O retorno ao modelo de substituição de importações, com uma política industrial de caráter intervencionista, é a principal proposta do estudo "Liberalização, estabilidade e crescimento: balanço e perspectivas da experiência brasileira nos anos 90", divulgado pelo economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp).
Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do governo de José Sarney, fez a pesquisa em conjunto com Ricardo de Medeiros Carneiro, livre docente do Instituto de Economia e integrante do grupo de economistas do Partido dos Trabalhadores (PT).
O objetivo é garantir que o País cresça mais do que os 3% registrados na média histórica levantada no estudo, que organizou dados econômicos dos anos 90, período da liberalização econômica. "Não há como resolver a questão do saldo produtivo pelo mercado, temos de criar condições", afirma Belluzzo.
Para chegar a esse diagnóstico, os pesquisadores partiram da principal constatação do estudo, de que o Brasil terminou os anos 90 com uma economia de baixo dinamismo e fragilidade externa, apesar do controle da inflação.
O responsável por esse resultado foi o modo equivocado como o Brasil se inseriu no processo de globalização, o que inclui, por exemplo, abertura de mercado sem controle por parte do Estado.
"Podemos ver que temos uma economia de baixo dinamismo pela pequena taxa de crescimento, que não superou os 3% na média histórica. Para um país como o nosso, pode não ser uma tragédia porque, bem ou mal, o Brasil está crescendo, mas é pouco para dar conta de problemas sociais. Estamos na armadilha do baixo crescimento", diz Carneiro, subcoordenador da pesquisa.
FRAGILIDADE
A fragilidade externa do País fica evidente, segundo os pesquisadores, ao se olhar os índices referentes aos anos 90. "Começamos os anos 80 com um grande déficit em conta corrente, e terminamos a década com o déficit zerado. Em 1993, ele era de US$ 600 milhões e terminamos 2001 com um déficit de US$ 24 bilhões", destaca Belluzzo. A divida interna, que era de R$ 64 bilhões, passou para R$ 640 bilhões.
"O regime da globalização tem uma característica intrínseca que é ser mais instável que outros regimes, do ponto de vista das taxas de juros e de câmbio, da flutuação dos fluxos de capitais e um país que tem uma vulnerabilidade externa como o Brasil se torna mais frágil nesse contexto", explica Carneiro. Os ciclos são mais curtos e produzem mais estragos na reversão, apontaram eles na pesquisa.
Para Belluzzo, a Argentina é um exemplo extremo dessa situação, enquanto o Brasil foi mais flexível. "Os argentinos nunca tiveram estabilidade econômica, eles conseguiram apenas controlar a inflação, mas tiveram um aumento na instabilidade macroeconômica, registraram um crescimento rápido logo no inicio, depois recessão, volta do crescimento, e mais quatro anos de recessão", lembra Belluzzo.
Quando o Brasil fez a desvalorização, conseguiu amortecer melhor o choque e a transmissão para economia doméstica foi menos traumática, explicaram os pesquisadores. Eles ainda disseram que a Argentina sempre adotou de maneira literal as normas do FMI.
ABERTURA RUIM
A política de abertura econômica nos anos 90 resultou em um prejuízo para a balança comercial que não se resolverá mexendo apenas no câmbio, dizem os pesquisadores. "Fez-se um buraco na estrutura produtiva que não se resolve com o cambio", sustenta Carneiro.
"Qualquer crescimento um pouco mais forte vai implicar em importação e, conseqüentemente, geração de déficit comercial, uma equação medonha porque não temos estrutura produtiva no País", acrescenta Carneiro.
"Não vai adiantar desvalorizar o cambio porque ninguém vai querer produzir aqui, depende de controle de tecnologia, escala de produção", argumenta. "A abertura sem critério e a valorização do câmbio criou uma estrutura desprotegida e perversa para quem está produzindo aqui", critica Belluzzo.
"Hoje, vivemos de exportar avião e produtos da agroindústria", ressalta Belluzzo. Segundo ele, 80% das empresas superavitárias pertencem à indústria intensiva de recursos naturais ou agroalimentar. Os setores mais deficitários, segundo indicaram os dados da pesquisa, são eletroeletrônico, química e de bens de capital.
"Precisamos de saldo comercial para continuar pagando os recursos de longo prazo. Ou você faz isso exportando, o que é limitado por conta da estrutura atual, ou substituindo exportações", afirma Carneiro.
A solução para a questão do saldo produtivo é adotar a substituição, segundo eles, principalmente nos setores mais deficitários, investindo em política industrial, para remontar cadeias produtivas.
SEM ESTRUTURA
A saída pelo aumento da exportação é mais difícil porque a abertura desestruturou a indústria brasileira, apontaram os índices levantados no estudo. "Hoje o Brasil não é capaz de gerar superávit expressivo para pagar o retorno dos investimentos externos, não consegue gerar recursos com as exportações, o que o endivida mais", aponta Carneiro.
Em 1993, havia um superávit de pouco mais de US$ 13 bilhões, e em 2001, depois de seis anos de déficit, o superávit registrado foi de apenas US$ 2.6 bilhões, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento. Indústria e Comércio.
O estudo coordenado por Belluzzo formará uma grande banco de dados para alimentar análises e previsões sobre a economia e sua inserção na globalização.
"É uma informação organizada e permanentemente atualizada, dividida por fonte, períodos, tema, etc, que fará um diagnóstico detalhado da economia brasileira desde a época da abertura, nos anos 90", explica ele.
O estudo tem em seu banco de dados atualmente 7,5 mil séries econômicas, 220 publicações, e engloba 41 instituições. A pesquisa foi dividida em temas como abertura financeira, relações de comércio, política fiscal, indústria, agricultura, mercado de trabalho, emprego e distribuição de renda, entre outros.
Os pesquisadores contaram com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Para montar o banco de dados, foram consultados bancos de diversas instituições, como o Banco Central, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, e outros privados. Primeiro, ele será disponibilizado eletronicamente para a Unicamp e. no futuro, para a sociedade em geral. Os pesquisadores querem avaliar o impacto das mudanças ocorridas nos 90 na economia e no bem-estar da população.
SALÁRIOS
O baixo crescimento registrado nos anos 90 trouxe como conseqüência uma baixa participação do salário na composição da distribuição de renda do trabalho, constatou o estudo. "Na distribuição, a proporção salário caiu, é uma das mais baixas já registradas. A proporção relativa ao lucro também diminuiu, só aumentaram os juros", comenta Belluzzo.
Segundo Carneiro, se for considerado apenas a renda do trabalho, a situação não melhorou nem piorou. Ele destacou também que há uma mudança na estrutura do emprego, que agora conta com um processo generalizado de terceirização. Ao contrário do que se pensa, esse processo afetou mais os profissionais qualificados, conforme atestou a pesquisa.
"A insegurança aumentou porque não há garantias, apesar de se continuar como assalariado", diz Belluzzo. "Quando ocorre uma flutuação econômica, a facilidade com que a pessoa qualificada é demitida é enorme", completa. Daí o Brasil apresentar um alto número de empreendedores, mas com empresas com alta taxa de mortalidade.
"Essa é uma tendência em outros países, mas não ocorre na escala em que acontece aqui", conta Belluzzo. "O sistema reproduz a estrutura social no País. Aqui vemos o crescimento de serviços sociais e pessoais privados, como empregada doméstica, porteiros, mordomos, personal trainers, pessoas que levam cães para passear", enumera o economista.
"São serviços voltados para quem é rico, o que não ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, que também apresenta taxa alta de terceirização", explica.
EMPREGO
Também é grave a taxa de desemprego aberta, que vem crescendo em torno de 7%, índice que era de 3% na década de 80. "Isso é mais grave para o pessoal de 15 a 20 anos, faixa onde mais aumentou o desemprego e também caiu o número de pessoas que estão procurando trabalho", ressalta Carneiro.
"Os conservadores dizem que essas pessoas não estão procurando emprego porque estão na escola, mas a taxa de morte violenta nessa faixa etária é uma barbaridade", relaciona o economista.
O debate sobre o modelo econômico adotado pelo Brasil deverá ser um dos pontos altos das próximas eleições e haverá uma polarização entre os candidatos, acreditam os economistas Belluzzo e Carneiro.
"Teremos dois projetos que vão se expressar no papel do Estado, discutindo privatização, crescimento do consumo privado com exclusão, contrapondo a um modelo que parte para a inclusão, o consumo social", aponta Belluzzo.
Os economistas alinharam a esquerda à proposta de consumo social, com ênfase na administração de serviços públicos, como energia e transporte, nas mãos do Estado, e maior intervenção do governo na elaboração da política industrial.
ELEIÇÕES
Os economistas indicam que Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, Anthony Garotinho (PSB), e Ciro Gomes (PPS), pré-candidatos à Presidência, são mais alinhados com essa linha.
Já o modelo do consumo privado, que está em vigor atualmente, deverá ser o adotado por Roseana Sarney (PFL). Já em relação a José Serra (PSDB), eles apontam que as alianças a serem feitas pelo pré-candidato poderão fazê-lo seguir a linha do consumo privado.
"Se perdemos mais quatro anos sem definir orientações gerais que resolvam o problema do déficit da conta corrente e façam um rearranjo na relação Estado-sociedade, vamos ter uma deterioração maior", diz Belluzzo. "Como não acredito que os Estados Unidos voltem a crescer nas taxas anteriores, as reformas vão ficar muito difíceis com a economia mundial crescendo menos e teremos de adotar medidas mais drásticas para aumentar o saldo comercial", aponta.
Notícia
Correio Popular (Campinas, SP)