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Boletim Behaviorista

Para além do laboratório e das hashtags: Como o movimento “Vidas Negras Importam” contribuiu para redução de atitudes racistas? (1 notícias)

Publicado em 07 de julho de 2020

Nas últimas semanas temos acompanhado pelo mundo uma série de protestos contra a discriminação e o preconceito racial. Esses protestos foram uma reação à morte de George Floyd, um homem afro-americano, que foi brutalmente sufocado durante uma abordagem policial. Infelizmente, não se trata apenas de um caso isolado, mas sim, mais um caso que se soma a milhares. No Brasil, temos alguns exemplos: Agatha, Evaldo, João Pedro, Kauê, Douglas, entre muitos nomes. A quantidade de vidas negras sendo tiradas, e de maneira banal, motivou movimentos antirracistas a levantarem a hashtag “Black Lives Matter” (sigla BLM – tradução livre “Vidas Negras Importam”). O movimento BLM teve início em Julho de 2013, em protesto a absolvição de um policial acusado de atirar e matar um jovem negro que estava desarmado. “Vidas Negras Importam”, para muito além de uma hashtag, tem como objetivo explicitar o racismo estrutural na sociedade e contribuir para a formação de uma identidade da população negra, a qual, por anos, resiste à opressão mortal (Sawyer e Grampa, 2018).

Afinal, o que é racismo estrutural? Parece só mais uma palavra difícil inventada por acadêmicos, mas na verdade, trata-se de um conceito que denuncia a forma que a sociedade está organizada, onde as práticas institucionais, históricas, culturais (e até mesmo interpessoais) colocam um grupo étnico, ou social, em uma posição de sucesso, ao mesmo tempo que, subjuga e prejudica outros grupos (James, 1996; Ray, 2009). Você tem dúvidas de que existem práticas que privilegiam um grupo em detrimento ao outro? Faça buscas por comerciais, filmes/novelas e etnia de indivíduos que ingressaram no ensino superior, entre os anos 1990 a 2010¹, e tente me responder: Quantas bonecas negras estão nas propagandas de brinquedos? Quantos famílias negras estão no comercial de Margarina? Quantos super-heróis negros estavam nos filmes da Marvel? Quantos negros protagonizaram novelas? Quantos negros ingressaram no ensino superior? Em contrapartida, negros continuam sendo maioria nas prisões e em mortes violentas.

Toda essa estrutura social, e institucional, que apresenta o negro imerso no submundo e o branco se sobressaindo pode ter sim um efeito significativo em nossas atitudes em relação ao negro. Atitudes são avaliações afetivas (favoráveis ou desfavoráveis) que apresentamos diante de algo que consideramos relevante (Gawronski & Bodenhausen, 2006). Essas atitudes podem ser explícitas (apresentadas de forma pública) ou implícitas (mantidas de forma privada ou apresentadas automaticamente). Para entender melhor, suponhamos que se eu perguntar a uma pessoa abertamente racista, o que ela acha de uma pessoa negra, provavelmente ela irá fazer uma avaliação explícita negativa (exemplo, “Eu não gosto de pessoas negras”). Contudo, muitas punições sociais estão associadas à apresentação pública de uma atitude racista (atualmente, boicotes de grandes marcas, demissões, perda de seguidores), por esse motivo, muitas pessoas não apresentam essas avaliações desfavoráveis em público, mantendo-as para si mesmo. Ainda assim, essas atitudes podem aparecer automaticamente em comentários, como por exemplo: “Eu não sou racista, mas não gosto de negros” ou “Essa negra sim é bonita”. Inclusive, pessoas que não se consideram racistas, podem apresentar atitudes implícitas com vieses desfavoráveis em relação às pessoas negras. Já parou para contar quantas vezes você pensou: “nossa, esse cabelo está tão armado, poderia pentear, né?”. Agora vamos para um exemplo bem prático: imagine que você vai pedir emprego em um escritório e vê um branco e um negro de terno, quem você pensa que é o chefe? Provavelmente, mesmo que de forma implícita, todos nós já tivemos atitudes racistas.

Vamos agora focar na questão das atitudes implícitas, pois sendo essas atitudes automáticas e, muitas vezes, não apresentadas de forma pública, podemos concluir que é impossível identificá-las, ou então, tentar modificá-las. Certo? Errado! A psicologia trouxe grandes contribuições para descrever o fenômeno das atitudes implícitas e tem tentado encontrar meios de reverter essas atitudes. Uma dessas contribuições é o desenvolvimento de instrumentos que acessam atitudes implícitas, como, por exemplo, o Implicit Attitudes Test – tradução livre de Teste de atitudes implícitas- (IAT –Gawronski & Bodenhausen,2006). Resumindo de forma simples, o IAT é um teste de associação, onde o indivíduo tem um tempo restrito para responder, por esse motivo, ele não tem muito tempo de pensar sobre a associação apresentada. Neste instrumento, são apresentados blocos de tentativas no computador e, em cada bloco, uma palavra é colocada no centro da tela (por exemplo, a palavra negro) e dois adjetivos são colocados um em cada canto superior da tela (exemplo, bom e ruim). No primeiro bloco, negro – ruim é considerado correto (essa contingência é considerada consistente com a história de vida de um indivíduo ou a cultura presumida de um povo). No segundo bloco, essa contingência é invertida, ou seja, negro – bom é considerado correto (contrário ao estereótipo). O tempo que o participante demorou para responder de acordo com a contingência do primeiro e no segundo bloco é comparado, portanto, se o participante responder mais rápido a relação negro-ruim, isso pode indicar um viés desfavorável em relação ao negro.

Alguns estudos realizados em laboratório têm tido resultados promissores na redução de atitudes racistas, utilizando procedimento de associação de faces negras com atributos positivos (por exemplo, Olson & Fazzio, 2006; Walton, 2011; Dasgupta, Desteno, Williams, & Hunsinger, 2009). Contudo, ainda há poucas evidências de intervenções baseadas em laboratório reduza atitudes preconceituosas por longos períodos (Sawyer & Grampa, 2018). Isso, provavelmente, ocorre porque quando o indivíduo sai do laboratório, ele retorna para o mesmo ambiente cultural que reproduz as mesmas contingências que contribuíram para a formação de suas atitudes implícitas. Portanto, a mudança não pode acontecer apenas no laboratório e em sessões individuais, mas também, em um nível social e cultural. Sendo assim, movimentos antirracistas, como por exemplo BLM, podem ser uma solução em potencial para a redução de atitudes racistas em um nível social.

Mas, será que os movimentos antirracistas contribuem de fato para reduzir atitudes racistas? Vamos tentar responder essa questão com um estudo realizado por Sawyer & Grampa (2018), o qual examinou atitudes raciais de 1.209.204 participantes, antes e depois do movimento BLM, entre os anos de 2009 e 2016. A amostra foi divida em dois períodos: 4,5 anos antes do movimento BLM e 3 anos depois do início do BLM. Os dados eram coletados online e os interessados em participar acessavam o site do Projeto Implícito (https://implicit.harvard.edu/implicit/takeatest.html). Cabe destacar que foram considerados apenas os dados de indivíduos que se denominaram negros ou brancos para a análise de dados (que eram os grupos de interesse). Durante o acesso ao site, os participantes responderam questionários explícitos e completaram tarefas no IAT (aquele teste descrito acima). O questionário explícito era composto por uma escala likert de 7 pontos, onde o lado esquerdo denota que o participante preferia fortemente afro-americanos, o lado direito denota que o participante preferia fortemente europeus-americanos e o centro significava ausência de preferência Já a tarefa implícita no IAT era composta por sete blocos onde categorias raciais – negro e branco- foram associadas com palavras positivas e negativas. Ao associar mais rápido negro com negativo do que com positivo, presume-se que aquele participante possui um viés desfavorável em relação às pessoas negras.

O que será que esses autores encontraram? Analisando o dados de forma geral, independente do período ou etnia, os resultados indicaram que TODOS os participantes apresentaram viés favorável em relação às pessoas brancas, tanto no questionário explícito quanto no questionário implícito. Ou seja, existe ou não um viés favorável ao branco? Essa amostra da população americana está mostrando que existe sim. Mas, não desanime! Os dados analisados em relação ao período (antes e depois do BLM) demonstraram que o viés implícito a favor do branco diminuiu durante o período do movimento BLM, enquanto que o viés explícito também diminuiu, ainda que ligeiramente. Além disso, as linhas de regressão demonstraram que antes do BLM havia uma tendência de aumento implícito e explícito do viés em favor do branco, contudo durante o BLM, essa tendência foi revertida, resultando na diminuição do viés pró branco. No período onde a luta BLM atingiu o auge, os resultados demonstraram uma diminuição estatisticamente significativa em relação ao viés implícito e explícito pró branco. Considerando as mudanças nas atitudes implícita de acordo com a etnia dos participantes, os resultados indicaram que os brancos se tornaram menos implicitamente pró-brancos durante o BLM,enquanto os negros mostram poucas mudanças. Quanto às atitudes explícitas, brancos se tornaram menos pró-brancos e negros se tornaram menos pró-negros, cada um movendo para uma posição igualitária do questionário.

Os achados de Sawyer & Grampa (2018) demonstram que é possível reduzir atitudes racistas quando os movimentos sociais reivindicam a visibilidade de grupos que estão em uma posição de desigualdade. Contudo, uma reação ao BLM foi a ALM (All lives Matter – tradução Todas As Vidas Importam). ALM foi uma bandeira erguida por conservadores, com intuito de dizer que não se deve dar preferência a vida de um grupo. Não obstante, o que os dados demonstram é que dentro da sociedade, existem sim, preferências pré-estabelecidas. Para além de preferências, temos estatísticas alarmantes que demonstram um descaso das instituições e uma tentativa ativa de aniquilação da população negra (Almeida, 2019; Sinhoretto, Schlittler, & Silvestre, 2016) . Movimentos sociais não almejam aumentar preferência pela vida das pessoas negras, mas sim lutar para que a justiça atue de forma equitativa para pôr fim a esse genocídio. Portanto, a luta não pode parar! Apoiar o movimento BLM, não significa predileção, mas sim que TODOS merecemos respirar livremente, sendo assim, não vamos deixar que estruturas de poder, que atuam de forma desigual, nos sufoquem.

¹ O período citado é utilizado apenas para exemplificar um período onde preferências por brancos na mídia era vedada mais explicitamente e as estatísticas apontavam que jovens que ingressaram ensino superior eram maioria brancos. Não significa que essa preferência não se manteve após 2010, mas é importante ressaltar que, após muita luta dos movimento negros, temos visto com mais frequência pessoas negras representadas em comerciais, produtos, em filmes e em outros espaços. Além disso, a política nacional de cotas contribuiu para aumento de negros que ingressaram no ensino superior.

Créditos de imagem: https://esportes.yahoo.com/noticias/banksy-apoia-a-derrubada-de-estatuas-de-escravocratas-com-novo-desenho-152454331.html

Para saber mais:

Sawyer, J., & Gampa, A. (2018). Implicit and explicit racial attitudes changed during Black Lives Matter. Personality and Social Psychology Bulletin, 44(7), 1039-1059.

Olson, M. A., & Fazio, R. H. (2006). Reducing automatically activated racial prejudice through implicit evaluative conditioning. Personality and Social Psychology Bulletin, 32(4), 421-433.

Gawronski, B., & Bodenhausen, G. V. (2006). Associative and propositional processes in evaluation: an integrative review of implicit and explicit attitude change. Psychological bulletin, 132(5), 692.

Escrito por Denise Aparecida Passarelli, mestranda do Programa de Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São Carlos, no Laboratório de Estudos sobre Comportamento Humano (LECH). É membra do CLiCS – Grupo de pesquisa em Cultura, Linguagem e Comportamento Simbólico e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

“As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”