Projeto com curadoria da sommelière Gabriela Monteleone com pequenos produtores leva vinhos em growlers de 1L direto para o seu copo.
m meados de 2020, a sommelière Gabriela Monteleone anunciou uma novidade na unidade da Carlos Pizzaria dos Jardins, em São Paulo: vinho na pressão. Isso mesmo. Ali na pizzaria você poderia optar entre as garrafas da casa ou uma taça com o vinho tinto nacional, feito por pequenos produtores, direto da torneira. O projeto, uma parceria com Ariel Kogan (Familia Kogan Wines), foi batizado de “Na Pressão” — no caso, um cabernet sauvignon feito lá em Caxias do Sul (RS), colaboração entre os produtores Ivan Tisatto (Don Dyonisus) e Gustavo Camargo Borges (Bellaquinta).
Bem, devido à pandemia e aos meus horários na loja de vinhos onde trabalhava (e na redação), não consegui conferir in loco a iniciativa, algo mais comum na Europa — quando estive em Londres, em 2019, em pelos menos dois pubs os vinhos que pedi saíram da torneira. O vinho é servido diretamente do “keg”, barril também utilizado para o envase de cervejas.
No fim do ano, o Tão Longe Tão Perto (projeto de curadoria e educação da sommelière) acrescentou dois novos vinhos ao projeto (um branco e um rosé) e passou a vendê-los em charmosos growlers de 1 litro. Ficou mais fácil pedir via delivery para provar em casa. O trio embalou a festinha feita por mim e minha irmã, no apê em Perdizes, antes de sair do Brasil, em março deste ano.
São vinhos secos, saborosos, fáceis de beber e que chegam a você por um preço bem honesto. Os três rótulos são ótimos para tomar naquele bom e velho copo americano. Isso mesmo. Frescos, convidam para momentos mais informais, descontraídos. Bebem-se todos gelados.
O tinto foi uma surpresa. Um cabernet suave que vingou até três dias (eles recomendam beber em dois, fomos ousadas) depois de aberto. O rosé, feito com merlot e lorena, é bem aromático e fresco, ótimo para essas noites em que a gente dança na sala de casa. O branco é feito com 100% lorena. Conhecer a lorena foi o grande barato desse projeto.
Lorena, que uva é essa?
Se a merlot e a cabernet já são velhas conhecidas das nossas taças, a lorena talvez chegue menos famosa para muitas pessoas. O vinho, de coloração amarelo-palha com reflexos esverdeados, tem um aroma leve (lembra flores brancas) e na boca, tem frescor e um quê de moscatel. A curadora do projeto o coloca entre uma sauvignon blanc e a moscatel com menos potência. Não há o que discutir.
A história dessa uva “híbrida” começa lá em meados da década de 1980. A BRS Lorena foi criada a partir do cruzamento de outras das uvas malvasia bianca e a seyal, em 1986, pela Embrapa. Ela foi desenvolvida especialmente para a fabricação de vinhos de mesa e espumantes de qualidade. No entanto, ela só foi lançada no mercado em 2001.
Trata-se de uma uva com ótima capacidade de adaptação — especialmente nas condições ambientais do sul do Brasil, podendo ainda ser cultivada no nordeste e sudeste (SP, MG, ES). Com alta produtividade (comparada a outras uvas brancas de processamento) e ciclo precoce, é uma uva resistente às principais doenças que atacam a videira e tem elevado conteúdo natural de açúcar e acidez equilibrada.
Quando passa por uma vinificação diferente, ela resulta no Lorena Ativa, um vinho com maior conteúdo de antioxidantes do que os vinhos brancos tradicionais. Os vinhos brancos têm em média dez vezes menos resveratrol do que o vinho tinto.
Essa tal técnica diferente foi desenvolvida por pesquisadores brasileiros do projeto Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves (RS), e resulta em um vinho branco com níveis quatro vezes maiores do que o normal de polifenóis, sobretudo do badalado resveratrol, da quercitina e de flavonóides. Usa-se a BRS Lorena, maceração similar aos vinhos tintos e um levedura autóctone da Embrapa, a 1 vvt, que produz mais álcool durante a fermentação e acelera a extração de vários compostos (entre eles, o resveratrol).
Um artigo de 2008 publicado na Revista Fapesp explicou melhor todo esse processo:
Em tese, não deveria haver grandes dificuldades para elaborar um vinho branco com mais resveratrol. Esse composto é fabricado sempre que a vinha sofre ataques de fungos e bactérias ou é exposta a agentes agressores, como a radiação ultravioleta. A exemplo das uvas tintas, as brancas produzem, portanto, grandes quantidades desses polifenóis, basicamente em suas cascas e em menor escala nas sementes e cabinhos. O problema é que a maneira consagrada de fazer vinho branco não favorece a extração de níveis elevados de substâncias antioxidantes.
O vinho tinto contém muitos polifenóis — e ganha sua cor e outras características — porque permanece dias, às vezes até 3 semanas, em contato com as cascas de uvas tintas durante uma etapa crucial de seu processo de elaboração, a maceração. Em química, macerar significa extrair certos princípios ativos ou nutritivos de um corpo sólido por imersão em um meio líquido. No caso do vinho, a maceração consiste em deixar por algum tempo as cascas e as sementes (partes sólidas) em contato com o suco da uva recém-esmagada que está prestes a iniciar o processo de fermentação. À medida que a fermentação ocorre, o álcool produzido atua como solvente, aumentando a solubilidade das substâncias das cascas e sementes das uvas. No vinho branco a maceração quase inexiste. Raramente passa de 3 horas.
Se você pensou que então era só aumentar o tempo de maceração do vinho branco e pronto, errou. No artigo eles seguem contando mais desse processo. Vale a pena continuar a leitura! (acesse aqui) — especialmente com um copinho de lorena fazendo companhia…
O “Na Pressão” é um projeto que sai na frente quando pensamos em formas de apresentar o vinho de uma forma mais despojada ao consumidor. No curso de formação de sommelier na ABS-SP (Associação Brasileira de Sommelier), tive uma aula com a Monteleone no último módulo. Foi das aulas mais vibrantes para a turma, acho que por jogar uma ideia de que a gente pode pensar fora da caixa, criar e trabalhar de diferentes frents quando o assunto é vinho. Estamos nesse caminho, claro, juntando mbagagem.