Há 41 anos, a normalista mineira Zaia Brandão começava uma carreira no ensino brasileiro que hoje lhe dá a responsabilidade de ser uma das mais conceituadas pesquisadoras do país na área da educação. Professora da pós-graduação do curso de Educação da Puc-Rio, Zaia, de 57 anos, não poupa críticas à política de ensino público do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas diz que, em linhas gerais e na direção, o pacote de parâmetros para o novo ensino elementar brasileiro divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) na semana passada é bom, embora esteja longe da realidade dos professores brasileiros. "A questão não é nem se os parâmetros são aplicáveis. A questão é que os professores que mais precisam não vão nem ler aquele calhamaço."
Eleitora de Fernando Henrique, ela diz que se pudesse anularia seu voto "por erro de pessoa" e que apostar no ensino elementar é um acerto do ministro Paulo Renato Souza, mas jamais com o sacrifício, como Zaia denuncia, do ensino universitário. "Nem nos anos da ditadura vi algo tão arbitrário como as políticas para a educação deste governo."
- Já é lugar-comum falar do caos da educação pública brasileira e de como o professor chegou a níveis indignos de trabalho. Na sua opinião, como o ensino chegou a esse ponto no Brasil?
- Em primeiro lugar é preciso esclarecer que há perdas e ganhos nessa história. O que acontecia há algumas décadas, quando eu comecei, por exemplo, em 1956, era que nós éramos bem preparadas, as escolas eram bem aparelhadas, mas apenas para um tipo específico de aluno de classe média, em número pequeno e restrito. A maioria das crianças em idade escolar era totalmente excluída do sistema educacional. A escola até atendia crianças mais carentes, mas sempre a partir de uma rede de relações com a classe média. Era a filha do porteiro, da empregada doméstica. Era um ensino bom, mas acreditava que existia um núcleo de conhecimento que era universal e suficiente para todos. Mais grave: acreditava que todo aluno tinha condições iguais de compreender aquilo. Nada disso era questionado, por isso não gosto de pensar nas décadas passadas como "Anos dourados".
- Quando foi que se começou a buscar um ensino mais diversificado?
- O impacto foi quando a rede de ensino se espalhou pelo país e trouxe para a escola todo o tipo de crianças, de classes sociais, heranças culturais e estruturas familiares diferentes. Para isso nós não éramos preparadas e a tendência era localizar fora da escola razões de nutrição, de família ou psicológicas para os maus desempenhos escolares. Ninguém questionava se a escola estava ensinando direito. Visto assim, o ensino melhorou a partir da década de 70, se espalhou e abrange muito mais alunos. A princípio, o acesso à escola é quase total hoje. Evidentemente, ao longo dos anos os governos foram deixando de investir na adaptação das escolas e dos professores a essas novas necessidades. A profissão perdeu status, perdeu aquele respeito a uma opção de trabalho que era importante socialmente. Os políticos descobriram depois que a plataforma de prioridade para a educação é boa de voto, mas ficaram só nas palavras, salvo algumas iniciativas isoladas.
- Segundo estatísticas do Ministério dá Educação há ainda uma maioria de crianças em idade de ensino elementar, entre 7 e 8 anos, que nunca freqüentou a escola. Porque isso ainda acontece?
- Porque os números não explicam tudo. Em tese o ensino público é aberto a todos, mas há escolas, por exemplo, aqui no Rio, em Botafogo, que fazem pré-seleção dos alunos e recusam quem vem do Morro de Dona Marta. Por outro lado há uma consciência cada vez maior por parte dos pais da importância de dar um ensino melhor a seus filhos. Muitos pais, por mais carentes e menos escolarizados, preferem não colocar o filho numa escolinha ruim perto de casa e esperar um ano mais para matriculá-lo numa escola melhor, mais longe e mais disputada. Os pais, mesmo sem a escolaridade formal, têm cultura, no sentido de saber avaliar o que os cerca e ver quando uma escola não tem professor, a diretora é relapsa etc. Vejo isso na região em que moro, em Jacarepaguá. E isso acontece também no interior. É mentira dizer as famílias de baixa renda não se interessam mais pela educação. Elas se interessam muito, mas não são só os intelectuais que têm condições de avaliar o que está acontecendo dentro do sistema escolar brasileiro. Os pais estão tentando escolher escolas melhores.
- Nesse quadro, a proposta do pacote do MEC de flexibilizar as disciplinas e a própria estrutura das séries do ensino elementar é uma boa perspectiva, então?
- Quando o governo estava estudando o projeto dos núcleos curriculares pediu a vários pesquisadores que dessem avaliações. Eu fiz uma dessas avaliações. A maioria do meio acadêmico reagiu muito fortemente. Eu pessoalmente detesto visões partidárias ou sectárias do tipo "é do governo, sou contra". Por outro lado, é muito comum que pessoas de esquerda, ao avaliarem nossa situação política atual, achem ou tudo ruim ou tudo bom. Eu votei no Fernando Henrique Cardoso e, se pudesse, pediria a anulação do meu voto como naqueles casos em que você anula o casamento por erro de pessoa. Confesso que quando via as alianças que ele estava fazendo na campanha fiquei intranqüila. Mas achei que aquele homem, com sua história, sabia o que estava fazendo. Fiquei desencantada totalmente. Mas isso não faz parte da minha análise de sua política educacional.
- E que análise é essa? O que mais lhe chamou a atenção?
-Dar prioridade ao ensino elementar é um acerto. Não tenho dúvidas de que esta é a direção certa. Com recursos e ações práticas como o fundo de valorização do magistério, por exemplo, ou o esforço de fazer chegar a verba diretamente às escolas. Mas quero ver isso tudo funcionando. Sobre os núcleos curriculares, eu diria sim e não. É aí que começa o problema. A orientação pedagógica é correta, competente, numa boa linha de construtivismo. Quer dizer, partir dos conhecimentos que a própria criança já tem para fazê-la ampliar esses conhecimentos. Nesse aspecto não faria as críticas ferozes que vi muitos fazerem. Acho a proposta de currículo até melhor do que as que tenho visto. O problema começa nas áreas como ética, educação sexual, cidadania. Tentar normatizar esses temas não me parece bom. Os professores conhecem melhor as crianças, as famílias e a realidade em que essas crianças vivem e são os mais aptos a tratar disso.
- Os parâmetros falam em utilização de mais gráficos, mapas, televisão e computadores, além de aulas mais elaboradas. Isso é aplicável à realidade do ensino brasileiro hoje?
- Não acho que seja por aí a crítica. Mesmo ensinando dois mais dois num quadro negro estou ensinando valores éticos e morais no próprio andamento da aula. Uma criança que chegue com dúvidas sexuais à professorinha mais simples vai ser orientada, em geral. Normatizar isso me parece um erro. É bom acabar com a disciplina de educação moral e cívica, mas normatizar temas assim também não resolve. O grande problema desse pacote do MEC é que ele ficou muito extenso. O que deveria ser uma lista de parâmetros ficou parecendo o próprio currículo. Não esqueçamos que por mais que se imponham currículos ao professor, ele tem liberdade em sala de aula. O que me preocupa é a ameaça dessa liberdade que nos está sendo dada. É o discurso por trás dessa crítica ao nosso ensino que acho delicado.
-Que discurso é esse?
- Nosso ensino está ruim. Está sim. Mas não podemos esquecer que é muito fácil ensinar a alunos com todas as condições de aprendizado. Com a chegada da diversidade às escolas o sistema precisou criar estratégias novas e houve avanços nesse sentido. Não se pode ignorar vários métodos de alfabetização sendo postos em prática e escolas que levam em conta as diferenças lingüísticas e culturais de cada comunidade.
- Nessa perspectiva de diversidade e modernização, o pacote do MEC poderia servir para corrigir esse sistema que sempre generalizou o ensino?
- De certa maneira, sim. Eu poderia dizer que ele é mais bom do que ruim. Isso vai ser um escândalo, o meio acadêmico vai me bater, porque a reação ao pacote foi muito dura. Mas é verdade. Eu acho que como núcleos curriculares é bom. O problema é o efeito que isso vai ter no sistema. Vale a pena o gasto de enviar esses kits a centenas de milhares de professores? São parâmetros bons, numa direção razoável. Mas é muita coisa para ler. Há estudos que provam que um professor de primeiro grau, em média, não lê um texto profissional com mais de três páginas. Ele não tem tempo, suas condições são tão adversas que no seu tempo livre não vai sentar e estudar os parâmetros. Ela vai assistir à novela, como eu assisto quando chego em casa. Se é para discutir esses parâmetros teria que ser um kit por escola, para ser debatido em grupo. Eu estou cansada de ver governos estaduais, municipais e federais lançando novos currículos a toda hora.
- O professor que tem má formação ou que já está acostumado a uma aula específica vai conseguir preparar uma nova aula, dentro dos parâmetros modernos do MEC?
- Até pode preparar. Mas o documento em si não muda a realidade das aulas. O documento tem que fazer parte de uma situação melhor de trabalho. Por isso eu digo que a direção do governo é aparentemente certa, mas apenas se houver investimento. Além disso, quem disse que é preciso ter televisão ou computador para ter um ensino melhor na nossa realidade?
- O pacote do MEC estaria caindo no mesmo erro dos projetos anteriores, de unificar o ensino para realidades diferentes?
- Sim, e isso faz parte da política deste governo para a educação. Há uma atitude de quem sempre sabe o que fazer. A consulta é sempre pela superfície. Mandam uns papéis para a gente, pedem umas análises, mas na hora fazem o que já estava pré-decidido. Agora, há avanços. O sistema de avaliação nacional que eles criaram é importantíssimo. Mas quando se trabalha com a avaliação como meta, acho ruim. É importante comparar resultados, tanto internamente quanto com outros países. Mas o resultado vem com tempo e este governo tem pressa. É bom que se tenha pressa de melhorar a educação brasileira. Mas essa pressa não pode justificar atitudes autoritárias, na base dos pacotes. Desde que os políticos descobriram que educação era importante, eles produzem fatos, para não dizer factóides. Todo governo quer apagar os anteriores e colocar sua marca. Fernando Henrique, não está fazendo diferente em educação. Nesse sentido há muito o que criticar.
- Que críticas são essas?
- Dar prioridade à educação elementar é acertadíssimo, mas nunca às custas das destruição, como está acontecendo, do ensino público universitário. Eu sou neutra para falar disso, porque nunca sou das que opõem ensino público e privado. Mas nunca pensei que o Fernando Henrique em quem eu votei fosse comprar esse discurso. Claro que há muito a corrigir nas universidades federais, cheias de distorções vergonhosas e desperdício. Mas isso não quer dizer que se deva transformar a carreira de professor universitário nessa coisa desprezível. Quem vai estudar 20 anos para ganhar R$ 1,2 mil por mês? As reformas que foram feitas no mestrado e no doutorado, pelo Cnpq e pelo MEC, são das coisas mais absurdas que eu já vi. Falo livremente, porque sou pesquisadora do Cnpq e portanto recebo verba para aplicar nas minhas pesquisas e dar bolsas para os meus alunos. Mas esse novo sistema - que me beneficia, entre outros pesquisadores - de verbas para a pós-graduação, em vez de investir em programas ou núcleos investe em indivíduos. Isso isola os pesquisadores e torna difícil renovar os círculos de pesquisa. Além disso, as regras de entrega de teses foram mudadas no meio do ano para desespero dos alunos, e tudo isso sem nenhuma discussão com os pesquisadores e alunos. Nem nos anos dá ditadura militar vi medidas tão autoritárias na área da educação.
- Como é sua visão dessa disputa entre escolas particulares e públicas no Brasil? O ensino privado é melhor?
- Se você comparar os dois universos, o ensino público ainda é melhor. Acontece que a parte visível do ensino privado é o topo da pirâmide, os colégios da classe alta. No Rio, os São e outros não confessionais. O resto é um obscuro conjunto de escolas onde há boas e há várias muito ruins. A clientela dessas escolas pagas ruins é o que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de famílias educógenas. Famílias que fazem qualquer coisa para manter o filho numa escola que lhe pareça melhor. Antes de tirar o filho do colégio, vendem o carro, fazem quentinha para fora. Isso os deixa à mercê de uma imensa mediocridade. Além disso, me deixe escolher os melhores alunos, das melhores famílias, que eu farei a melhor escola. É o que acontece com essas escolas excelentes do Rio.
- Qual seria a solução para o ensino brasileiro do futuro? Há quem diga que as questões levantadas pelo pacote do MEC já eram levantadas por Paulo Freire.
- Não sei se é a única solução, mas certamente uma das coisas fundamentais é não tratar o professor como parte de uma engrenagem, não bombardeá-lo com pacotes e medidas que não foram experimentados, não surgiram da experiência diária. Não acho que esse pacote repete o que o Paulo Freire já falava. Seria reducionismo demais. As questões talvez já existissem, mas há novas abordagens e propostas. O perigo não está aí, está no raciocínio econômico que permeia toda a política educacional desse governo. Essas teorias de gerenciamento onde tudo é pela competitividade servem para peças, não para alunos. O próprio pacote de parâmetros fala sempre em condições de competir, de mercado de trabalho, de ensino-modelo dos Tigres Asiáticos, de mão de obra qualificada. Claro que não sou uma obscurantista. Mas acho que se deve falar também das crises que hoje enfrentam os países que fizeram essa opção, como o Japão, com índices altíssimos de suicídio entre jovens. O pacote dá dinheiro às escola que conseguirem mais alunos, o que tira da disputa os núcleos unidocentes, de uma professorinha, nos interiores do Brasil. Em outros lugares, prefeitos querendo mostrar serviço poderão agrupar escolas para torná-las mais produtivas. O presidente e o ministro Paulo Renato Souza devem urgentemente ler sobre isso. Ficar comparando os anos de escolaridade na Ásia e no Brasil é falso porque mais anos de estudo não significam estudo melhor. Educação não é só ensinar alguém a ser uma mão de obra qualificada. Quero um ótimo modelo de ensino para o Brasil, mas não o vindo de países como o Japão ou os Tigres Asiáticos, onde os jovens se matam de infelicidade.
Notícia
Jornal do Brasil