Em janeiro de 2023 foi lançado o Palmeiras Pay, conta digital e cartão de crédito com a marca da Sociedade Esportiva Palmeiras, ligado a agentes do setor financeiro: Pefisa, Crefisa, Elo e Allianz Seguros.
Apresentamos, diante do fenômeno, uma breve discussão sobre como a modernização constante do futebol e a alta capilarização das finanças aproveitam-se da ação do torcer para impor novas práticas consumidoras a um público-alvo, tendo como plataforma a identificação com o clube para aplicar experimentações financeiras. Esse fato caracteriza a expansão da atual condição da globalização e a ação de seus agentes em busca de novos níveis de investimento.
Nos diz Giddens (1991), que nas condições da modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico, ou seja: é moldado em termos e influências sociais exógenos a si. É o que nos parece ocorrer com os clubes de futebol e seus territórios (a materialidade e as práticas sociais que a permeiam) diante da massiva exposição de seus símbolos em serviços e mercadorias que não se relacionam diretamente com o esporte. As estruturas se escondem sob uma nova aparência e racionalidade que ocultam as relações distanciadas que determinam sua natureza. O torcedor, nesse ambiente, é incorporado a uma lógica consumidora, de apreciação de um espetáculo, de aquisição de mercadorias e de afirmação de status (CURI, 2012).
Fintechs: a financeirização informatizada
O meio técnico-científico-informacional (SANTOS, 2002) é reconhecido pelo aparelhamento de uma grande quantidade de dispositivos tecnológicos e a sua dispersão e difusão nas relações de trocas de informação nos territórios. O surgimento das fintechs encontra-se associado nesse arcabouço de expansão da tecnologia nas engrenagens do sistema financeiro. O suporte realizado pelo avanço dos dispositivos eletrônicos, da informática, e das novas redes de comunicação facilitou a imersão e o adentrando do sistema financeiro nas estruturas dos sistemas tecnológicos.
A palavra fintech corresponde a uma soma das palavras financial e technology. O termo tem sua origem na década de 1990, com as investidas do Citigroup sobre um consórcio de tecnologia de serviços, mas só voltou a ganhar força nos debates a partir de 2010 (LAI; SAMERS, 2020). A situação da intersecção entre o mundo financeiro e as novas tecnologias da informação demarcou como o acirramento desses serviços obteve expansão nos meios de trocas nas relações comerciais, impulsionada pela globalização.
As fintechs se difundem associadas aos discursos de melhorias na aceleração dos processos burocráticos bancários, na redução das taxas de juros, e na realização inteiramente digital para os processos de trâmite de serviços. Essa situação traz à tona acerca do debate da hipercapilarização do crédito e a implementação das tecnologias financeiras no território, demonstrando como a consagração do seu programa está inserida em um ambiente apologético discursivo de melhorias de acesso aos serviços bancários.
No ano de 2020, o montante de fintechs existentes no Brasil alcançava a marca de 771 corporações, número que compreende a soma de fintechs propriamente ditas e plataformas dedicadas à eficiência financeira. As empresas atuantes nesse modelo de serviço financeiro se enquadram nas seguintes categorias: crédito, pagamento, gestão financeira, empréstimo, investimento, financiamento, seguro, negociação de dívidas, câmbio e multisserviços.
Diante de um cenário de expansão das redes de capilarização financeiras no território, o papel das fintechs, entre as novas formas de acesso dos populares aos meios tecnológicos dos bancos, se estabelece como uma lógica de agentes de desintermediação e/ou reintermediação financeira (LANGLEY e LEYSON, 2020; LAI e SAMERS, 2020). Esse debate caminha sob o viés de solução que estes serviços podem acarretar, uma vez que seu funcionamento pode conduzir a um acesso mais rápido e dinâmico da população em trâmites de contratação bancária, ou pelo contrário, pode transformar o setor bancário e estender as fronteiras do capitalismo financeirizado. Essas são as condições citadas anteriormente no discurso da desintermediação ou da reintermediação. São duas formas de se pensar a equiparação e os ajustes para o acesso bancário nas situações cotidianas. Dessa forma, entender como um clube de futebol está inserido na lógica de movimentação das fintechs, traz à tona como as capilaridades do sistema financeiro estão a se imbricar em diversas situações.
A expansão do circuito creditício junto à tecnologia se apropria de diversas simbologias da sociedade e de suas identidades populares. O futebol entra nessa nova rodada de imersão do mercado financeiro, e o Palmeiras, um dos clubes de maior representatividade, é um exemplo desse fato. O cartão de crédito lançado em associação com a Pefisa (braço financeiro do grupo Pernambucanas) caracteriza o elemento das fintechs e como as mesmas se capilarizam nas ações sobre o território nacional. A empresa Pefisa tem em sua origem um novo formato de serviços na dispersão de crédito e novas alternativas para formas de desenvolvimento e gestão de produtos como cartões, empréstimo pessoal, seguros e a Conta Digital Pernambucanas. A associação das duas empresas financeiras (Crefisa e Pefisa) alcançou a marca da representatividade no mercado através de sua reificação de valorização no cartão de nomenclatura Palmeiras Pay.
O lançamento do cartão (em parceria com a operadora Elo) apresentou em seu discurso de marketing que ao adquiri-lo o torcedor terá acesso facilitado na disponibilidade de serviços de pagamentos do programa de sócio-torcedor, na compra de produtos na loja Palmeiras Store (produtos oficiais do clube), na aquisição de apólices junto a seguradora Allianz (empresa que, através da aquisição de naming rights, patrocina o estádio palestrino), a disponibilização de crédito sem juros e acesso a descontos em ingressos para shows, entre outros itens destacados como benéficos para o cliente da nova associação financeira. Dessa forma, nota-se que a Pefisa insere-se numa localidade com um vasto campo de sócios e pessoas que torcem pelo clube, buscando expandir sua operação particular de distribuição de crédito e empréstimo.
A psicosfera, o consumidor e o clube-mercadoria
A ampliação das estratégias de marketing, bem como a capilarização financeira-informacional, abordadas suprariamente, são possíveis graças às características elementais da globalização, período no qual a ciência, a técnica e a informação comandam a produção e o uso dos objetos, ao mesmo tempo que provocam as ações e determinam as normas (SILVEIRA, 2003). Nesse sentido, junto aos sistemas de objetos técnicos formadores da tecnoesfera está a psicosfera (SANTOS, 2002), conjunto de desejos, hábitos, linguagens e sistemas de trabalho associados aos padrões de uma época, que dão novos sentidos e dinâmicas aos lugares.
Numa perspectiva weberiana, o sistema capitalista sustenta-se através de crenças e justificativas que embasam sua manutenção de forma específica em cada fase. Esse éthos, em nosso período, é sustentado intrinsecamente pelo consumo e a mercadoria torna-se o laço organizador da sociedade (KAHIL, 2010). No caso do futebol, mesmo a essência mais íntima e passional do esporte (o torcer), símbolo de manifestações socioespaciais e culturais, é absorvida por uma lógica consumista.
Já discutimos, anteriormente (Rosalin, et al., 2022), como o city marketing surge como um dos elementos centrais do planejamento estratégico das cidades, a partir da projeção das especificidades e singularidades dos lugares em um contexto global de competitividade, promovendo-os e afirmando-os enquanto um demonstrativo de poder das possibilidades do consumo. O Allianz Parque, conforme apresentado em nossa leitura, torna-se um novo objeto técnico, promotor de uma espetacularização da cidade de São Paulo, utilizando do elemento sócio-cultural do futebol como rótulo, como entretenimento, seguindo uma orientação para o mercado. Mascarenhas (2015) destaca que o fenômeno é uma contradição inata às novas arenas: enquanto os usos rentáveis multiplicam-se em muitas possibilidades, esses espaços padronizam comportamentos, conformando o público em um ideário pacífico de espectadores. Esses espaços priorizam, conforme Mandelli (2018), o consumidor sóbrio, de maior poder aquisitivo, distante da estereotipada irracionalidade torcedora.
Essa promoção das localidades, e a consequente seleção do público frequentador, promove um patamar de valorização ao estádio e seu entorno. Através do processo de valorização do espaço são criadas oportunidades de acumulação, promovendo neste a expansão e a concentração geográfica de renda. Dialeticamente, há uma ampliação do valor por meio da circulação e concentração de trabalho e de capital em espaços privilegiados, tendo nas cidades e, sobretudo nas metrópoles, sua maior expressão (MORAES e COSTA, 1987).
O novo estádio, apesar de ser o grande símbolo, foi apenas um dentre tantos outros produtos oriundos dessa reformulação na exposição da marca Palmeiras. O programa de sócio-torcedores, caravanas oficiais, eventos, camisas e souvenires licenciados e até financiamento coletivo para a contratação de um jogador são exemplos da atração do torcedor ao consumo, através de um discurso de identidade, na última década.
Ao torcedor-consumidor palmeirense, absorvido pela racionalidade do moderno, ordeiro e uniforme, se faz latente mecanismos que promovam a sensação de pertencimento ao clube com o qual se simpatiza. O Palmeiras (e toda sua simbologia, história e cultura), transforma-se em mercadoria. Surge, portanto, um anseio, uma racionalidade, uma ação no campo do discurso que justifique as práticas corporativas sob as máscaras dos produtos e serviços licenciados, como no caso do novo cartão de crédito. Nas palavras da atual presidenta, Leila Pereira, o torcedor “poderá viver experiências exclusivas dentro do universo palestrino e contribuirá diretamente com a sua paixão, que é o Palmeiras”. Na realidade, cria-se um torcedor alienado, sem conhecimento das relações de obtenção de renda e exploração de trabalho ocultas pelo produto oferecido, crente de que sua participação nestas ações ajudam na manutenção e crescimento do clube. Ademais cativa-se, através do lastro do crédito, novos consumidores que embasam uma esfera financeira complexa e altamente capilarizada.
Considerações finais
O debate a respeito da condição de desintermediação e/ou reintermediação financeira se encaixa na situação da atuação da Pefisa junto ao Palmeiras e os demais agentes. Muitos dos próprios torcedores e sócios estarão na jogada de acesso a uma nova conta bancária com a marca do clube estampada no crédito. Esse novo fomento da tecnologia, capital financeiro e os grandes agentes hegemônicos caracterizam a ascensão da espoliação e da exploração que se desenvolvem como novas fontes de obtenção do lucro nas mais diversas áreas.
Resta ainda saber quais impactos a ferramenta digital terá no mercado financeiro e no orçamento anual do clube e dos agentes investidores. O que já pode ser apontado é que, uma vez mais, o torcer, atividade intrínseca ao esporte, é incorporado pela esfera financeira e aparece enquanto uma forma de mascarar o processo de absorção de consumidores de uma mercadoria. Uma análise a posteriori, sob um período maior de observação, poderá ajudar a elucidar algumas questões ainda prematuras em nosso contexto.
Referências bibliográficas
CURI, M. 2012. 317 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
Giddens, Anthony. As conseqüências da modernidade. tradução de Raul Fiker. – São Paulo: Editora UNESP, 1991.
KAHIL, S. P. . Sociedade & Natureza, [S. l.], v. 22, n. 3, 2011.
LAI, K. P. Y.; SAMERS, M. Towards an economic geography of FinTech. Progress in Human Geography, v. 45, n. 45, p. 720-739, 2020.
LANGLEY, P.; LEYSHON, A. . New Political Economy, v. 26, n. 3, p. 376-388, 2020.
MANDELLI, Mariana Carolina. . 2018. 215f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
MASCARENHAS, G. “Pacificação e exclusão: o estádio de futebol na produção da cidade-espetáculo” In: XVI ENANPUR, 2015, Belo Horizonte. XVI ENANPUR – Sessões Temáticas. Belo Horizonte, 2015. v. 1. p. 1-14.
MORAES, A. C. R; COSTA, W. M. Geografia Crítica: A Valorização do Espaço. Hucitec, São Paulo, 1987.
ROSALIN, João Paulo; NASCIMENTO, Ramon Spironello do; ISMAEL, Vinicius de Paula. . Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 29, 2022.
SILVEIRA, M.L. A região e a invenção da viabilidade do território. In SOUZA, M. A. (org). . Campinas: Edições Territorial, 2003.
João Paulo Rosalin
É professor substituto bolsista no Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental e doutorando do Programa de Pós Graduação em Geografia da UNESP (Rio Claro), onde desenvolve sua tese intitulada "Usos do território, solidariedades institucionais e especificidades produtivas: as indicações geográficas para produtos agropecuários no estado de São Paulo". Graduado em Geografia (Bacharelado e Licenciatura) em 2016 pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", campus de Rio Claro e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da mesma instituição (2019). É integrante da Red Latinoamericana de Investigadores sobre Teoría Urbana (RELATEUR), do Laboratório de Investigações Geográficas sobre os Usos do Território (LUTe) e do Grupo de Estudos: O Mundo Dentro e Fora das 4 Linhas (GEMDF4L).
Leandro Di Genova Barberio
Mestrando no Programa de Programa de Pós-Graduação em Geografia, na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (unesp) - Campus - Rio Claro. Graduado em licenciatura em Geografia na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (unesp). Participou como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa Educação Tutorial (PET). Foi pesquisador de Iniciação Científica pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), trabalhando com planejamento urbano e financeirização do território.
ROSALIN, João Paulo; BARBERIO, Leandro Di Genova. Palmeiras Pay: informatização e corporativismo sob a psicosfera do torcer. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 8, 2023.