Notícia

Jornal do Brasil

Os equívocos de Bresser (1 notícias)

Publicado em 02 de fevereiro de 1999

Por JOSÉ MONSERRAT FILHO*
Eunice Durham afirmou em "O desmantelamento do CNPq" (Folha de S.Paulo, 28-1-99) que as recentes iniciativas tomadas pelo ministro da Ciência e Tecnologia. Luís Carlos Bresser Pereira, "são extremamente preocupantes, pois podem colocar em risco o próprio arcabouço institucional que permitiu ao país uma situação de liderança científica na América do Sul e nos países em desenvolvimento". O CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) foi criado em 1951, há 48 anos, portanto. O ministro logo respondeu com um contraponto em "O fortalecimento do CNPq" (Folha de S.Paulo, 31-1-99). O leitor desprevenido talvez fique confuso: afinal, o CNPq está sendo desmantelado ou fortalecido? Eunice considera que "a iniciativa do ministro de assumir, além do ministério, também a presidência do CNPq, destrói a autonomia que, em maior ou menor grau, a agência sempre preservou", pois "mesmo durante o período mais repressivo do governo militar, o CNPq manteve com independência a interlocução com os cientistas", que "preservaram sua influência na distribuição dos recursos, insistindo na manutenção do critério da avaliação autônoma pelo mérito dos projetos". Entende Eunice que o precedente do ministro-presidente do CNPq "pode se perpetuar no futuro", passando o CNPq "a depender inteiramente da boa-vontade do ministro dê plantão". Para ela, os conflitos entre o CNPq e o ministério "são também uma forma de diálogo", no qual sempre se preservou "algo de essencial: o papel da comunidade científica como parceira na formulação das políticas, na distribuição dos recursos e na definição dos rumos da ciência no país, o que foi responsável pela coerência da política científica ao longo de diferentes governos". Eunice considera que igualmente preocupante é a proposta de divisão do CNPq em dois ou três órgãos independentes, fragmentando o campo científico, dificultando a interdisciplinaridade e a interlocução necessária, mesmo que conflituosa, entre as diferentes áreas do conhecimento. E conclui salientando que "o Executivo não tem o monopólio nem do saber nem da competência e precisa respeitar e valorizar a autonomia de instituições que lograram estabelecer uma parceria produtiva entre o Estado e a sociedade civil, como é o caso do CNPq". O ministro, por sua vez, garante: "O CNPq continuará a manter a sua identidade, conservará a sua presidência (que poderá ou não ser ocupada pelo ministro) e terá três vice-presidentes, com nível de secretários, que, com o presidente, formarão a presidência do órgão, responsável pela definição das políticas e pelo controle de sua execução, em conjunto com o Conselho Deliberativo, cujas funções serão mantidas. Os três vice-presidentes deverão ser necessariamente membros da comunidade científica e tecnológica brasileira de reconhecida competência (hoje não há nenhum requisito estatutário desse tipo para a escolha do presidente do CNPq). Do estatuto não constarão suas especialidades, mas no regimento teremos um vice para ciências da vida e biológicas, outro para ciências exatas e engenharia, e um terceiro para ciências humanas e sociais aplicadas. O compromisso com a interdisciplinaridade será honrado." Louve-se a posição do ministro a favor da preservação do Conselho Deliberativo (CD) do CNPq e de suas funções. Hoje todas as decisões do presidente do CNPq devem ser aprovadas pelo CD. Mas como manter esta vigorosa competência do CD diante de um presidente do CNPq que ao mesmo tempo é ministro da Ciência e Tecnologia? A mistura dos cargos leva naturalmente a essa perda de força do órgão, cuja criação foi um dos maiores triunfos democráticos da comunidade científica na esfera federal. Daí que o texto do ministro, em vez de aliviar, confirma os temores de Eunice e de muitos outros membros da comunidade científica que já se manifestaram a respeito. Bresser Pereira imagina um CNPq comandado por um presidente, que pode ser o próprio ministro, e por três vice-presidentes, com nível de secretários do ministério, vindos estes três necessariamente da comunidade científica e tecnológica; e cada um deles controlando uma área específica do conhecimento. Na opinião de Eunice e dos cientistas reunidos na sede da SBPC, em São Paulo, em 18 de janeiro, bem como dos cientistas e secretários estaduais de Ciência e Tecnologia, reunidos na Coppe-UFRJ dia 22 de janeiro, essa divisão situa-se "na contramão dos rumos da pesquisa no século 21". O ministro assegura que "o compromisso com a interdisciplinaridade será honrado", embora não diga como. Ele próprio pode estar determinado a honrar o compromisso. Ocorre que o que está em jogo nessa reforma estrutural não é a sua (boa) vontade, mas a adoção de uma estrutura capaz de acolher e estimular a interdisciplinaridade independentemente do ministro e de seus secretários de plantão. Esse erro parece permear todos os argumentos do ministro. Ele sustenta: "O presidente e os vice-presidentes do CNPq, como o ministro da Ciência e Tecnologia, são partes do governo, mas agem em nome do Estado, realizando políticas de interesse público, sem discriminação de caráter partidário e ideológico. Não se garantem, porém, esses princípios por meio de estatutos ou de normas burocráticas, mas sim com a prática cotidiana da democracia e do controle permanente da sociedade, neste caso representado por um grande e diferenciado conjunto de pessoas, que são os cientistas brasileiros." O ministro claramente subestima o papel das regras do jogo. Ocorre que, como mostra a experiência histórica, o interesse público, sem manipulações partidárias ou ideológicas, precisa ser garantido tanto pela lei quanto pela prática democrática. Uma fortalece a outra. E qualquer norma legal será ou não "burocrática" segundo a forma com que for elaborada, discutida, aprovada e aplicada. A forma, portanto, é imprescindível ao processo democrático. Para manter a identidade e a autonomia do CNPq, com seus métodos de trabalho e fins bem distintos daqueles do ministério, não basta o controle de atentos e aguerridos cientistas e da opinião pública interessada; é indispensável que isso seja lavrado em letra de fôrma, para não deixar dúvidas nem brechas por onde passem interpretações e decisões arbitrárias, e para que se possa legalmente recorrer delas. Em suma, do artigo do ministro persiste o projeto questionável de um CNPq nominalmente dedicado à ciência, mas na realidade inteiramente à mercê do ministério, instância política com seus próprios interesses, não raro lamentáveis, e nem sempre bem intencionados como parecem hoje. E isso está bem mais para desmantelamento do que para fortalecimento. * Jornalista, editor do Jornal da Ciência, da SBPC