quase todos os líderes estudantis cujo movimento abalara o país no ano anterior eram homens e, portanto, ainda era novidade ver mulheres como ativistas proeminentes em 1968 e 1969” (p. 99). E gays eram muito menos…
Em 1959, ao tomar o poder em Cuba, Fidel declarou que “um homossexual não pode ser um revolucionário”. Data de 1971 a infeliz resolução do Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura de Cuba onde se decretou: “os desvios homossexuais representam uma patologia antissocial, não admitindo de forma alguma suas manifestações, nem sua propagação, estabelecendo como medidas preventivas o afastamento de reconhecidos homossexuais artistas e intelectuais do convívio com a juventude, impedindo gays, lésbicas e travestis de representarem artisticamente Cuba em festivais no exterior.” Foram então estabelecidas penas severas para “depravados reincidentes e elementos antissociais incorrigíveis”.