Notícia

Gazeta Mercantil

Os desafios da integração continental

Publicado em 13 maio 1997

Por Jacques Marcovitch *
O Acordo de Livre Comércio das Américas (Alça), que hoje mobiliza as atenções de 34 economias continentais, não é algo tão rigorosamente novo na história das relações dos Estados Unidos com a América Latina. Há mais de um século, em 19 de abril de 1890, encerrava-se, em Washington, a Primeira Conferência Internacional Americana, versando sobre questões muito assemelhadas. Convocada pelo secretário de Estado norte-americano James Blaine, a reunião estimulou todas as nações do continente (exceto o Canadá, sob influência inglesa) a se debruçar sobre uma agenda ampla. Essa agenda revelava o propósito norte-americano de ampliar o intercâmbio comercial com a América Latina, em termos que incluíam uma união pan-americana de comércio, moeda comum e outros itens. A proposta inspirou-se na união aduaneira germânica, criada em 1833, que foi uma das condições determinantes da unidade alemã, completada em 1870. Ela influenciou, na época, uma corrente pan-americanista, que não vingou em decorrência das discrepâncias nos estágios de desenvolvimento e capacidade de produção dos países envolvidos. Agora, mais de cem anos depois, surge nova oportunidade de negociação no espaço continental, desta vez em ambiente radicalmente mudado pela história. Basta dizer que a população brasileira passou de 15 milhões a 160 milhões de habitantes - o que traduz mudanças de escala monumental em nossa capacidade produtiva e novos indicadores de igual magnitude. Surgem, nesse quadro, desafios freqüentemente vistos apenas como da alçada exclusiva dos governos, mas também ligados aos deveres de todas as lideranças sociais: a integração do mercado interno, a consolidação do Mercosul, a negociação competente de um mercado continental e a promoção do multi-lateralismo, tendo a Organização Mundial de Comércio (OMC) como instância arbitral. O desafio da integração do mercado interno tem sido parcialmente facilitado pela ampliação das faixas de consumo. Com a estabilidade monetária, os estratos de menor renda elevaram seu poder de compra, constituindo um mercado emergente e promissor. Mesmo assim, as disparidades econômicas continuam expressivas. Com R$ 4.500,00 de renda per capita anual, em média, na região Sudeste, e R$ 1.300,00 na região Nordeste, o Brasil ainda exige muitos avanços no campo da justiça social. A elevação e a distribuição de renda pelas cinco regiões do País são fatores de uma nova ordem que não cabe apenas ao governo construir. Outro desafio é a consolidação do mercado regional. No Mercosul, o Brasil é o destaque populacional, com 160 milhões de habitantes e PIB em torno de US$ 700 bilhões. A Argentina sobressai, com renda per capita anual superior a US$ 8 mil. O Uruguai, por sua vez, apresenta a mais elevada esperança de vida, ou seja, mais de 73 anos, em média. A iniciativa de integração, que inclui o Paraguai, gerou benefícios coletivos representados pelo crescimento do comércio regional em mais de 200% nos últimos cinco anos. Cabe, agora, avançar mais ainda nessa integração, aprofundando-a em suas dimensões sociais e culturais. O terceiro desafio reside na proposta de integração continental em torno da Alça. As negociações entre os países do continente têm como principal interlocutor os Estados Unidos. Aquele país representa a mais expressiva economia mundial, com US$ 7 trilhões de PIB anual. A robustez de sua economia é acompanhada, no entanto, por um crônico déficit no balanço comercial, superior a US$ 200 bilhões por ano, no último qüinqüênio. Tal desafio exige dos dirigentes brasileiros a estruturação de uma agenda positiva, com ênfase setorial, a ser defendida sem temores e com algum pragmatismo. Apesar de a maior economia do mundo representar 80% do PIB continental, tem ela adotado, com freqüência, engenhosas barreiras não-tarifárias ou retaliações unilaterais. Essa defensiva comercial decorre do trabalho de ativos grupos de interesse setorial. No comércio internacional são princípios juridicamente consagrados a livre concorrência, os direitos compensatórios e o acesso aos mercados. Simultaneamente, ocorre um embate de interesses nos espaços setoriais, como a indústria farmacêutica, o complexo agroindustrial, a cadeia de tecnologia de informação ou o setor siderúrgico. Enquanto o direito internacional define regras gerais, surgem paralelamente disputas articuladas por meio de estratégias mesoeconômicas. Uma negociação competente depende de princípios balizadores, mas também de uma consciência maior das prioridades setoriais do País e daquelas que movem os nossos interlocutores. Entre os esforços recentes nessa direção há o documento da Coalizão Empresarial, sob coordenação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), encaminhado ao III Fórum Empresarial das Américas. Propõe-se naquele texto uma abordagem por etapas da integração regional, com a identificação mais clara das oportunidades ensejadas pela Alça e também de suas inconveniências. O quarto desafio se configura no espaço das relações multilaterais arbitradas pela Organização Mundial de Comércio. De Marrakesh a Cingapura, o mundo testemunha rápida liberalização nos fluxos de comércio e investimento. Desde 1994 o Brasil reduziu drasticamente suas barreiras alfandegárias, muitas vezes sem a reciprocidade esperada. Cabe, agora, responder positivamente aos acenos da União Européia, por exemplo, e preparar ativamente 1999, quando serão avaliados e revistos os acordos da Rodada Uruguai. A simultaneidade dos quatro desafios exige articulação dos meios empresarial, sindical, político e acadêmico. Uma detalhada compreensão das, cadeias setoriais permite identificar gargalos que, dissolvidos, reduzirão os custos de transação, elevando a competitividade. Essa articulação dos atores sociais envolvidos, a exemplo do Fórum Nacional da Agricultura, recentemente reunido em Ribeirão Preto, é precondição indispensável para que haja bons resultados nos processos de integração. O mercado nacional brasileiro, o mercado regional via Mercosul, o mercado continental americano e o multilateralismo universal põem à prova nossa sensibilidade estratégica, espírito empreendedor e capacidade de trabalho em grupo. Vivemos uma era de mutações e turbulências. O amanhã não será fatalmente a mera repetição do ontem ou do hoje. Pode ser muito melhor. As mentes humanas podem ser uma fonte de idéias construtivas e iniciativas que viabilizem um mundo mais fraterno, respeitadas as diferenças culturais. A crescente dualidade econômica está na origem da maioria dos males que afetam a sociedade contemporânea. Nesse quadro, os processos de integração devem responder à demanda de valores humanos e melhor qualidade de vida da população. A coesão social - princípio basilar de uma saudável economia de mercado - não quer dizer a mágica eliminação de conflitos inerentes à democracia. Ela traduz principalmente uma soma de esforços entre setores capazes de enfrentar juntos, mantidas as suas peculiaridades, os grandes impasses nacionais. Para aferir os processos de integração, cabe privilegiar indicadores que apreendam as múltiplas dimensões do desenvolvimento. Impõe-se, de um lado, o acompanhamento da evolução dos fatores econômicos, que incluem fluxos de comércio, investimentos e tecnologia. De outro lado, é necessário monitorar simultaneamente a evolução da qualidade de vida e a distribuição do bem-estar, de modo a garantirmos iniciativas que respondam positivamente aos anseios de amplos segmentos da sociedade. * Pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo, professor da FEA e coordenador da Área de Assuntos Internacionais do IEA. N. da R.: Washington Novaes, que escreve neste espaço às terças-feiras, está em férias.