Notícia

Jornal da USP

Os segredos do neurônio H1

Publicado em 31 agosto 2003

Lembrar-se da mosca-varejeira apenas como um inseto que causa o berne - aquela larva que se aloja na carne dos animais e das pessoas, se alimenta de proteína e se transforma numa ferida - é, no mínimo, injusto. Essa pequena mosca, que cientificamente recebe o nome de Diptera chrysomia, é a queridinha do DipteraLab, o laboratório de pesquisa em neurobiofísica do Instituto de Física de São Carlos, que usa técnicas de física, matemática e biologia para estudar a transmissão de informações no duto óptico da mosca. Esse estudo faz parte do projeto temático da Fapesp DipteraLab 2002 - Explorando o Código Neural da Mosca. E para que serve esse estudo tão peculiar? A resposta é simples, segundo Roland Köberle, coordenador do laboratório e professor do Instituto de Física de São Carlos. "O ser humano tem três grandes enigmas para decifrar: a origem do universo, a origem da vida e o funcionamento do cérebro. Para entendermos o funcionamento do cérebro, precisávamos encontrar um organismo vivo com funções semelhantes ao humano. Por isso escolhemos o minúsculo cérebro da mosca da ordem Diptera, que contém milhões de neurônios, constituindo um verdadeiro sistema complexo. É infinitamente mais simples que o cérebro de primatas, mas é um dos poucos sistemas biológicos que conservam registros da atividade cerebral durante vários dias, permitindo que o pesquisador realize experimentos bem controlados", analisa Köberle. Köberle e sua equipe querem descobrir como funciona o cérebro humano. Mas como é possível essa descoberta a partir do cérebro da mosca? Köberle diz que a natureza desenvolve um módulo e, em geral, quando ele funciona, a tendência é reproduzir esse módulo em seres superiores. É claro que o cérebro humano é muito mais complicado, e, nesse caso, o cerébro da mosca é apenas o passo inicial para se decifrar o enigma. A pesquisa tem a finalidade de estudar a resposta a estímulos visuais dados pelo neurônio H1 na placa lobular de moscas. O neurônio H1 é sensível a movimentos horizontais e reúne a informação provinda dos 10 mil omatídeos (elementos que formam o olho dos artrópodes) da mosca. Para registrar esses pulsos de voltagem, a mosca viva é fixada com cera e um eletrodo de tungstênio é inserido extracelularmente. Dessa forma a mosca fica imobilizada em frente a um monitor com taxa de 500 Hz. Pulsos gerados pelo neurônio H1 são registrados eletronicamente em sincronia com uma imagem que a mosca vê se movimentando em um monitor. "A partir dos dados obtidos queremos elucidar o código neural empregado pela mosca para a codificação e decodificação. Damos atenção especial para as estratégias empregadas pela mosca para se adaptar ao ambiente variável encontrado na vida real. Nosso projeto prevê suporte para uso de estímulos naturais semelhantes aos que a mosca encontra no seu hábitat", explica Köberle. Codificação - O registro de pulsos gerados pelo neurônio H1 em sincronia com o estímulo levanta uma série de questões. Qual é o mecanismo que gera os pulsos? Este é um problema de codificação? Como a mosca reconstrói o estímulo a partir da informação contida nos pulsos? Este é um problema de decodificação? Köberle explica que originalmente a mosca tem uma certa taxa de disparo de pulsos. "Achávamos que nessa taxa de disparo estava codificada a informação que a mosca pega. Na verdade, descobrimos que o tempo de cada pulso tem uma informação essencial e não a taxa de disparo, porque a mosca reage no tempo de 35 milissegundos." Já que o estudo é tão complexo, quais os possíveis benefícios para a sociedade? Köberle diz que, embora ainda não se saiba como funciona o cérebro humano, é importante saber como conseguir um aproveitamento melhor do uso das atividades cerebrais, pois é a partir dele que se pode desenvolver a robótica, uma área em expansão cada vez maior. Estudos em neurobiofísica vêm ocorrendo há décadas com grandes avanços, identificando trajetórias neurais e campos receptivos com o objetivo de tentar mapear o fluxo de informação, desde os órgãos sensoriais até as estações de controle centrais e, por fim, o sistema motor. "No entanto", explica Köberle, "ainda não possuímos um conhecimento quantitativo explicitando como tudo isso se relaciona e como funciona. Nós realmente só entenderemos como um sistema biológico funciona se pudermos construir uma ferramenta semelhante, que trabalhe com eficiência comparável. Os físicos estão seguros de que podem dar uma contribuição valorosa nessa empreitada, isolando algum subsistema biológico interessante e aprendendo, com o biólogo, quais são as variáveis e parâmetros a serem controlados." Segundo Köberle, a pesquisa tem a finalidade de analisar o cérebro do ponto de vista de sistemas complexos para obter uma visão estrutural da dinâmica desse órgão e dos seus constituintes. O monitoramento da atividade cerebral usando técnicas de física desencadeou uma revolução na área de neurobiofísica, podendo o pesquisador quase "ler os pensamentos" da amostra analisada. "O registro da atividade cerebral usando muitos eletrodos permite, de um lado, a aquisição simultânea de uma enorme quantidade de dados, o que, por outro lado, requer um aperfeiçoamento das técnicas matemáticas para analisá-los." Mesmo com toda essa tecnologia, ainda falta muito para se compreender o modus operandi do cérebro humano. Uma razão adicional para a investigação de sistemas mais simples é a reciclagem que a natureza faz de módulos que já deram certo em situações mais simples. Köberle explica que a dificuldade maior em transportar técnicas experimentais e teóricas da física para pesquisas biológicas é fazer experimentos in vivo, ou seja, executar experimentos e analisá-los num contexto de muitos parâmetros, todos aparentemente necessários a serem controlados com um mínimo de interferência no comportamento do organismo. "Além disso, os resultados devem ser idênticos dentro de erros toleráveis e do inevitável ruído biológico, quando os experimentos são repetidos nas mesmas condições. Essas são algumas das razões que nos levaram a escolher o estudo da transmissão de informação no duto óptico da mosca como tema de pesquisa nestes últimos anos. Esperamos que essa atividade, possivelmente inédita na América Latina, gere uma fertilização cruzada entre várias áreas de pesquisa, hoje com reduzido diálogo", explica. A equipe de Köberle é composta por Lirio Onofre Baptista de Almeida, especialista em instrumentação de laboratório, Deusdedit Lineu Spavieri Junior, mestrando de física, Ivanilda Helena Zuccoloto, técnica em eletrônica responsável pela microcirurgia na mosca, Damiano Oliva, doutorando em física, e Nelson Fernandes, aluno de iniciação científica. Mais informações podem ser obtidas na página eletrônica do DipteraLab (www.dipteralab.if.sc.usp.br)